quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Poemas do Viandante

213. OS DIAS DE SETEMBRO

chegaram os dias
de setembro
e os teus olhos
cerram-se
na tarde
esperam ainda
a consolação
essa vida prometida
para sempre
adiada

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Haikai do Viandante (1)

Shakuhachi/Shamisen Duo

Um pássaro voa,
pedra de espuma e mar.
Floresta sombria.

Adão e Eva


Uma simbólica essencial inscreve-se no mito de Adão e Eva. Não dirá tanto respeito à queda, mas à tarefa de ressurreição e de emancipação que se coloca aos seres humanos na sequência da queda. Homem e mulher tornam-se um para o outro caminho, mediação, possibilidade. A consumação da feminilidade de toda a Eva passa pela mediação de Adão e vice-versa, a consumação da virilidade de qualquer Adão passa pela mediação de uma Eva. Talvez o sentido mais profundo da indissolubilidade do matrimónio não resida na proibição da separação dos casais reais, mas na indissolubilidade entre o masculino e o feminino na experiência espiritual.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Poemas do Viandante

212. Floresta (XII)

não há meses
estações
fronteiras
dentro da floresta
apenas traços de água
névoa
as folhas mortas
trazidas pela vida
e o deus
que te espera
no lugar aberto
do coração

domingo, 4 de setembro de 2011

Poemas do Viandante

211. Floresta (XI)

despida disseste
deixa arder
a tua língua
no meu sexo
para que entre em ti
a terra fértil
e obscura
a seiva lenta
a flutuar no fundo
do corpo –
essa lâmpada
acesa
no frio da noite

sábado, 3 de setembro de 2011

Poemas do Viandante

210. Floresta (X)

raízes e ramos
e fetos e folhas
e silvas
as primeiras bagas
correm
como um rio
frágil e puro
da tua
para a água
da minha boca

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Poemas do Viandante

209. Floresta (IX)

o silêncio feito
de ruídos
cresce
ecoa nas folhas
zumbe
na insondável
quietude
de uma flor
ao abrir-se
sobre a terra

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Poemas do Viandante

208. Floresta (VIII)

aves salmodiam
entre ramos
e uma brisa incendeia
nos caminhos
o musgo onde
exaustos
nos sentamos

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

207. Floresta (VII)

caminhas
sob árvores
sombras
a neblina matinal
e despido
o teu corpo
aninha-se em mim
leve e suave
puro branco
e animal

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

206. Floresta (VI)

um tremor
o grito de uma ave
o uivo encoberto
pelo arvoredo

o coração sussurra
e o frio cai
pelo corpo
quando uma folha
é recebida
pela terra
em alvoroço

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

205. Floresta (V)

fios de água
um murmúrio
e a sombra
de um carvalho sem idade
 
caminhas
e o teu destino
está nesse caminhar –
o vestido ondula
ao vento
como um navio
preso no mar

domingo, 28 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

204. Floresta (IV)

terra aberta
na clausura do folhedo
rastos de animais
o coração suspenso
a face tocada
pelo medo

vai o lenhador
espera-o
a floresta
em sobressalto
como se dele
aguardasse
delicado o amor

sábado, 27 de agosto de 2011

Poemas do Viandante


203. Floresta (III)
 
névoa sombra
da sombra
erva rala
o teu corpo
transfigurado
senta-se
sobre o musgo
e canta

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

202. Floresta (II)

daquelas árvores
restam os ramos
quebrados pela invernia
ninhos ressequidos
a breve iluminação
de um relâmpago
no transviado sopro
do vento

