quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Poemas do Viandante (49)

49. CANTO

o peso da palavra
gota de orvalho
a límpida manhã 

dessa voz

se  as luzes acendiam
empurravam a noite
para o deserto

em silêncio
deus cantava

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Poemas do Viandante (48)

48. SOMBRA

tremem as folhas
sob o império
do vento

o sino repica
na sombra
do silêncio

e a mão desagua
na praia
do sentimento

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Poemas do Viandante (47)

47. CLAREIRA (2)

um enredo 
de papel
o feixe de ervas
à cabeça
e de súbito 

um segredo
traz a noite
à clareira 

da tarde

domingo, 13 de setembro de 2009

Poemas do Viandante (46)

46. UM MISTÉRIO

as ervas
juncam a boca
sabor agreste
trazido
pelo vento 

da infância

às vezes
um presépio
a clareira da noite
mistério de luz

e abundância

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Poemas do Viandante (45)

45. IMPÉRIO

parto
o barco
aparelhado

velas 
a água do mar

os ventos
calam-se
sob o negro
império
do luar

Força

Há alturas em que tudo se dissolve, mas não é a luz que vem e ilumina o fundo da alma. É antes um fogo caótico, o redemoinho da vida que tudo engole e despedaça. No cérebro abrem-se fracturas e o coração é um rio seco, abandonado pelas águas, de vegetação morta, povoado de fantasmas. Tudo então se multiplica, e se se perde a segurança que a unidade de si dá, não é porque se tenha adentrado mais e mais no caminho. Tudo parece ter voltado atrás. Como Sísifo, recomeço a subida, mas que força será aquela que pode vencer a ausência da minha própria força?

domingo, 6 de setembro de 2009

Poemas do Viandante (44)

44. CLAREIRA

a rede
animais prendia
o ramo partido
da macieira
cachos
a despontar
nas videiras

e o vento
noite fora
terror e cinza
apenas clareira
que se abria
no lugar
onde o coração
dormente
adormecia

sábado, 5 de setembro de 2009

Deixar vir

Deixar vir a noite com o seu silêncio, deixar vir a incerteza que a escuridão traz, deixar vir o sussurro da Voz que ecoa para lá do horizonte.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Poemas do Viandante (43)

43. SOBRE

sobre o rio
silêncio
de flores
espreita
a primavera

sobre o mar
nuvem
de cobalto
na voz
que espera

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Esquecimento

Esquecer todos os projectos, os fins e os meios, esquecer-me até de esquecer, e deixar acontecer o puro devir do Espírito, segundo a lei que não conheço, a vontade que não domino, o fim que me ultrapassa. O esquecimento do esquecimento, eis a divisa que brilha no pendão.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Poemas do Viandante (42)

42. SÓS

inclino-me
para a mudez
da tua voz
e no segredo
arvorado
pela noite
canto-te
como se
estivéssemos
sós

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Dissipação

Passam os dias e o deserto cresce como uma ameaça ou uma promessa. Se quero agarrar o caminho, tudo se dissipa e é névoa, onde os olhos impotentes se cerram. Que faço tão longe de Ti? Que faço nesta prisão onde devaneio amarrado às sombras da velha caverna? São dias de chumbo os meus dias, horas sôfregas onde vejo o tempo passar diante de mim. Na inércia que me acomete, vagueio, mortal errante perdido de sua casa.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Poemas do Viandante (41)

41. A FRONTEIRA

a folhagem
batida pelo vento
o chão de areia
a casa vergada
pelo tempo

assim escutava
o sopro a bater
no canavial
a fronteira
que subtraía
de um o outro
coração

domingo, 30 de agosto de 2009

Despotismo das circunstâncias

Um mês longe dos afazeres habituais, mas mesmo assim submetido ao despotismo das circunstâncias. O sentimento desse despotismo é a medida da ausência de liberdade.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Poemas do Viandante (40)

40. GRITO DE SILÊNCIO

um grito 
de silêncio
na cortina
do mar

sombra 
de água
cardume de limos
nuvem trazida
pela maré

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

De Quedar a En-Gaddi

Das tendas de Quedar ao horto de En-Gaddi, será ainda um caminho que se desenha, uma viagem que se abre, uma luz que paira sobre a sombra do mundo? Vai o Viandante das trevas para as trevas, mas nele há a esperança de luz, a súbita presença da tua face, o odor a desprender-se de teus olhos. De Quedar a En-Gaddi é o meu caminho, entre vinhas que não guardaste, entre rebanhos cansados de meio-dia, entre as tuas mãos enegrecidas pelo sol. De noite saí de Quedar, declinava o astro quando me mataste a sede em En-Gaddi.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Poemas do Viandante (39)

