quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (300)

William Turner - Lluvia, Vapor y Velocidad (1844)

as primeiras chuvas
caem sobre a terra seca
vapores de outono

terça-feira, 11 de outubro de 2016

A leitora oblíqua

Balthasar Klossowski de Rola - Katia lisant

Tornei-me um voyeur. Tudo começou com um acaso. Cheguei à janela e, na varanda de uma casa há muito desabitada, estava ela a ler. Escondi-me para não ser visto. No dia seguinte, ela voltou. Um pé no chão e outro na cadeira onde se sentava. A saia, ela vestia sempre uma saia, era generosa comigo e oferecia-me a vista das suas pernas. Apaixonei-me, claro. Não pense que foi por causa das pernas. Seria pueril. Foi pela forma como segurava o livro e o olhava de soslaio. Lia e desconfiava do que lia, mas todos os dias se sentava a ler. Um dia dirigi-me a ela na rua. Disse-me: estava à tua espera. Fiquei atónito. Hoje não lê. Senta-se na minha cama, pega-me nas mãos e olha-me de viés.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (580)

Robert Motherwell - Na Caverna de Platão n.º 1 (1972)

580. curvado na caverna

curvado na caverna
platão cava
escava
o chão e o tecto
rasga o coração
e
descobre
uma réstia
de sombra
semeada na luz
da razão

(19/09/2016)

domingo, 9 de outubro de 2016

Renúncia

Albert Rafols Casamada - El Depósito (1981)

A vida material é orientada pela ideia de acumular. Os materiais acumulados exigem grandes depósitos. A vida do espírito procura, a cada instante, aquilo que não se pode acumular, pois quanto mais se acumula menos se tem. Quanto mais se partilha, mais há para usufruir. Por isso, não apenas se afasta do exercício da acumulação como começa, de facto, pelo abandono de todo e qualquer depósito. A renúncia ao que é próprio é a sua condição de possibilidade.

sábado, 8 de outubro de 2016

O centro negro

Albert Gleizes - O centro negro (1925)

O núcleo central do homem, aquilo que há de mais fundo nele, pode ser compreendido com um centro negro. Não porque  seja algo sombrio ou implique uma relação com o negativo. Pelo contrário, o excesso luminoso que o constitui é incompreensível para o homem. Ao tentar olhá-lo de frente fica cego. Olha para mas tudo o que apreende é a mais negra escuridão.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A queda de Ícaro

Marc Chagall - A Queda de Ícaro (1975)

Como em muitos mitos gregos, também no de Ícaro a incongruência que o leva à perda não está na sua pretensão de voar. Contrariamente a Dédalo, o que perde Ícaro é a desobediência e esta é marcada pelo excesso. Ao homem, mesmo se consegue asas para voar, não lhe é permitido aproximar-se demasiado da fonte da luz. Pode-se cruzar a tradição pagã clássica com a doutrina cristã do pecado. Ícaro desvia-se do caminho que lhe é próprio e permitido. Entra na errância e perde-se. A noção de pecado, se limpa dos depósitos beatos que acumulou, aproxima-se desta perspectiva simbolizada em Ícaro. Significa um desviar-se do caminho, errar na rota, entrar na errância.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (579)

Leopoldo 
Leopoldo Novoa - Relieve ceniza con mancha negra (1991)

579. uma mácula mancha

uma mácula mancha
de negro
a cinza
                    cresce a sul
dos olhos
um eclipse
do branco
perdido no abraço
enfermo
          a leste da escuridão

(16/08/2016)

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Ascensão

Ángel Mateo Charris - Air Angelus (1999)

