segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sonetos do Viandante (11)

Edward Burne Jones - Amor entre las ruinas (1894)


11. De todas as palavras, uma basta

De todas as palavras, uma basta
para que nesta hora a vida valha
mais que a dor ou a raiva que nos tolhe,
mais que a alegria falsa derramada.

Esqueçamos os dias que se gastaram,
bebamos sem limite ao ano novo,
que disfarçado chega pela sombra,
onde o terror se esconde silencioso.

Não falemos de orvalhos nem de ventos,
não falemos de estios incendiados.
Procuremos a pálida palavra

que ao coração anima nestas horas,
verbo de seda e musgo que ao cantar
abre ao amor a rosa tão cansada.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Paisagens espectrais

Carlo Carra - Depois do pôr do sol (1926)

Há um momento na história do Ocidente em que, libertando-se de Deus, os homens colocaram na razão toda a sua fé e toda a sua esperança. Em muitos aspectos, a razão não desiludiu os homens e pagou-lhes com abundante generosidade o culto que lhe foi prestado. Onde, porém, os homens mais necessitavam dessa razão, ela foi impotente para os satisfazer. Libertos das narrativas teológicas e dos símbolos ambíguos que um dia tinham dado direcção à vida, esperavam que a razão lhes desse uma orientação e um sentido. Ela multiplicou-se em propostas, programas e projectos, mas o esforço redundou sempre em algo risível. Hoje, apesar do intelecto calculador e científico parecer estar instalado em terra firme, a razão é um astro declinante. Na verdade, ela é um sol que se pôs e a luz que emite tem o condão de transformar tudo numa paisagem espectral e habitada por fantasmas. Para além da submissão ao trabalho, aos interesses dos mercados e à vida material, a razão, na sua autonomia, nada mais tem para propor, a quem nela tanto confiou, do que o vazio do espírito.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (116)

Caspar David Friedrich - City at Moonrise (1817)

Noite silenciosa,
pura sombra incendiada,
negra e branca rosa.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Da solidão

Richard Wilson - Solitude (1762-1770)

Como poderemos escutar o rumor da vida? Onde ela se torna mais plena e mais significante. Só na solidão a vida deixa escutar o seu rumor. Não numa qualquer solidão, mas naquela em que espírito, mesmo se acompanhado, encontra o seu espaço e o protege contra qualquer invasão. Estar só é entrar no segredo da nossa natureza e aceitar a nossa condição. Dizer que a solidão é a nossa condição tem a vantagem de mostrar que o solitário não é o produto de nenhuma decisão heróica, mas de uma conformação com aquilo que se é. Não há tragédia nem sequer drama na solidão. O que pode ser doloroso é o medo da solidão, a fuga perante a nossa natureza, a impotência perante o segredo que nos constitui e rumoreja no fundo de cada um.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A cidade

George Grosz - Metrópolis (1916-17)

A grande cidade é uma das tecnologias mais interessantes concebidas até hoje. Nela, o espírito encontra sempre novos caminhos, traça novas ilusões, cria novos prazeres. Nessa actividade febril, em que se descobre como criador, o espírito perde-se de si, aliena-se, e, exaurido, sucumbe às suas próprias criações. Daí a ambivalência que se sente perante a grande metrópole, o desejo de nela mergulhar e a injunção para fugir dela, como lugar de grande perdição, partir para o deserto, para aí o espírito se reencontrar e reconciliar consigo mesmo. O mais importante, porém, é que o espírito não fuja do lugar onde se encontra. Que saiba na metrópole encontrar o deserto, e no deserto descobrir a actividade fervilhante que a cidade lhe propõe.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (394)

Caspar David Friedrich - Árbol con cuervos

 394. Voam corvos sobre a árvore

Voam corvos sobre a árvore,
trazem uma sombra presa nas asas
e um rumor de saudade
quando poisam nos ramos.

Chegam e tudo escurece,
a vida, a luz do sol,
e as tarde de primavera
lembram noites de inverno.

