segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Da pobreza e da miséria

Jacob Lawrence - The Migration Series. Panel 10: They were very poor (1940-41)

Só a partir do momento em que a pobreza se tornou uma noção exclusivamente económica é que se passou a opor, sem qualquer desvio, à riqueza. O conceito de pobreza teve uma amplitude metafísica, hoje perdida, que encontramos nos grandes místicos (por exemplo em mestre Eckhardt) e em Espinosa que nos fala da potentia da pobreza. Nesta aceção, os pobres viviam da sua própria pobreza, da sua perfeição intrínseca. E que riqueza era essa? A autonomia total, a força imensa de quem não tem nada e não quer nada e, por isso, escapa à apropriação e à lógica da propriedade. Assim entendida, a pobreza não se opõe à riqueza, mas à miséria. [António Guerreiro, Atual (Expresso de 15/12/2012), p. 36].

Todo o texto de António Guerreiro merece ser lido. Não diria, com o autor, que a pobreza teve uma amplitude metafísica, mas que ela constituiu e constitui - pois apesar de tudo não se perdeu por completo - um exercício físico e psicológico destinado a preparar o ser humano para a experiência, essa sim, metafísica. Esta experiência metafísica é aquilo que os místicos chamam a união com Deus, na qual o homem se abre para que desça sobre ele a presença do Absoluto. Tornar-se pobre significa nada ter, nada querer e nada poder, uma ascese de desprendimento e de desapossamento de si mesmo. 

A riqueza que essa pobreza permite, contudo, não é a que deriva da "sua perfeição intrínseca", pois, neste caso, era ainda colocar-se na esfera da propriedade, na esfera onde se possui a sua própria perfeição. Aquilo, porém, que é exigido ao homem é que a sua própria perfeição seja abandonada, pois não passa de uma ilusão do ego, de uma estratégia egoísta. A única riqueza reside na graça que o homem recebe do Alto, cuja presença ou ausência é completamente imprevisível, pois o Espírito, como se sabe, sopra onde quer.

Este era um ideal regulador que conduzia alguns homens e mulheres ao convento e, ao mesmo tempo, servia de farol que indicava a rota que os homens que viviam no século, entregues às paixões do mundo, deveriam seguir ou, em última análise, aspirar. A verdadeira riqueza era, desse modo, aquilo que não possuíamos, aquilo que uma dádiva gratuita fazia descer sobre os homens e que, por instantes, os raptava da sua radical pobreza (aquela que deriva de serem feitos de pó) e os elevava à luz do Absoluto e do Eterno. Num tempo de advento, é bom não esquecer tudo isto, pois na economia simbólica do cristianismo, não é por acaso que o Filho de Deus - curiosamente chamado, o Filho do Homem - nasce no ambiente mais pobre que se possa imaginar. Não é a pobreza que é o essencial, mas aquilo que desce sobre ela.

Mas esta pobreza e aqueles que a ela se entregam nunca podem advogar a miséria que atinge os homens fruto da avidez e do egoísmo de outros homens. Aquilo que as nossas sociedades produzem não são pobres, mas miseráveis. Miseráveis porque destituídos dos elementos materiais mínimos necessários a uma vida decente, mas também miseráveis, os outros, porque a cobiça da riqueza os torna incapazes de estabelecer laços com aqueles que forçam a tornar-se escravos. A verdadeira pobreza liberta o homem, mas a miséria escraviza-o. E as nossas sociedades são sociedades em que escravos e miseráveis ricos dirigem e sugam outros escravos desapossados pela violência ou pela artimanha da lei. É contra esta miséria que a pobreza do desprendimento se deve constituir como o padrão alternativo e a voz, ainda que silenciosa, acusadora.

4 comentários:

  1. Pobreza versus miséria?
    Miséria versus riqueza?
    Se entendermos pobreza como desprendimento dos bens materiais e um crescimento interior, o texto faz muito sentido, tudo muito bem sintetizado no último parágrafo.
    Teoricamente é tudo muito explicável, mas tente levar essas deduções a todos aqueles que perderam os seus direitos de escolha a ser "rico" ou "pobre" porque os senhores do mundo assim o quiseram!
    Eu sei que se nota agora uma maior demanda pelo caminho da tal "pobreza metafísica" na denominada "geração à rasca", mas...
    Esse caminho só é procurado porque a "riqueza monetária" bateu com a porta!
    Para quê ser hipócrita?
    Para esta geração que não tem futuro, a "pobreza" significa pelo menos a manutenção da sanidade mental (mais ou menos).
    Não acredito que se consiga alguma coisa de muito palpável. Sempre que a economia estiver de boa saúde, a maioria dos "pobres" volta à escravatura do consumismo porque vivemos há gerações numa sociedade consumista.
    Pobreza definida como a ausência dos bens essenciais ao bem estar ou à própria vida é uma realidade.
    Pobreza definida como "elevação" é cada vez mais uma utopia. Repare nas religiões que deveriam dar o exemplo. Só a título de exemplo, a opulência do Vaticano. E as relações entre as pessoas? Se não somos capazes de nos relacionar, como querer que nos elevemos?
    A pobreza vista do ângulo "Da Pobreza e da Miséria" será sempre uma minoria incapaz de ter uma voz, mesmo que silenciosa e incapaz de mudar seja o que for.
    Um pobre continuará a ser pobre no sentido que lhe dá o dicionário, assim como o rico e o miserável.

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  2. Há uma coisa com a qual concordo plenamente. "Sempre que a economia estiver de boa saúde, a maioria dos "pobres" volta à escravatura do consumismo". Quanto à pobreza como elevação ser uma utopia, estou em desacordo. Essa pobreza sempre foi a de poucos, aqueles que a escolheram. Escolheram-na não para mudar o mundo, mas para se confrontarem a si mesmos. Quanto a mudar o mundo é tarefa que me parece ociosa, ele mudará mesmo sem a nossa intervenção. Isso não significa que não devamos fazer aquilo que a lei moral dita à nossa consciência.

    Obrigado pela visita e pelo comentário,

    HV

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  3. Abstraindo-me da metafísica, centrando-me apenas no meramente pragmático, atrevo-me a dizer que a pobreza que aflige muitos homens só os conduz ao desespero, nunca ao despojamento, nunca ao "desapossamento de si mesmo".

    As nossas sociedades não produzem apenas miseráveis/responsáveis, produzem, igualmente, muitos pobres.
    Pobres sem esperança e sem rumo, pobres a quem não é permitido sequer "sonhar" com um qualquer despojamento. Pobres que não podem aspirar à dignidade, pobres, apenas e só, pobres.

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  4. Estou completamente de acordo. As nossas sociedades produzem demasiadas coisas que não deveriam produzir e esquecem-se de produzir outras coisas que são essenciais.

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