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

201. Floresta (I)

um grito fere o silêncio
e o cheiro do outono amadurece
junto ao orvalho
da manhã

soletro lentamente
uma palavra
e um bando de pássaros
poisa nos ramos inquietos
dos pinheiros

cantam o teu nome
no recanto incógnito
do meu coração

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A floresta-mulher


Se o homem é aquele que percorre a floresta, como lenhador ou guarda-florestal, a mulher é a própria floresta. A floresta não é um sítio onde, vinda do exterior, a mulher penetre e procure um caminho. O caminho da mulher é o reconhecimento da sua própria natureza florestal, com os múltiplos caminhos que a atravessam, com a obscuridade que lhe pertence, mas também com as árvores, os fetos, os líquenes e os musgos. Labiríntica, selvagem, suave, ameaçadora e disponível para ser trilhada. O homem percorre a floresta, intui caminhos, tenta orientar-se. A viagem na floresta, para o homem, é um caminho, uma peregrinação. Para a mulher a única viagem na floresta é a da coincidência consigo mesma, o estar plenamente em si, um ser-se na florestidade que a constitui, com os seus trilhos, perigos e segredos. A floresta é o símbolo da eterna inocência feminina; para o homem, é a oportunidade de, ao percorrer os trilhos florestais, tornar-se inocente.

Poemas do Viandante

200. SPES (XII)

vasos descoloridos
flores de jardim
as velhas aspidistras
tocadas pela secura
o rumor
de um gato no umbral

a sombra
dos que partiram
senta-se à mesa
e há pão e vinho
e o murmúrio do vento
é uma fresta de luz
a voz suave
de uma canção

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A outra floresta

(imagem retirada de a trama)

A floresta é, também, a metáfora do labirinto. Melhor, floresta e labirinto acabam, de forma metafórica, por se interdesignarem, sendo possível utilizar qualquer um dos termos para denotar a referência do outro. Sendo a floresta, tradicionalmente, o produto espontâneo da natureza (embora, há muito isso não seja assim) e o labirinto uma construção humana, o que permite o transporte de uma designação para a referência habitualmente denotada pelo o outro termo é a ideia de caminho. São os caminhos que não são claros, a que falta uma certa luz racional. Os caminhos que atravessam a floresta ou que compõem o labirinto não se deixam iluminar pelo cálculo ou outro tipo de operações do entendimento. Um outro operar do espírito é necessário para encontrar o caminho e persistir nele, seja na floresta ou no labirinto.

Se tomarmos, por outro lado, o labirinto como termo da mediação, sem dificuldade se pode estabelecer conexão entre a floresta e os seus caminhos que conduzem a lado algum e o mundo social em que os seres humanos, apesar da racionalidade com que cada um traça o caminho dos seus interesses (embora esta visão liberal da existência seja puramente utópica),  acabam por andar à deriva e se tornam uma espécie em contínua errância. De facto, o lebenswelt, tomado na sua globalidade, não deixa de ser uma verdadeira floresta, cujos caminhos só na aparência podem ser percorridos segundo a luz da razão. A dificuldade do viandante é suspender o uso da bússola sem perder a orientação ou, dito de outro modo, suspender o uso da razão sem se tornar irracional.

Poemas do Viandante

199. SPES (XI)

tocar-te a fímbria
dos seios
e deixar vir
a aurora
sobre os prados
exaustos
do coração

o anjo ergue-se
e caminha
canta nestes dedos
a tua pele
sob o império
da minha mão

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

198. SPES (X)

o súbito desejo
da tua boca
abre-se no espírito
e é vento que retine
luz que ecoa
uma voz de sal
no oceano
onde o corpo
desagua

domingo, 21 de agosto de 2011

Holzwege

Holz [madeira, lenha] é um nome antigo para Wald [floresta]. Na floresta[Holz] há caminhos que, o mais as vezes sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não trilhado. Chamam-se caminhos de floresta [Holzwege]. Cada um segue separado, mas na mesma floresta [Wald]. Parece, muitas vezes, que um é igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim. Lenhadores e guardas-florestais conhecem os caminhos. Sabem o que significa estar metido num caminho de floresta. (Martin Heidegger, Caminhos da Floresta)

Se em certas histórias infantis o caminho da floresta conduz não a um certo lugar, mas a um encontro, os caminhos da floresta de que fala Heidegger não asseguram sequer esse encontro. São como muito bem traduzem os franceses chemins qui ne mènent nulle part. Quem visitou a Floresta Negra e percorreu os trilhos que a atravessam - esses trilhos que envolvem a cabana, em Todtnauberg, que foi de Martin Heidegger e hoje pertence aos filhos - percebe o que o filósofo diz quando se refere ao não trilhado. A floresta torna-se a metáfora do não dito, do não pensado e do não vivido. Essa metáfora, porém, é a que permite abir um caminho no não trilhado. Quanto mais pensamos nesse não trilhado, mais tomamos consciência de que a floresta é também o lugar da errância. Perder-se na floresta pode acontecer a quem não tem a sabedoria do lenhador ou do guarda-florestal.