39. TRAIÇÃO

traição
rumor
sopro 

ou vento

mancha 
de solidão
na árvore
em flor

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O devaneio de uma sombra

Mergulhar em si mesmo e esquecer-se de si. Procurar a vida do espírito não é procurar a satisfação dos seus desejos, nem encontrar um caminho para ultrapassar as suas frustrações, ou para realizar o não realizado dos seus projectos. Mergulhar em si para ver os seus desejos, as suas frustrações, os seus projectos como aquilo que eles são: um devaneio de uma sombra. Quem dará importância ao devaneio de uma sombra? Ao aceitar o devaneio enquanto devaneio, poder-se-á ir mais além no caminho, agora mais substancial.

domingo, 23 de agosto de 2009

Poemas do Viandante (38)

38. NÃO PERTENÇO AQUI

sem memória
caminho
olho os goivos
e as flores
que trazes
entre mãos

mas não pertenço aqui
e volto à estrada

esqueci os sinais
e o lugar
onde guardava
os segredos
como se fossem
violetas

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Da sedução - II

Na sedução há um atrair que é um tornar próximo fundado, ao mesmo tempo, na dinâmica do ficar cativo e iluminado, na tensão entre luz e trevas. Mas esta compreensão da sedução está alicerçada numa outra coisa. Seduzir provém do latim seducere que significa “levar para o lado”. Que experiência encontramos aqui e que poderemos reportar ao sentido hodierno de sedução? Na sedução ecoa a inclinação. Ser levado para o lado é ser inclinado por e para qualquer coisa. A inclinação na ética kantiana tem uma conotação negativa, pois ela resulta sempre de uma submissão à sensibilidade e de uma posição não autónoma. Mas em si mesma a inclinação não pressupõe a natureza daquilo para onde somos inclinados. O que está em jogo, de facto, é que na sedução há uma ruptura com a esfera própria e um transcender-se, transcendência que pode ser captada na ideia de inclinação. Na sedução, ao inclinar-me, sou levado para o lado, mas este lateralizar não implicar um perder-se no caminho. Depende daquilo que me inclina e me faz sair de mim e procurar um caminho. Pode ser mesmo o início do caminhar, pois este implica sempre um deslocar-se de um lado para outro.

domingo, 16 de agosto de 2009

Poemas do Viandante (37)

37. O LUGAR

uma dor
no silêncio da tarde
um caminho
um fogo
apenas o lugar
onde
te aguardo

sábado, 15 de agosto de 2009

Da sedução - I

Poder-se-á pensar a relação entre o caminho e a sedução? Será que caminhamos porque o caminho nos seduz? No cerne do uso corrente, a sedução é vista a partir de uma ambiguidade semântica. Por um lado, há todo o campo da atracção, daquilo que nos atrai e cativa ou deslumbra. Por outro, há o espaço semântico que nos fala do perder o caminho, do desencaminhar (engano, corrupção, suborno, desonra, etc.). Neste último sentido, a sedução é aquilo que nos desencaminha, que faz perder a via, que, em última instância, nos perde. O primeiro sentido de sedução, porém, traz uma outra perspectiva. O seduzir, ao ser um atrair, significa um fazer aproximar, tornar mais próximo. O que nos seduz torna-nos próximos da fonte de sedução. Em todo o seduzir há uma aproximação. O sedutor e o seduzido tornam-se assim o próximo um do outro. Mas o campo semântico do seduzir enquanto atracção é também ele ambíguo. O que atrai é aquilo que nos cativa e nos deslumbra. Dito de outra maneira, o que nos prende e o que nos ilumina. Na aproximação que nos torna próximos há as trevas da prisão e o deslumbramento da luz. A sedução não é puro deslumbramento, mas um jogo onde trevas e luz, cativar e iluminar, subsistem em tensão. A tensão torna-se a energia do caminhar, seja do espírito para Deus, seja de um espírito para outro espírito, ou de um corpo em direcção a outro corpo, que o aguarda.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Poemas do Viandante (36)

36. BARCO

o barco 
leva-o o mar
em ondas
de espuma 

salpicadas de mágoa

pobre 
coração cansado
perdido na luz
preso ao naufrágio

O desinteresse do particular

Poderemos ver as coisas como elas são em si mesmas? Se eu abandonar qualquer interesse sobre o que vejo, aquilo que vejo manifestar-se-á no seu ser? Se os interesses particulares introduzem um enviesamento da visão, a sua supressão será o suficiente para que o que se manifesta perante mim se revele em sua verdade? Mas se abandono os interesses particulares, aquilo que chamo de meu, o que restará de mim? E o que restará das coisas que se manifestam? E isto não é um problema teórico da gnoseologia, mas uma questão prática de interesse vital. Caminhar abandonando todo o interesse que me constitui, despir-me de toda a propriedade, preparar-me para a revelação das coisas, não é uma mera questão conceptual, mas o próprio acto de caminhar. A viagem é sempre um agir em direcção aquilo que é. Mas o que é aquilo que é?