Sentado na varanda, costumava vê-la trabalhar. Era meticulosa e um pouco lenta. Não seria muito velha, embora, vista de longe, o aparentasse. A gravidade devorava-a. Por vezes, parava, encostava-se à enxada ou à forquilha com que trabalhava. Olhava longamente o céu, como se sentisse saudades de alguma coisa. Logo voltava ao trabalho. Era assim do nascer ao pôr do sol. Um dia, o descanso prolongou-se. Isso perturbou-me, confesso. Estava habituado à rotina. Olhei-a com mais atenção. Quando o crepúsculo começou a cair, o corpo dela estremeceu. Com violência. Depois - havia um silêncio opressivo, recordo - começou a elevar-se. Os braços eram agora asas. Um anjo, pensei. Não a tornei a ver.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (299)

Nicanor Piñole - El Cielo

brancos sobre azuis
espelham o mar nos céus
ondas e silêncio

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Do avanço

André Louis Derain - The Turning Road (1906)

Em qualquer área da vida do espírito - e qualquer actividade humana, por física que seja, é sempre uma actividade espiritual - o caminho está longe de ter a configuração de uma recta, uma espécie de estrada que se abre, sem qualquer curva, à frente dos homens e que não teria fim. O caminho é infinito, certamente, mas obriga a voltar atrás uma e outra vez, numa aparente circularidade que, vista de fora, se percebe como uma espiral, onde o viandante vai avançando, mesmo quando é obrigado a retroceder. Por vezes, é no próprio retrocesso que se encontra o efectivo avanço.

domingo, 2 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (578)

Jacinta Gil Roncalés - Búsqueda del infinito (1991)

578. procuro o infinito

procuro o infinito
no mistério
das cores
no tumulto
do azul
aberto ao ardor
de uma nuvem
de branco
tinta
de sangue e
um rasto rosamarelo

(16/08/2016)

sábado, 1 de outubro de 2016

Do crescimento


A vida espiritual tem por finalidade tirar os seres humanos da sua menoridade, do fascínio que sobre eles exercem os objectos do mundo e, assim, os prendem às aparências. Por isso é frequenta a analogia com a vida dos cereais. Também os seres humanos são sementes deitadas à terra. Grãos que germinam e têm a possibilidade de crescer, de se tornarem naquilo que potencialmente são. O culto romano da deusa Ceres não deve ser apenas lido como o sintoma de uma dependência dos homens dos cereais. Ceres provém da raiz indo-europeia "Ker", que significa crescer. O crescer dos cereais, protegido pela deusa, era um modelo que orientava a própria vida do espírito. O trabalho agrícola mais que um labor físico era uma actividade espiritual.

Pintura de Oscar Dominguez - Ceres (1952). Guache sobre papel. Dimensões: 207 x 295,5 cm.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O anjo negro


Por que razão o corvo, apesar de livre e selvagem, está tão ligado a mim? Na verdade, não sei. Um dia, estava muito cansada e desiludida com a vida, aproximei-me da beira de um penhasco. Tinha tomado uma decisão e cumpri-a. Mal sinto os pé no ar, oiço, como se fosse um trovão, o crocitar de um corvo. Um instante depois, senti-me puxada para cima e depositada na beira do precipício. Pode não acreditar, mas um corvo gigantesco estava ali. Aos meus olhos, começou a diminuir até ao tamanho que um corvo deve ter. Na minha consciência ouvi uma ordem: vai para casa! Obedeci. Não há dia que ele não me visite.

* Desenho de Caspar David Friedrich - The Woman with the Raven at the Abyss (1801).

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Convite à sabedoria

Charles Lapicque - L’invitation à la sagesse (1961)

Ao vir ao mundo, os homens, todos os homens, são convidados à sabedoria. O convite - um estranho convite, diga-se - não parte de um mestre particular ou de qualquer instituição. Tudo o que acontece aos homens é esse convite. Por vezes, ele surge como delicada solicitação; outras, como violenta intimação. Na verdade, é sempre e só o mesmo convite.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (577)

Pier Luigi Lavagnino - Alberi (1969

577. árvores arvoradas

árvores arvoradas
no silêncio
dos campos
as raízes rasgam
a terra
e os ramos
tocados de verde
sopram ao vento
a soledade
sombria do céu

(16/08/2016)

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Para quê?