Para que queremos a razão,
se temos um corvo na janela?
Basta-nos a névoa da manhã
e a dor do sol ao entardecer.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (115)

Thomas Cole - A Tornado (1835)

Terra e céu rasgaram-se
e o vento entrou pelo mundo:
dor e inquietação.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (393)

Edward Burne Jones - La Estrella de Belén (1890)

393. Vai chegar a noite definitiva e primeira

Vai chegar a noite definitiva e primeira,
a que nunca vem, a que nunca regressa,
a noite que não parte nem chega.
O silêncio acolhe os seus passos,
uma estrela suspende o fôlego
e abre-se como um farol no horizonte.

Os anjos deixaram de levitar,
os reis perderam-se no deserto
e os pastores esqueceram os rebanhos.
A vida oscila entre tumultuosas margens
e dezembro quase morto ergue-se
para que no homem haja Deus por imagem.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (114)

Alexander Cozens - A Wooded Path

Árvores e luz,
senda aberta na floresta.
Sombra, sombria sombra.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Do Advento ao Natal

Robert Campin - The Annunciation (1420-1440)

Poder-se-á pensar que, com a vinda do Natal, estamos a chegar ao fim do Advento. O Advento é sempre um tempo de expectativa, a expectativa da chegada. Se ultrapassarmos uma leitura racionalizante da simbólica cristã, poderemos compreender que o Advento não é uma mera época onde se prepara a vindo do Cristo, mas símbolo de uma expectativa eterna da chegada do também eterno Natal desse Cristo. Isto permite-nos pensar que todos os momentos do ano litúrgico são sombras temporais, símbolos materiais e relativos, de um conjunto de símbolos eternos e absolutos. Sao símbolos de outros símbolos. A sua imersão no tempo histórico e no tempo litúrgico comporta, então, uma ambiguidade. 

Por um lado, torna compreensível à razão e ao sentimento dos homens um conjunto de mistérios que não são nem racionais nem afectivos, que não pertencem ao tempo mas àquilo que está para além do tempo. Esse tornar acessível à dimensão psicológica do homem aquilo que ele não pode compreender significa uma convocação. Convocação para se elevar do que é sensível, afectivo e racional  para aquilo que ultrapassa a compreensão permitida pelo uso habitual do psiquismo humano. Convocação para o homem se elevar da dimensão histórica à dimensão da eternidade. Estes símbolos que estruturam, no cristianismo, a dimensão temporal da vida humana são aberturas para o que não é temporal, portas por onde o viandante poderá entrar e elevar-se ao mistério eterno do Ser.

Por outro lado, o facto desses símbolos se terem historicizado e ganho um lugar no calendário - no calendário litúrgico e no calendário civil - pode ter o efeito de obstruir a compreensão para a natureza fundamentalmente simbólica desses acontecimentos e reduzi-los a puros eventos históricos idênticos à queda do Império Romano ou a derrota de Napoleão em Waterloo. Reduzidos a acontecimentos históricos plasmados no calendário civil e litúrgico, os símbolos presentes no cristianismo tornar-se-ão a referência a coisas relativas e passageiras, cuja realidade ontológica não diferirá daquela que têm os acontecimentos humanos. Por isso, será importante recordar que este Advento que se aproxima do fim não é mais do que a sombra de um Advento eterno, expectativa e esperança absolutas.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (113)

Camille Pissarro - A View from Louveciennes (1870)

Uma nuvem rompe
a brancura azul do céu.
Presságio de inverno.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (392)

Asher Brown Durand - A Pastoral Scene (1858)

392. Quando olho as paisagens campestres

Quando olho as paisagens campestres,
penso no lento extermínio da terra,
nas ruas secas e vazias da cidade,
na perfeição que tudo levou.

E, em mim, acorda-se o vozear dos sinos,
o traço escuro de uma silhueta,
uns cabelos brancos sob o sol de janeiro,
alguém que passava curvado pelo tempo.

Pego em tudo isso e deixo coalhar a memória,
apago a luz que ela trazia consigo,
e carrego o peso das horas
para o esconder no silêncio do campo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (391)

Louis-Welden Hawkins - Procesión de las almas o Navidad, cuadro místico (1893)

391. O sopro silencioso de quem passa

O sopro silencioso de quem passa
e traz uma luz sobre a terra.
O rumor de um olhar na madrugada
e o barqueiro que exausto te espera.
A canção dedilhada num coreto
e o sinal breve que nos escapa.

