Num post anterior foi afirmado que a literatura só existe na suspensão do contacto real entre corpos, na suspensão de um desejo para que um outro se possa instituir. Mas o que poderá acontecer se, de novo, for suspensa a literatura? Poderá a fusão do espírito do leitor e o da obra ser uma ponte não já para um mundo puramente desligado da materialidade do contacto, mas para o encontro entre corpos que, partilhando através da obra um espírito, se poderão eventualmente tocar? Poderá, cruamente, quem lê desejar não apenas o espírito daquilo que lê mas o corpo e o espírito de quem escreveu aquilo que agora é dado a ler?
Essa é uma possibilidade real, a qual comporta equívocos. Neste caso, talvez como em todos os outros, a literatura (diria o mesmo das outras artes, bem como da filosofia e da religião) é apenas um instrumento (uma ponte, uma escada) para um campo alargado da experiência existencial. A suspensão do contacto real que permite uma certa manifestação de eros, poderá agora tornar-se numa potência intensificadora da instauração de um novo desejo erótico, onde os corpos se tocam, se experimentam, se vivem e se abrem para além deles. O fundamental, porém, reside na intencionalidade que se desenha desse hipotético encontro do corpo que escreve com o corpo que lê. Representará uma queda ou uma ascensão?
Aquele que escreve quererá confirmar o seu ego empírico no reflexo de quem lê e quem lê quer o reconhecimento empírico, por parte do que escreve, da sua egoidade? É aqui que se instaura o equívoco fundamental. O deus eros é rebaixado ao nível da pura concupiscência humana, um verdadeiro pecado mortal, onde os egos se procuram a si mesmos, buscam no prazer e na fruição a autoconfirmação, tocados, no fundo, pela necessidade biológica e pela angustiante incerteza sobre a sua efectiva existência. Verdadeira queda daquele espírito que se tinha libertado através da literatura. Queda nos domínios biopsicológicos que se tornam, dessa forma, o horizonte, ao mesmo tempo a cadeia, onde corpos e espíritos se entregam à deriva e à errância, as quais são a manifestação não de um encontro mas da separabilidade infranqueável de dois entes. Deriva e errância são apenas a negação de um caminho, a impossibilidade de se abrir à verdade e, como consequência, à vida verdadeira.
Há todavia a possibilidade de se abrir um novo regime de desejo, uma nova experiência de eros. A obra poderá, eventualmente, mediar o encontro entre dois espíritos e dois corpos, e instaurar um novo regime de possibilidades experienciais, onde o desejo dos espíritos e o desejo dos corpos se tornem, na paixão erótica, num único desejo, não o desejo deste corpo por aquele, não daquele espírito por este, mas o desejo de uma abertura para além da realidade meramente empírica, para além das armadilhas do ego biopsicológico. Os corpos que se tocam e se dão, que se entrelaçam na entrega amorosa tornam-se símbolo e abertura. Símbolo no sentido estrito em que o masculino e o feminino se completam e se constituem na unidade originária do antropos. Símbolo também da unidade ainda mais originária do absoluto e do relativo, de Deus e da alma. Concomitante a esta simbologia é a experiência de abertura, abertura para além dos egos privados dos amantes, abertura para um self que é ao mesmo tempo de cada um e transcende cada um, abertura para uma experiência do outro, de si e, acima de tudo, do Outro. Experiência de desindividuação individualizante, passe o paradoxo, experiência de conhecimento. O homem conhece a mulher e a mulher conhece o homem, e ambos, como um só, conhecem aquilo que os ultrapassa, e experimentam o sentido último da virilidade e da feminilidade. Ora este conhecimento não se deve, de forma alguma, confundir com o conhecimento racional ou empírico, nem com a experiência do prazer que resulta da fruição do sensível e do afectivo. Talvez seja amor operante que, enquanto conhecimento, realiza des-realizando e des-reificando (diria mesmo, des-confirmando) os egos, conhecimento que, enquanto via, se abre para a verdade inscrita no mistério da vida. Conhecimento que, pela sua natureza operativa, vai para além da acção e da contemplação, como se Marta e Maria fossem ainda uma divisão artificial de um operar que é, na sua essência mais íntima, um contemplar, e não sendo este mais que a verdadeira e efectiva acção.
Tudo isto, porém, se afastou da questão estética colocada pela relação entre autor, obra e leitor, como se a arte fosse apenas um prelúdio a algo que a ultrapassa infinitamente.