Gwen John - A Corner of the Artist’s Room in Paris (1907-9)

Um dia sentar-me-ei naquela cadeira e olharei a manhã. Para quê?, pergunta-me, inquieta, a manhã. Deixo correr os olhos pelo muro da frente, pelo azul do céu, pela macieira desgrenhada que ainda não vejo. Fico em silêncio, e a manhã, entrando pela janela, abana-me e insiste: Para quê? Não sei o que dizer, pois tudo o que sei é pintar, distribuir as cores pela tela, fazer nascer a luz e a sombra. Sento-me, então, ao cavalete e pinto, pinto a cadeira onde me hei-de sentar, a janela por onde veja o mundo, o livro sobre a mesa e a manhã que me olha atónita e não cessa de perguntar: para quê?

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Da profundeza

Georges Rouault - De profundis (1917-27)

O ser humano é um habitante do mundo do meio. Não pertence nem ao território rarefeito do alto, nem às terras inóspitas das profundezas. Essa vida no mundo mediano, porém, limita-lhe o olhar e o desejo. Acontece, muitas vezes, que, arrastado para essas profundezas, fazendo a experiência da queda e do adverso dos baixios, ele ergue os olhos para cima e o seu desejo leva-o para além daquilo que cabe ao homem.

domingo, 25 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (298)

Paul Cézanne - As margens do Marne (1888)

das margens do rio
avistam-se sombras na água
flutuam e passam

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (576)

Jacqueline Lamba - Ciel Noir (1986)

576. um céu de seda

um céu de seda
negra
desce na rua
coberta de neve
e a noite
cai
na neve negra
de uma seda
celestial

(10/08/2016)

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

O primeiro passo

Frantisek Kupka - O primeiro passo (1909)

A glória do primeiro passo, na opinião comum, resulta da combinação do início de um caminho com a definição de uma direcção. Não se pensa, porém, no negativo desta glória. Todo o primeiro passo é já afastamento, abandono, o começo de um esquecimento. Toda a glória funda-se assim na dor, numa experiência traumática, naquilo que as tradições monoteístas chamam queda.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Na casa de Misia

Pierre Bonnard - A casa de Misia (1906)

Foi na casa de Misia que a conheci. Quando chegava, ela já estava. Sentada, na varanda, lia em silêncio. Era frugal nas palavras. Se os encontros da tarde se prolongavam pela noite, ela excluía-se de qualquer animação. Olhava para todos nós, os seus olhos eram um incêndio contido. Com o tempo compreendi que ninguém lhe dirigia a palavra, mas não havia qualquer hostilidade. Apaixonei-me, confesso. Uma tarde, já ao crepúsculo, não me contive. Dirige-me a ela e perguntei-lhe o nome. De imediato, se desvaneceu. Senti uma mão no ombro. Era a dona da casa. Sorriu e disse-me: está na hora, Orfeu, de nos constares uma história.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A janela fechada

Pablo Picasso - La ventana cerrada (1899)

Talvez seja por medo do exterior que o homem se fecha em si mesmo. A janela fechada simboliza essa oclusão. O fechamento da janela não resulta, contudo, de uma decisão. Ele é, mais que tudo, o resultado de um processo que começa talvez antes do nascimento. Toda a educação visa solidificar o fechamento de si e reforçar as portadas da janela. Por vezes, alguém, sem saber claramente a razão, arromba a janela e sai de si. É aí que começa a arte, a filosofia ou a experiência mística. Todas elas são o fruto de um acto de violência, de uma insubordinação contra a ordem que encerra o homem na clausura de si mesmo.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (575)

Paul Ackerman - A l'aube (1962)

575. sonho o ardor

sonho o ardor
da aurora
na praça
fria e fétida
da noite
componho
com traço
de tristeza
a angústia
do sonho
sonâmbulo
ao despertar