Se fosse o meu destino ser poeta,
sob os umbrais escreveria
longas cartas de amor,
um tratado sobre a alma
e o texto breve de um epitáfio.

Mas aquele que escreve não tem destino,
mero sopro no silêncio tardio,
rumor de água e sinal de passagem.
De nada lhe vale a memória
nem as preces que ao coração exaltam.
Escreve na vida minguada
e aguarda a noite para que os olhos se fechem.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Da pobreza e da miséria

Jacob Lawrence - The Migration Series. Panel 10: They were very poor (1940-41)

Só a partir do momento em que a pobreza se tornou uma noção exclusivamente económica é que se passou a opor, sem qualquer desvio, à riqueza. O conceito de pobreza teve uma amplitude metafísica, hoje perdida, que encontramos nos grandes místicos (por exemplo em mestre Eckhardt) e em Espinosa que nos fala da potentia da pobreza. Nesta aceção, os pobres viviam da sua própria pobreza, da sua perfeição intrínseca. E que riqueza era essa? A autonomia total, a força imensa de quem não tem nada e não quer nada e, por isso, escapa à apropriação e à lógica da propriedade. Assim entendida, a pobreza não se opõe à riqueza, mas à miséria. [António Guerreiro, Atual (Expresso de 15/12/2012), p. 36].

Todo o texto de António Guerreiro merece ser lido. Não diria, com o autor, que a pobreza teve uma amplitude metafísica, mas que ela constituiu e constitui - pois apesar de tudo não se perdeu por completo - um exercício físico e psicológico destinado a preparar o ser humano para a experiência, essa sim, metafísica. Esta experiência metafísica é aquilo que os místicos chamam a união com Deus, na qual o homem se abre para que desça sobre ele a presença do Absoluto. Tornar-se pobre significa nada ter, nada querer e nada poder, uma ascese de desprendimento e de desapossamento de si mesmo. 

A riqueza que essa pobreza permite, contudo, não é a que deriva da "sua perfeição intrínseca", pois, neste caso, era ainda colocar-se na esfera da propriedade, na esfera onde se possui a sua própria perfeição. Aquilo, porém, que é exigido ao homem é que a sua própria perfeição seja abandonada, pois não passa de uma ilusão do ego, de uma estratégia egoísta. A única riqueza reside na graça que o homem recebe do Alto, cuja presença ou ausência é completamente imprevisível, pois o Espírito, como se sabe, sopra onde quer.

Este era um ideal regulador que conduzia alguns homens e mulheres ao convento e, ao mesmo tempo, servia de farol que indicava a rota que os homens que viviam no século, entregues às paixões do mundo, deveriam seguir ou, em última análise, aspirar. A verdadeira riqueza era, desse modo, aquilo que não possuíamos, aquilo que uma dádiva gratuita fazia descer sobre os homens e que, por instantes, os raptava da sua radical pobreza (aquela que deriva de serem feitos de pó) e os elevava à luz do Absoluto e do Eterno. Num tempo de advento, é bom não esquecer tudo isto, pois na economia simbólica do cristianismo, não é por acaso que o Filho de Deus - curiosamente chamado, o Filho do Homem - nasce no ambiente mais pobre que se possa imaginar. Não é a pobreza que é o essencial, mas aquilo que desce sobre ela.

Mas esta pobreza e aqueles que a ela se entregam nunca podem advogar a miséria que atinge os homens fruto da avidez e do egoísmo de outros homens. Aquilo que as nossas sociedades produzem não são pobres, mas miseráveis. Miseráveis porque destituídos dos elementos materiais mínimos necessários a uma vida decente, mas também miseráveis, os outros, porque a cobiça da riqueza os torna incapazes de estabelecer laços com aqueles que forçam a tornar-se escravos. A verdadeira pobreza liberta o homem, mas a miséria escraviza-o. E as nossas sociedades são sociedades em que escravos e miseráveis ricos dirigem e sugam outros escravos desapossados pela violência ou pela artimanha da lei. É contra esta miséria que a pobreza do desprendimento se deve constituir como o padrão alternativo e a voz, ainda que silenciosa, acusadora.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (112)

James Juszczyk - Brief (1974)

No céu um arco-íris.
As cores suspensas cantam
um mundo feliz.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (390)

Vincent Van Gogh - Almiar en un día de lluvia (1890)

390. Não há rio que justifique tanta água

Não há rio que justifique tanta água
nem tristeza que acolha tamanha dor.
Tudo se dissolve nestes dias,
a vida como ela foi,
a esperança que a ilusão trazia,
a casa onde a estirpe foi sonhada.