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Poemas do Viandante (35)

35. HÁLITO

deixa o hálito
tocar a mão

será nuvem
lâmpada

seara 
de violetas
a abrir-se
para o verão

sábado, 1 de agosto de 2009

Contemplação

Há uma hora em que nos devemos interrogar sobre o caminho. Não sobre o caminho em si, mas sobre o nosso interesse nesse caminho. Será ele a via que nos diz respeito, ou não passará de uma forma de alienação da consciência. É muito fina a fronteira que separa a autenticidade da representação dessa autenticidade. De certa maneira, ou antes de uma maneira que jamais suspeitou, Marx tinha razão. A religião é um ópio, uma forma de alienação. Mas o fundamental dessa alienação não reside em relações sociais pervertidas, mas na perversão da relação do homem com Deus. A própria contemplação pode ser apenas uma máscara para enfeitar e reforçar a egoidade, uma espécie de coroa de glória e um passaporte para a distinção e a diferenciação. Aqui a distinção e a diferenciação são formas de afirmação perante os outros egos, o sublinhar e o reforçar da nossa crença na existência do nosso. A contemplação pode não ser mais do que o mero jogo onde se representa o papel de contemplativo, uma forma subtil de alienação do si mais fundamental que nos habita e um exercício de puro egoísmo.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Poemas do Viandante (34)

34. INCLINAÇÃO

não sei 
se olho
se canto


a luz vacila

escuto
e tudo para ti
é senda 

caminho
feroz inclinação

quinta-feira, 30 de julho de 2009

O mistério do amor

O mistério do amor. Não me refiro ao amor divino, mas ao amor humano, ao amor erótico. O amor divino é uma metáfora humana, demasiado humana, para dar a pensar e a viver a atracção que o espírito sente pela fonte da existência. Mas esta metafórica tem o condão de ocultar a dificuldade de se permanecer perante o próprio amor humano, daquele que serve de termo comparativo para sustentar a metáfora do amor divino. O facto é que há uma obscuridade a envolver o próprio amor humano, como se o amor erótico fosse uma metáfora assente num termo comparativo desconhecido. Quase poderíamos dizer que o amor humano é mais misterioso que o divino. Se quisermos falar da experiência erótica, apenas a dimensão equívoca da metáfora permite o discurso. Um discurso puramente denotativo sobre eros é de tal insipidez que não há amante que nele se reconheça. A presença de um corpo a outro, o jogo dos sentidos, a tensão do desejo, a desordem dos corpos, o fluir hormonal, a atracção dos espíritos, todos esses movimentos que a Física, a Química, a Biologia, a Anatomia e a Psicologia podem descrever, são enquanto tais insignificantes. A sua significância emerge através do poder evocador da palavra, e a palavra só é evocadora se ela se desconvoca da denotação e aceita o desafio de dizer o não dito, o inédito, o não dizível. Dizer o não-dizível, uma impossibilidade lógica, é a face discursiva do jogo erótico, também ele habitado no seu cerne por uma impossibilidade. É este não-possível que é a sua condição de possibilidade. Só o impossível torna possível o amor. A questão remanescente será: mas que impossível é este?

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Poemas do Viandante (33)

33. RECOMEÇO

na sombra
passos
oiço-os
ao entardecer

e recomeço
o caminho
volto
a nascer

Da humilhação

Ter a obrigação de fazer uma coisa absolutamente estúpida é uma prova para a nossa humildade. Pensamos que aquilo que em nós resiste é a nossa inteligência, a razão que acompanha os nossos pontos de vista. Tudo isso é reconfortante para o nosso pequeno ego, mas a verdade é outra. O que resiste em nós é o orgulho, o ego próprio inflacionado perante a estupidez do ego que nos superintende. O que fala em nós nessa resistência é a falta de humildade. É humilhante ter de fazer coisas estúpidas só porque outros, que têm poder para tal, no-lo impõem. Mas essa é uma oportunidade para nos desprendermos de nós mesmos, para nos desligarmos das nossas considerações sobre a natureza superior da nossa pequena máscara e aceitar aquilo que Ele nos envia.