A sabedoria do lenhador ou do guarda-florestal é uma estranha sabedoria. Não deriva do saber que vem do livro, nem mesmo dos livros sagrados, mas da experiência da própria floresta. Só adentrando-se nela, só correndo o risco da errância, só mesmo fazendo a experiência da errância é que alguém chega à sabedoria dos trabalhadores da floresta. Num mundo em que o trabalho tem tão pouco valor, quem quererá rebaixar-se à condição de um simples lenhador ou guarda-florestal? Quem aceitar essa condição, todavia, poderá escutar ainda, na volúpia do tempo, as palavras de Heraclito: Quem não espera o inesperado, nunca o encontrará.

Poemas do Viandante

197. SPES (IX)

o jardim fenece
no descuido
dos dias
e o medo ressoa
pela madrugada

o grito do corvo
ensombra de trevas
os campos vazios
encapelados de ervas

sábado, 20 de agosto de 2011

Da simplicidade da vida


Uma das marcas do tempo que nos cabe viver é a complexidade. Refiro-me aqui à complexidade das formas de vida. Mesmo nas camadas populacionais menos diferenciadas, a vida tornou-se complexa e artificiosa. A relação directa e simples com a Terra, com os outros e, quando existe, com o sagrado praticamente desapareceu. A teia social, a influência dos mass media, as exigências crescentes que cada um acha dever ter para consigo e para com os outros acabaram por erguer uma barreira incomensurável e praticamente intransponível. Do lado de fora dessa fronteira fica a vida simples, a simplicidade existencial, a qual sempre foi o fundamento de uma relação recta com a verdade e a vida.

A vida simples é uma vida disciplinada e regular, longe do tumulto e da algazarra em que se transformou a vida moderna. Ora o grande problema é que ao escrever isto não se está a descrever uma prática mas a identificar uma ideia reguladora. Diz-se que a vida deve ser vivida dessa forma e não que ela é efectivamente vivida assim. O artifício, a complicação, a complexidade como estratégia de diferenciação e afirmação do ego espreitam de todo o lado e caem, como lobos, sobre o ser humano, mesmo sobre aquele que há muito descobriu os limites da materialidade da existência. Um primeiro passo será o descomplexificar a relação de cada um consigo mesmo. Antes de pregar novas formas de existência social, o mais importante é dar à sua vida um caminho de simplicidade e de pobreza, sendo a pobreza do espírito, esse exercício de humildade perante a verdade, a mais importante e profícua forma de pobreza.

Poemas do Viandante

196. SPES (VIII)

um deus canta
e nas aldeias
repicam sinos
como pássaros
no alvoroço
da primavera

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

195. SPES (VII)

o voo do milhafre
no azul do céu
tece no horizonte
árvores e pedras
risca de silêncio
o teu nome
no rumor
da água da fonte

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Silêncio


Silenciar o tumulto do pensamento, deixar lentamente que ele se desvaneça, e esperar na escuridão do espírito que uma palavra venha iluminar as trevas. O que vier virá na liberdade, livre e inesgotável, tão inesgotável como o silêncio que sobre o espírito cai.

Poemas do Viandante

194. SPES (VI)

tocar-te o ventre
sob o véu
da noite
e deixar a rosa
florescer
na surpresa
desses lábios
batidos pelo mar

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O caminho da saberdoria

Aussi la deuxième chose certaine que nous savons sur la Vierge, c'est que sa sainteté est extrêment secrète.