No futuro, tudo será melhor, dizem.
Mas da minha janela só vejo folhas caídas
e nenhuma primavera as trará de volta.
Só vejo luzes amarelas
que iluminam a amargura que escorre do céu
e alaga ruas soturnas e vielas fechadas.

Encosto-me à vidraça e olho a água que cai
e tudo em mim se esvai,
escorre lentamente para o chão,
deixa uma mancha de sombra azul
no lugar branco e calcinado
onde um dia sobre a tua poisei a minha mão.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Uma economia do dom

Tiziano - La venida del Espíritu Santo (1545)

L'un possède le don de parler avec sagesse ; l'autre, avec science. Un autre, le don de la foi ; un autre, le don de guérison ; un autre, le don des miracles ; un autre, le don de prophétie ; un autre, le don de parles diverses langues ; un autre, le don de les interpréter. Or, c'est un seul et même Esprit qui opère toutes ces choses : Haec autem omnia operatur unus atque idem Spiritus. (Jean-Joseph Gaume (1865) Traité du Saint Esprit)

Esta tradição viva da Igreja Católica de atribuir o conjunto das capacidades e potências presentes nos indivíduos, sob a denominação de dons, ao Espírito Santo sublinha uma coisa que, nos dias de hoje, se tornou quase incompreensível. Nenhum mérito nos pertence pela posse dessas qualidades. Elas foram-nos doadas, como sublinha a própria palavra dom. Pode haver em nós algum mérito na manutenção e desenvolvimento desses dons, mas a sua posse ou a sua falta não deixam de constituir para o indivíduo um mistério, um verdadeiro mistério do Espírito Santo, para usar os termos da tradição cristã. 

Este carácter misterioso presente na herança ou nos dons recebidos tem três consequências. Uma primeira coloca-nos no nosso lugar. Por mais dotado que eu seja, isso nada tem a ver com um mérito pessoal do qual possa orgulhar-me. Uma segunda consequência sublinha que os dons, não sendo mérito meu, apelam para a sua realização segundo uma perspectiva de serviço aos outros. Por fim, o dom, por não ser origináriamente meu, implica o dever de o desenvolver e de o consumar na realização do bem que ele contém. O dom traz consigo o imperativo da sua realização, da realização do Espírito doador que nunca deixa de estar presente em cada um dos dons com que presenteia os indivíduos. 

Nesta economia do dom, para usar uma expressão que remete para Marcel Mauss, percebe-se que somos parte de uma cadeia de reciprocidades, a qual estrutura a comunidade humana enquanto tal. E aqui podemos pensar mais fundadamente no mistério do Espírito Santo como o mistério da instauração das comunidades humanas, nas quais ele toma corpo e carne através dos dons distribuídos gratuitamente.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (111)

Piet Mondrian - Árvores em flor (1912)

Estranha floresta,
de árvores brancas em flor,
sem folhas nem giesta.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Arte e contemplação

Jesús de Perceval - Adán (1930)

Le rôle de Adam, (...), est de regarder la création, de la voir, de la reconnaître et de lui donner ainsi une existence nouvelle et spirituelle. Il imite et reproduit l'action créatrice de Dieu en répétant, dans le silence de son intelligence, la parole qui a donné la vie à toutes les choses vivantes. (Thomas Merton, Le Nouvel Homme, pp.65.)

Na economia da natureza, o papel central do homem é absolutamente espiritual. Esse papel está centrado numa atitude contemplativa. O homem, Adão, é aquele que olha, que vê, que contempla a criação, o mundo. É nesta atitude contemplativa que esse mesmo mundo ganha sentido, ganha uma existência nova e espiritual, uma existência que ultrapassa a mera materialidade com que o conjunto das coisas se dão aos sentidos e à imaginação animal. Contudo, a contemplação possui, ela própria, uma dinâmica, que a torna bem diferente de uma atitude puramente passiva. Contemplar é uma forma de mimesis, de imitação da palavra originária que chamou as coisas ao conjunto da existência. Compreende-se, então, que contemplar é uma forma de arte e que esta só é criadora porque imita, mima, a palavra originária cuja vibração trouxe do nada ao ser o conjunto de tudo aquilo que existe. Uma arte que não seja fundada na contemplação, nessa mimesis da palavra originária, não é arte mas pura poluição.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (389)

Agnes Martin - Canción (1962)

389. Uma melodia feita de cores e poeira

Uma melodia feita de cores e poeira,
a canção de coral e água,
todo o mistério de uma vida
recolhido num punhado de areia.

