quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Um lugar de epifania

Rita Rutkowski - Campo da Verdade (1961)

Nunca se deverá confundir a verdade como adequação das nossas palavras aos factos e a verdade como revelação. O campo da verdade não é o sítio onde alguém profere a verdade. O campo da verdade é o lugar onde a verdade se revela. Onde tem o ser humano o seu campo da verdade? A vida é o campo onde a verdade se manifesta e se manifesta não por palavras mas naquilo que revelamos ao viver. A vida de cada um é sempre, saiba-o ele ou não, um lugar contínuo de epifania. A manifestação daquilo que ele é e do destino que o chama.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Haikai do Viandante (162)


Entre a pedra dura
brota, sob a branca luz,
a vida que cura.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Um caminho sem mapa

Frantisek Kupka - Composição em azul (1925)

Não há mapas ou cartas que ajudem o viandante no seu caminho. Na verdade, o caminho de cada homem, mesmo o do mais previsível dos homens, é sempre inédito e nunca cartografado. Por vezes, há viandantes que deixam atrás de si aquilo que parece ser um mapa, que poderá ajudar outros viandantes. Isso, porém, não passa de um equívoco. O que parece um mapa seguro e passível de ser seguido não passa de uma composição, onde alguém deixou o testemunho do caminho que trilhou, caminho esse que, mal foi trilhado, logo deixou de estar disponível. Aquele que quer fazer a viagem para o centro de si mesmo, para o que há de mais oculto e secreto em si, pode ver como os outros compuseram o seu caminho, mas deverá saber que para ele aquela composição é inútil, pois o seu caminho é singular e só por si mesmo pode ser trilhado.

domingo, 13 de outubro de 2013

Folhas mortas

Egon Schiele - Árvores Outonais (1911)

Tudo o que se passa na natureza pode constituir-se em símbolo. Se uma metáfora ou uma metonímia introduzem uma certa equivocidade no discurso e no pensamento vulgares, o símbolo aumenta exponencialmente esse grau de equívoco. Em primeiro lugar, porque os símbolos dão que pensar, convocam o logos, para, logo de seguida, o humilharem, ao tornar evidente a impotência da razão para lidar com eles. Em segundo, dirigem-se à experiência viva do homem, suscitando caminhos, abrindo veredas, estabelecendo inesperadas pontes entre margens que a experiência corrente nunca ligaria. 

Olho as folhas mortas que se desprendem das árvores, quando chega o outono. É o ciclo da vida. Mas se tomar a queda das folhas como símbolo, liberto-me da experiência meramente biológica da morte e renascimento da natureza, para poder entrar no reino do espírito. As folhas das árvores que caem simbolizam tudo o que precisamos de abandonar. As nossas crenças, os nossos desejos, os nossos prazeres, as nossas dores, os nossos objectivos, as nossas ilusões e os nossos sonhos. Tudo isso não passa de folhas mortas. Despidos, entramos no inverno, nessa noite escuro que espera o viandante que caminha para a luz.

sábado, 12 de outubro de 2013

Poemas do Viandante (436)

Ramón Casas Carbó - Flores deshojadas (1894)

436. Toco no orvalho que escondes

Toco no orvalho que escondes
e oiço o murmúrio do mar
sob o império da minha boca.

Um silêncio de azul cobre-te
e em cada mão há uma rosa
que desfolhada me aguarda.

Nestes dias de outono, canto
o teu corpo macerado no amor,
a espera com que te entregas

na noite, perfumada e silenciosa.
Púrpura descida dos céus,
ave de luz canta em mim.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O passeio do viandante

Henri Edmond Delacroix Cross - La Promenade (1897)

Há na viagem momentos de puro passeio. Neles, o viandante medita sobre a própria viagem. De onde veio? Para onde vai? Não se trata, todavia, de fazer a contabilidade e de se certificar daquilo que perdeu e daquilo que ganhou, pois ganhos e perdas permanecem obscuros para o coração dos homens. Também não é o caso de se pensar, como Rousseau, um sonhador solitário. O passeio é o momento em que o viandante se funde mais no caminho e, na sombra dessa fusão, se prepara para prosseguir mais determinado e mais destemido em direcção daquilo que o chama.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Do verdadeiro encontro

Edvard Munch - Meeting (1921)

Os verdadeiros encontros são sempre inesperados, acidentais, filhos do acaso. Mas depois de acontecidos, logo se repara que os regeu não o indeterminismo mas a pura necessidade. Mais uma vez deslizamos na pura contradição. Os verdadeiros encontros preparam-se em nós, sem que saibamos o que está a ser preparado, sem que saibamos o que nos espera, sem que saibamos o que deveríamos sequer esperar e encontrar. Não há nada mais secreto que um verdadeiro encontro, embora não haja nada mais cristalino que os verdadeiros encontros.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Haikai do Viandante (161)


Espuma na areia.
Vento e memória de água
que o Estio incendeia.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

De porto em porto

Terence Cuneo - De Puerto a Puerto

Um porto não é um lugar para permanecer. O viandante chega e, mal põe os pés em terra, logo se prepara para partir. O seu lugar não é a terra firme da certeza, mas o mar revolto e as trevas da noite. Atrás de si apaga-se o rasto e é como nunca houvesse por ali passado.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A música das esferas celestes

Francisco Iturrino - Romaria (1905-1909)

A tradição religiosa ocidental, cujo núcleo é o cristianismo, é atravessada por uma ambiguidade que nos pode deixar perplexos sobre o significado da vida neste mundo. Por um lado, ela é um vale de lágrimas onde os homens suspiram, gemem e choram. Por outro, é uma romaria, onde a peregrinação e a festividade se combinam num arraial em perpétua deslocação. Facilmente se percebe como estas duas concepções reflectem a visão do inferno e a do paraíso celeste. Mas isso é secundário. O essencial é compreender que as visões não devem ser opostas mas vistas como complementares. Sim, a vida pode ser um vale de lágrimas - para muitos, pelo sofrimento recebido, uma antevisão mesmo do inferno - mas aquele que peregrina, que vai na romaria, atravessa esse vale de lágrimas dançando e cantando, pois aquilo que chama por ele e o guia soa-lhe no coração como a mais pura e envolvente música. Provavelmente, a música que o velho Pitágoras dizia provir da revolução das esferas celestes e para a qual o hábito nos tornou surdos.