quinta-feira, 20 de junho de 2013

Haikai do Viandante (148)

Caspar David Friedrich -  Doorway in the Fürstenschule Meissen (after 1835)

Súbito mistério,
porta aberta para a rua:
luz do teu império.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A sombra

Albano Vitturi - L'ombrellone (1930)

O homem não suporta a luz, o seu regime é o claro-escuro, o meio termo entre a luminosidade pura e a completa ausência de luz, as trevas. A sombra torna-se uma possibilidade, a possibilidade do homem caminhar em direcção à luz, avançando de "claridade em claridade", como se o seu espírito precisasse de se ir aclimatando, pouco a pouco e com elevado esforço, ao luminoso. A sombra é o anjo da guarda daqueles que aspiram caminhar para a luz. Protege-os e refreia-lhes o ímpeto. A sombra é o sinal da fragilidade do homem e uma dádiva. É também um perigo. Quando o homem pensa que o seu destino é a sombra, perde a luz que o orienta e começa a cair nas trevas.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Estátuas de Sal

Raquel Forner - Mulher de Lot (1935)

Um dos episódios mais estranhos do Antigo Testamento é o da transformação da mulher de Lot em estátua de sal. A fuga da família de Lot, aquando do castigo de Sodoma e Gomorra, tinha como condição não olharem para trás. Esta estranha condição não é diferente da que foi imposta a Orfeu na sua tentativa de libertação de Eurídice do reino da morte. Não olhar para trás, não procurar a certificação do caminho com uma visão retrospectiva. Poder-se-ia ver nesta história da mulher de Lot ou no mito de Orfeu uma certa atenção ao futuro. Isso, porém, seria falhar o essencial. O castigo de Orfeu ou da mulher de Lot deve-se à incapacidade de estarem presentes, de se moverem aqui e agora, de se deixarem seduzir pelo que fica para trás ou pela necessidade de uma certeza. Em ambos os casos, o que está em jogo é o desejo, o desejo de uma certeza, mas também o desejo de algo que passou, e cuja memória, certificada pelo olhar retrospectivo, petrifica o espírito e o transforma numa estátua de sal.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A visita

Pablo Picasso - A visita (1902)

Há uma dimensão social da visita, uma dimensão que a inclui no processo de sociabilização e de estruturação comunitária. A visita aproxima e, ao mesmo tempo, é sintoma de uma certa partilha de interesses. Mas olhar o acto da visitação apenas na sua dimensão social e comunitária é perder aquilo que ela simboliza de essencial. A visita é também um encontro entre espíritos, o contacto entre iguais, a participação de uma comunidade e de uma comunhão que ultrapassa a vida social e a sua regulação moral. As verdadeiras visitas são aqueles que assinalam um encontro e uma identidade ontológica. As visitas essenciais podem ser de muitas e diferentes naturezas, mas fazem parte de uma geografia onde os que estão a caminho entretecem laços que os auxiliarão a chegar a esse destino que não tem meta ou fim.

domingo, 16 de junho de 2013

A cruz invisível

Paul Gauguin - O Cristo amarelo (1889)

A cruz foi um dos símbolos centrais - o mais central de todos eles - do mundo ocidental. Lentamente, porém, a cruz foi desaparecendo do espaço público, foi-se tornando invisível, foi esquecida e, para muitos, tornou-se desconhecida. A cruz é um símbolo muito desagradável, pois recorda aos homens aquilo que eles insistem em não querer ver. Lembra-lhes não apenas a sua condição mortal mas a natureza frágil e finita do seu corpo, de um corpo que é jogado, ao sabor de circunstâncias que ele não controla, entre o prazer e a dor. A cruz remete para a dimensão da dor e isso torna-a, para a consciência alienada dos homens modernos, absolutamente insuportável. O pior, porém, é que a cruz - usada pelos romanos no castigo dos escravos - torna patente a impotência dos homens e o arbítrio dos poderes. Na cruz estão todos os que são destituídos de poder, todos a quem o arbítrio dos poderes distribui sofrimento e injustiça. E é por isso que a cruz se torna invisível e, para muitos dos que lá estão crucificados, insuportável, pois recorda-lhes que a vida é, na verdade uma via crúcis

sábado, 15 de junho de 2013

Haikai do Viandante (147)