Olho-te e retenho o fôlego.
Espero o delírio de cada inspiração,
e em breves haustos entrego-me
ao sussurro da tarde,
nas tuas mãos tecidas de branco
e anémonas marinhas.

sábado, 8 de dezembro de 2012

O bezerro de ouro

Robert Delaunay - Saint-Séverin n.º 2 (1909)

As igrejas e catedrais góticas, mais que todas as outras, tinham no cerne da sua concepção o mistério que conduz o olhar do homem para cima, para aquilo que há de mais elevado no universo dos valores humanos. Esse estranho e vilipendiado mundo gótico, estruturado nos arcos ogivais, que ao fechar apontavam para o alto e simbolizam o mistério da vida, tinha a virtude de fazer coincidir a elevação com aquilo que era o bem supremo. Hoje os homens expulsaram Deus do alto. Muitas igrejas modernas fazem lembrar centros de conferências ou, em casos mais radicais, locais de espetáculo. A altitude e a elevação foram guardadas para as novas catedrais, as sedes dos grandes bancos, locais da nova-velha religião, lugar onde se oculta o seu santo dos santos. O bezerro de ouro tomou, mais uma vez, o coração dos homens.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (388)

Paul Klee - Open Book (1930)

388. Pego neste livro e desfolho-o

Pego neste livro e desfolho-o,
deixo que as páginas escorreguem,
e espalhem pelo chão um mar de letras,
rios de tinta negra,
o mistério inconsolável do teu coração.

No espasmo que segue a queda,
escuto a dor na quietação da tarde.
Tristeza a arder no peito,
corcel vibrante e desgarrado
que por terra recolhe as sílabas
com que desenha o livro da tua perdição.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (110)

Agnes Martin - Azul cadente (1963)

Paisagem anil
riscada sobre papel
lembra o céu de abril.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Efeitos especiais

Albert Bloch - Figures in silver light (study) (1943)

A vida é uma luta contra a opacidade, contra a nossa própria opacidade. Na verdade, se meditarmos um pouco, não há ser mais estranho e mais opaco a nós do aquele que diz eu quando falamos. Essa opacidade nasce, em primeiro lugar, da ilusão de que nada nos é mais conhecido do que nós mesmos, como se pelo facto de sermos sujeitos e objectos de conhecimento ao mesmo tempo facilitasse o acesso a esse objecto. Em segundo lugar, esse mesmo facto, o de sermos sujeito e objecto, é produtor de opacidade e de escuridão. Dividimo-nos e tornamo-nos estranhos a nós próprios. Por fim, o acto de dizer eu parece assegurar uma certeza certificada de que sabemos o que estamos a dizer, uma certeza que sabemos quem é esse eu. Ora, o eu é um lugar vazio - o pronome pessoal na primeira pessoa - que qualquer um ocupa quando toma a palavra e, ao calar-se, deixa vazio. Na realidade, não passamos de figuras banhadas por uma luz prateada. Somos opacos a nós mesmos, mas a tonalidade luminosa cria-nos a ilusão da transparência. Mas isso não passa de efeitos especiais.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (387)

Ando Hiroshige - A mountain in the snow (1834)

387. Cavalgo o frio trazido pelo inverno

Cavalgo o frio trazido pelo inverno
e entrego-me à solidão.
A montanha cobriu-se de neve,
os pássaros azuis partiram
e o sul é agora mais longe.