(10/08/2016)

domingo, 18 de setembro de 2016

Sobre a camuflagem

Pancho Gutiérrez Cossío - Camouflage (1921)

A camuflagem, em aparência, é um exercício que visa evitar o reconhecimento pelo outro. Fundamentalmente, quando este outro é um inimigo ou um predador. A camuflagem surge, deste modo, com um exercício vital. A sobrevivência depende da arte do disfarce. Rapidamente, a espécie humana transferiu a dissimulação da esfera da luta pela sobrevivência para a da vida social, como se sentisse também nesta uma ameaça. Sem dar por isso, tomou aquilo que é um mero expediente de sobrevivência como sendo a sua própria natureza. Tomamos a máscara, ou o efeito de camuflagem, como a nossa efectiva realidade. No momento em que o homem sente um suspeita sobre a distância que vai entre a camuflagem e a realidade de si mesmo, nesse momento começa a aventura espiritual. Até ali, o que via era apenas e só o animal acossado que também é.

sábado, 17 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (297)

Albert Bierstadt - Autumn Woods (1886)

outono nos bosques
vem vestido de verão
rios de solidão

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O positivo e o negativo

Gerardo Rueda - Positivo - Negativo (1965)

A distinção entre o positivo e o negativo será uma das formas de classificação mais básicas usadas pela espécie humana. O problema é que esta classificação, como todas as outras semelhantes, nada nos diz sobre a coisa classificada, mas sobre aquele que atribui a classificação, que projecta, ao classificar, os seus desejos e os seus temores. Estamos ainda no domínio do pensamento mágico. A vida espiritual começa onde cessa a necessidade de classificar, onde acaba a magia. O positivo e o negativo são grilhões que prendem o espírito à ilusão, ilusão que ele próprio projecta sobre o mundo.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (574)

 
Victor Vasarely - Quasar (1966)


574. quase um quasar

quase um quasar
a luz vinda
do negro negro
inominável
incendeia-se de azul
nas partículas
frias dos teus
olhos
nas trevas tocadas
trocadas
na alegria
negra da noite

(10/08/2016)

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O jogador secreto

René Magritte - O jogador secreto (1927)

Confesso, sempre tive o secreto prazer de jogar. Porquê o segredo? Está enganada. Por que haveria de ter vergonha de competir? Não, não, também não é verdade que tema ser tomado por criança presa à diversão. Todos estes anos ao meu lado e ainda não me conhece. Não é a vitória, nem o risco, nem o divertimento. É amor, jogo por o amor à regra, e não há jogo sem uma estrita regra. Sou vítima da mais secreta e vergonhosa das paixões, a paixão por aquilo que limita e oprime.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A demanda

Salvador Dali - El farmacéutico de Ampurdán que no busca absolutamente nada (1936)

A vida do espírito começa como uma demanda. Alguém sente que perdeu alguma coisa ou que lhe falta algo. Parte, então, em busca daquilo que sente em falta. A demanda arrasta-o e traz com ela o sentimento da perda e da inutilidade. Será que haveria alguma coisa para buscar? Quando descobre que nada havia para demandar, sente, no mais fundo de si, a alegria de ter encontrado o que procurava.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Da cegueira do amor

Joaquín Mir - Amores cegos (1900)

A paixão amorosa é vista, muitas vezes, como o resultado de uma cegueira. De certa maneira, é assim. Contudo essa cegueira deve ser compreendida como aquela cegueira que atinge certos profetas, para que eles possam ver mais longe e mais fundo. A cegueira do apaixonado permite-lhe ver algo que só perante ele se manifesta e que só o seu estado de cegueira lhe permite ver. A paixão é um convite a ver outra realidade e a viver de uma outra maneira. A impotência dos homens para tal, a sua incapacidade em persistir no caminho que diante deles, por instantes, se abriu, transforma tudo numa ilusão que o tempo acabará por destruir. E de cego de amor transforma-se em cego real, isto é, vê aquilo que todos vêem.