O que Paul Ricœur vai sublinhar na sua hermenêutica é a objectividade da obra artística. O que está em jogo não é, como o pensava a hermenêutica e a literatura românticas, a apreensão do génio do autor, mas aquilo que ele chama o mundo da obra. A tese está escorada na ideia de autonomia do texto. Contrariamente a um acto da linguagem falada, o qual está suspenso das condições imediatas da sua produção, as obras escritas autonomizam-se do autor, da sua intenção, inclusive da sua interpretação. A leitura não será então uma forma de encontrar a intenção do autor, mas um processo de decifração do mundo que a obra transporta. Neste mundo haverá, por certo, muito do autor. As suas intenções, a sua cosmovisão, os seus aspectos ideológicos. Mas não é isso o fundamental. O fundamental é o universo proposto ao leitor, através do agenciamento artístico, e o confronto entre os universos da obra e desse leitor. A questão tornar-se-á mais interessante se recolocarmos o conceito de obra numa outra perspectiva. A obra será o suporte não de um mundo mas de um espírito. Entrelaçado à materialidade verbal e técnica da literatura está um dado espírito que se dirige ao espírito do leitor e o confronta. O corpo a corpo, em toda a sua materialidade, que o leitor trava com o romance, o poema, etc. inclui também um, digamos assim, um espírito a espírito, um confronto de espiritualidades. Também a sexualidade é um corpo a corpo, mas o seu fulgor resulta da presença do espírito nessa presença do corpo à alteridade do corpo do outro. A contiguidade dos corpos, assente na dinâmica do desejo, suporta a comunhão dos espíritos. Esta analogia permite compreender a literatura. Mas estamos perante uma analogia e não de processos idênticos. O corpo do leitor confronta-se com o corpo do livro, com a sua materialidade, e não com o corpo do autor. A literatura só existe nessa suspensão do contacto real. Essa suspensão não visa desviar ou transferir o desejo do leitor do corpo do autor para o corpo da obra, nem sequer sublimá-lo. Visa, outrossim, criar o espaço para um novo desejo, um espaço para uma outra emergência de eros. O deus manifesta-se agora em novas formas de desejar, de um desejo que se consuma na comunhão dos espíritos. Deste ponto de vista, as obras literárias, bem como as obras das outras esferas artísticas e, porventura, as da filosofia e da ciência, visam uma eclésia, uma comunhão geral dos espíritos, de espíritos que encontram na obra os motivos, mesmo os símbolos, para o seu reconhecimento.
Boas noites JCM
ResponderEliminarA ideia de "espírito da obra" não estará a querer implicitamente resgatar o autor, pelo menos a ideia do que representou na obra?
Margarida, boa noite. Resgatar o autor? Talvez, mas de uma forma em que o essencial é a sua aprendizagem da morte, da sua morte enquanto autor. Isso está no post 3: http://viandante-viator.blogspot.pt/2011/08/o-autor-e-obra-3.html
ResponderEliminarUm tema para mim apaixonante. AS obras literárias vivem dessa relação geradora de novos textos: uma relação de prazer que Jorge Luís Borges sugere na metáfora: "o sabor da maçã não está na maçã nem na boca de quem a come, mas sim no contacto entre ambas". Mas como a maçã é maçã e os livros são "papéis com tinta", falar de espírito da obra não será o resgatar, de algum modo, do autor?
ResponderEliminarAfinal o meu 1º comentário não havia fugido. Por isso foram dois e vai mais um...
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