Emilio Sánchez Perrier - Atardecer sobre la ribera del Guadalquivir (1883)

No Guadalquivir
vê-se a vida entardecer:
o dia vai partir.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Poemas do Viandante (421)

Ramón Casas Carbó - Desnudo (1903)

421. O teu corpo cresce para as minhas mãos

O teu corpo cresce para as minhas mãos,
toca-as com o vidro ardente do amor,
e espera o mistério insondável dos seios
a cantar na luz irisada da tarde.

O puro silêncio da boca queima
e os meus lábios esperam o alvoroço dos teus,
a púrpura azul da noite,
o cantar dos dedos sobre a pele.

Uma súbita sombra irrompe,
traça um vestígio de sol no rumor do ombro
e os braços abrem-se luminosos
para me encarcerar na luz do ardor.

Fecho os olhos no teu corpo
e canto o odor que se desprende de ti.
Violetas, rosas, um tumulto de cores
abrem-te para o desejo que canta em mim.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Arrancar a máscara

James Ensor - O teatro de máscaras (1908)

A máscara não é apenas um instrumento da antiga tradição dramatúrgica grega e do culto de Diónisos, nem um acessório carnavalesco. A máscara é o nosso ser para os outros, a face com que representamos e nos presentamos na vida social. Ela tem, nesta última dimensão, uma função de protecção do sujeito na espaço público aberto. Essa função de protecção torna-se, a breve trecho, uma função de representação. O medo de sermos esmagados pela abertura perante os outros leva-nos à representação. De seguida, passamos a crer que somos aquilo que representamos. A máscara já não é sentida como a protecção de si perante a ameaça do outro mas a nossa verdadeira realidade. Nesse momento, entramos no caminho da mentira a nós mesmos. Uma mentira racional, cada vez mais racional e, por isso, cada vez mais geradora de crença, de uma falsa crença. A aventura do espírito, porém, significa o arrancar da máscara, o parar da representação, a suspensão da mentira a si. A pergunta quem sou eu? não é uma mera questão de retórica inscrita no começo de uma qualquer antropologia filosófica. Ela resulta da perplexidade com que o mascarado descobre, ao arrancar a máscara, que toda a vida mentiu a si mesmo.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

O olhar da noite

Cruzeiro Seixas - Quando a noite nos olha (1989)

Não se trata de estarmos na noite, de caminhar nela, mas de sustentar o seu olhar. O que significará olhar a noite nos olhos? A noite como metáfora da ausência de luz é ainda um placebo tranquilizador. É preciso ir mais longe, é preciso descer. Não é apenas a ausência de luz que se esconde na metáfora da noite, é a própria ausência de ser, é o nada. No olhar da noite é o nada que nos olha, é a dissolução do mundo, é o rasgão do tecido com que construímos as nossas imagens, as nossas crenças e as nossas esperanças. No olhar da noite, tudo isso se dissolve e o viandante, sem norte, abre mão de si e espera que a noite o recolha.

terça-feira, 11 de junho de 2013

O viajante invisível

Vieira da Silva - O passeante invisível (1951)

Um rasto de luz, apenas. A tradição moderna, que tem em Descartes e na sua angustiante busca da certeza um primeiro marco, é a mais avessa das tradições à aventura do espírito. Nela, o espírito reduziu-se à subjectividade, e tudo gira em torno do sujeito, seja a glória e a honra, seja a humilhação e a patologia. Mas todas essas figuras da vitória e da derrota do sujeito são apenas a compensação de um sentimento de desconfiança perante a possibilidade da fé no sujeito ser falsa. A aventura espiritual é, antes de mais, uma luta contra a ilusão da subjectividade. Aquele que se põe a caminho dirige-se para a hora em que se torna no viajante invisível. Ao passar, não deixa pegada nem sombra de corpo, apenas um rasto de luz.