Improviso na tarde que cai
a luz que vencerá a noite.
Oiço o crepitar das labaredas
e as mãos, tão gélidas, aquecem
e abrem-se para o silêncio da escuridão.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (109)

Felip Brugueras - Paisage de la carrotxa (1994)

As cores de outono
anunciam floresta fora
o tempo do sono.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Solidão e mistério

Carlo Carra - Solitudine (1917)

Vivemos num tempo ambíguo relativamente à solidão. Por um lado, não apenas somos convocados para a vida em rebanho, como essa vida nos entra porta dentro sem que tenha sido convidada. Por outro lado, são inúmeros os seres humanos que vivem solidões indesejadas, abandonados à sua sorte, solidões que doem desesperadamente. A vida em rebanho e essa solidão indesejada são as duas faces da mesma moeda. Essa moeda é a alienação, o estranhamento a que as sociedades modernas parecem querer condenar os homens. Alienação significa aqui o estranhamento a si mesmo, à sua natureza mais funda, o estranhamento à essência que nos torna verdadeiramente humanos. 

Essa alienação tem ainda o condão de ocultar a necessidade que cada ser humano possui de solidão. Não da solidão negativa fruto da impotência, mas de uma solidão que permita o encontro de cada um consigo mesmo, com aquilo que de mais secreto habita no fundo dos homens. Essa solidão exige o silêncio. Em primeiro lugar, o silêncio exterior, o afastamento da algazarra feérica que anima a vida do rebanho. Em segundo lugar, o silêncio interior, o abandono das ilusões, mas também dos desejos e receios com que, continuamente, nos enganamos. A solidão, a verdadeira solidão, não implica o corte radical com os outros, mas uma vida temperada onde o estar só e o estar acompanhado se equilibram. Esse equilíbrio é uma condição necessária para que cada um se confronte com a verdade que traz em si, com o mistério que foi cifrado ao ser concebido e ter vindo à vida.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (10)

Albert Rafols Casamada - Viaje de noche (1981)
10. Escurece. Presságio desse reino

Escurece. Presságio desse reino
infestado de sombras, infestado
pelo terror aceso nessas mãos
que, assassinas, ardem pelos dedos.

Correm contaminados pela noite
rios cheios de solidão. Fantasmas pálidos
sussurram ao passar, querem a foz,
a luminosa lei do sal e luar.

Sombras prodigiosas deste mundo,
terras bravias e inóspitas calai-vos.
Deixem que a noite venha, flor sem pétalas,

caiar casas e muros, solidões
feitas de nuvens, pedras incendiadas,
o traço vagaroso, luz no mar.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (108)

Gustavo Torner - Erica, Arbórea, L

Um ramo partido
levanta-se para o céu.
Vai leve e dorido.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A via do viandante

Ernst Ludwig Kirchner - Il sentiero dell'alpe; Sentiero di montagna-paessagio montano con alpeggio (1921)

Muitas vezes pensa-se que, em oposição aos caminhos batidos, às sendas mil vezes palmilhadas, o viandante deve inventar novas rotas, caminhos que sejam singulares e só por ele transitáveis. Abrir um caminho não seria, nesse sentido, rasgar a terra por onde os outros passassem, mas dar o exemplo de encontrar o seu próprio caminho, de afirmar a sua singularidade, de se mostrar único. Tudo isto, por interessante que possa ser, ilude uma outra questão mais decisiva. O importante não é o caminho que se faz mas a forma como se caminha, como se viaja, como se peregrina. O inédito de cada viagem e a novidade de cada peregrinação não residem na estrada que se toma, mas na forma como o viandante a percorre. Não há via fora do viandante e aquele que ainda se preocupa com que estrada deve tomar, por muito que ande nunca sairá do lugar onde está.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (107)

Pier Luigi Lavagnino - Alberi (1969)

Tudo se desfaz.
Terra, céus, o coração
de amor incapaz.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (9)

Theodore Gericault - O beijo (1922)

9. Esse toque de sombra, essa queda

Esse toque de sombra, essa queda
infinita no abismo silencioso.
O escárnio de falar, suprema dor
de estar vivo na treva que nos cobre.

Rasgo-te na memória uma ruga,
entro na terra aberta como um pássaro
e canto em cada hora a tua figura
no rumor incendiado pelo vento.

Sempre que o deus nos olha, tudo cai.
As certezas que tínhamos são cinza,
montanhas calcinadas no horizonte,

restos de fogo e areia sobre o mar.
Entrego-me ao destino nessas mãos
e espero em silêncio a fria noite.