Et pourtant je peux trouver Notre-Dame si je demeure, moi aussi, caché en Dieu en qui elle est cachée. Le meileur moyen de la connaître, c'est de partager son humilité, sa discrètion, sa pauvreté, son effacement et sa solitude ; et la connaître ainsi, c'est trouver la sagesse. [Thomas Merton, Semences de contemplation

Na tradição platónica, o exercício da filosofia é literalmente um amor à sabedoria (sophia), amor que conduz à ascese que prepara o filósofo para a reminiscência das Ideias. O cristianismo acabou por designar a sabedoria de Deus por sophia. Aparentemente, a Virgem nada tem a ver com a sophia, mas descobre-se, no texto de Merton, a profunda ligação de Maria à sabedoria. Ela é um caminho para a sageza. Um caminho secreto que o viandante deve seguir realizando em si mesmo aquilo que a Virgem é oculta em Deus. Humildade, discrição, pobreza, apagamento e solidão não são apenas virtudes morais, mas um caminho de conhecimento e sabedoria.

O segredo da santidade da Virgem reside aqui mesmo. O segredo não se deve a nada de essencialmente oculto que uma qualquer iniciação deva revelar, mas no facto dessa santidade e dessa sabedoria residir toda ela nesse apagamento de traços pessoais, de elementos da subjectividade, para que apenas aí se manifesta a autêntica sabedoria. A sabedoria de Maria está toda ela na redução a nada. Desse modo, Maria é um método, na acepção grega do termo, um caminho para aquilo que é a sabedoria. A sabedoria de Maria reside no facto de ela não possuir qualquer sabedoria própria, ser pobre de espírito, para que o Espírito nela se manifeste na glória da sua sabedoria.

Poemas do Viandante

193. SPES (V)

ó serena tarde
em que tudo
adormece
traz-me
as tílias cansadas
e a esperança comovida
onde a tua face
ruboresce

terça-feira, 16 de agosto de 2011

O sujeito da acção

A função sintáctica do sujeito numa oração contém um paradoxo. Esse paradoxo está já presente na designação de sujeito. Na voz activa, o sujeito é aquele que pratica a acção. A ideia de praticar a acção pressupõe um princípio de iniciativa, uma capacidade de fazer acontecer qualquer coisa no curso dos acontecimentos. Esta ligação do sujeito à iniciativa parece revelar um princípio de liberdade. Livres são aqueles que estão capacitados para fazer acontecer alguma coisa. O paradoxo não se manifesta, como se poderia esperar, na transição para a voz passiva, onde o sujeito sofre a acção. O paradoxo está na própria voz activa. A relação do sujeito com o verbo que denota a acção é o centro desse paradoxo. Parece que a acção depende da liberdade do sujeito, que este é soberano no seu agir. Mas se meditarmos sobre essa relação, depressa se torna evidente a submissão do sujeito à acção que pratica, e descobrimos a dependência e passividade do sujeito relativamente à acção. A ideia de que a liberdade reside nesse poder de iniciar algo através da acção sofre um duro revés. Ao agir, o sujeito descobre-se passivo perante a sua própria acção, que o subjuga e o submete, isto é, que o torna sujeito a ela. Não é apenas a voz passiva que evidencia a natureza passiva do sujeito, a própria voz activa acaba por relevar que o próprio agente não é mais que um mero paciente.

Daí que algumas tradições falem da liberdade de uma forma paradoxal. O agir não agindo do taoísmo ou conhecer não conhecendo da mística apofática cristã são formas de sublinhar a situação paradoxal do sujeito. A liberdade começa por ser, deste modo, não a capacidade de agir ou de realizar de um sujeito, mas o resultado de um processo de libertação do sujeito relativamente à sua subjectividade e ao seu ser sujeito. Um libertação não apenas da passividade denotada na voz passiva, mas da própria actividade. O agir deverá, então, ser entendido como um processo em que quem age se deve libertar dessa mesma acção. Isto não significa que o resultado será a presença de um sujeito puro e desprendido de qualquer acção. Signifca antes o deixar fluir da acção sem ver nela e sob ela uma substância que a pratica, um sujeito poderoso, capacitado para produzir algo novo no mundo. Libertação da acção significa a libertação da acção de um sujeito e de uma subjectividade que a limitam.