segunda-feira, 11 de maio de 2020

Diálogos morais 38. Abandono

Hans Baumgartner, Limmatquai in Zürich. 1938
- Chega, larga-me!
- Não vás, peço-te.
- Inútil implorar. Cansas-me.
- O que posso fazer?
- Nada.
- Nada? Não, vem comigo.
- ...
- Eu levo-te.
- De bicicleta?

sábado, 9 de maio de 2020

Haikai urbano (54)

John Gutmann, Goodbye Berlin, 1933
Os pássaros partem
presos à luz da manhã.
Vendaval de Inverno.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Meditação Breve (126) Entregues à Fortuna

Fred Herzog, Jackpot, 1961
Qual será o momento em que alguém troca a expectativa de ser recompensado pelo que faz por uma graça da deusa fortuna? Nesta troca, não há apenas uma desconfiança relativamente à ordem do mundo, mas também uma baixa expectativa sobre os seus poderes.

terça-feira, 5 de maio de 2020

A Sarça Ardente - 18

Ana Peters, Homenaje C.D.F., 1995-98

As paredes florescem de dor,
se o sol da manhã
as toca com lanças de silvas e sargaços.

Uma mulher caminha presa na sombra
e leva nos dedos anéis
roubados ao ardor da aurora.

Extenuado, hesito na vereda a seguir
e recolho-me na gruta da tarde.
Pego no tear do tempo e teço as túlipas do Verão.

Março de 2020

domingo, 3 de maio de 2020

O seu mundo

Horst P. Horst, Elsa Schiaparelli, c. 1934
Casei com ela seis meses depois de a conhecer. Foi amor à primeira vista. Recíproco, pelo menos foi o que pensei. Uma vez por outra, dizia que não pertencia a este mundo e sorria. Não havia enigmas no sorriso. Não tivemos filhos, não tinha chegado a altura, pensava eu. Passava muito tempo diante do espelho, mas não mais que outras mulheres. Entre espelhos e mulheres há um trato muito antigo e com ela não seria diferente. Um sábado, antes de sairmos para um jantar de amigos, ela estava diante do espelho. Olhava-o fixamente. De súbito, o seu corpo é sugado pela imagem do espelho e funde-se nela. Volta-se e começa a afastar-se. Olha para mim e diz este é o meu mundo. Nunca voltou.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Diálogos morais 37. A recusa

Mac Adams, Mystery #17, 1976
- Vens comigo?
- Por que razão haveria de ir contigo?
- Não estás aqui para isso?
- Há limites para tudo, até eu tenho os meus limites.
- Não terei problemas em tornar a compensação mais interessante.
- Dispenso eufemismos.
- Diz o teu preço.
- Esquece, nunca acompanharia ninguém com umas botas dessas.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Haikai do Viandante (392)

Lee Miller, The Shadow of the Great Pyramid, Egypt, 1938
Da grande pirâmide,
a sombra cai sobre o mundo.
Tempo de declínio.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Meditação Breve (125) Da leveza

Robert Mapplethorpe, Baby’s Breath, 1982
Em tudo o que é leve pensamos a fuga à nossa condição. O corpo, sujeito às férreas determinações da gravidade, aspira à natureza dos pássaros ou à insubstancialidade dos anjos, como se isso o regatasse de uma natureza decaída, sujeita à dor e à morte.

sábado, 25 de abril de 2020

A Sarça Ardente - 17

Tal-Coat, [Paisaje], 1954

A cidade esconde-se dos pássaros,
deixa-os perdidos
em volteios de sombra e sangue.

A cidade ergue-se em segredos
suspensos nos jardins
trazidos pelo fim do Inverno.

A cidade escorre em praças vazias,
tragada pelo tumulto
dos meus passos a fervilhar de ambrosia.

Março de 2020

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Impressões 51. A realidade

William Henry Fox Talbot, The Tower of Lacock Abbey, 1845
Tocada pelo tempo, a realidade construída pela mão dos homens não sofre erosão, mas é sujeita a um longo processo de desvanecimento, no qual vai perdendo a cor, até que desaparece no horizonte onde nada se distingue.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Histórias sem nexo 7. Dualidades

Maurice-Louis Branger, A la terrasse d’un café, Paris, vers 1925
Duas damas nada domésticas dão dois dedos de conversa. Deambulam desgostos, desenham doidices, descrevem dúvidas. Dão-se à doce dolência nascida da despótica desgraça do desejo.

domingo, 19 de abril de 2020

Haikai do Viandante (391)

Ansel Adams, El Capitan, Winter, Sunrise, Yosemite National Park, California, 1968
O amanhecer
desceu sobre a fria floresta.
Sombras da aurora.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Meditação Breve (124) O uno e o múltiplo

Harold Edgerton, Stroboscopic Study of Man Hitting Tennis Ball, 1949
Não somos um nem somos muitos. Somos apenas o jogo contínuo entre a unidade que desejamos e a multiplicidade em que nos dividimos.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

A Sarça Ardente - 16

Jacinta Gil Roncalés, Composición en fríos, 1991

Deixemos um louvor à terra,
ao aroma
das primeiras chuvas,
os cardos a despontar nos dedos da noite.

Somos exilados e em peregrinação
levamos no vazio
os círios colhidos
em silêncio no lago da memória.

Na neve há uma coroa de água,
a brancura
oblíqua da alma,
os lábios a latir na luz do coração.

Março de 2020

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Micronarrativa (31) A verdade

Edward Weston, Meraux Plantation House, Louisiana, 1941
Durante muito tempo foi um lugar vibrante. As gerações sucediam-se, presas à certeza da continuidade. A casa era renovada ao gosto de cada época, sem que perdesse a sua unidade, a luz que a guiava. O último membro da família, porém, morreu sem filhos nem herdeiros. A estirpe cansou-se e a casa encontrou a sua verdade no abandono e na ruína.

sábado, 11 de abril de 2020

Pintura e haikus (16)

Carlo Carra, Casa Abbandonata, 1930
Casa abandonada
no silêncio da floresta.
Tempo de passagem.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Cansaço

Duane Michals, Empty New York, 1964
Não, está enganado. Não foi nenhuma ameaça. Não havia guerra nem epidemias no horizonte, a vida corria como sempre. As pessoas cansaram-se. Sim, cansaram-se das outras, do trânsito, do ar irrespirável e foram-se embora. A cidade foi-se esvaziando e hoje não tem mais moradores do que uma pequena aldeia. Para onde foram? Ninguém sabe. Os que aqui ficaram não se interessaram pelo destino dos que partiram. Não temos televisão, nem imprensa, não ouvimos rádio. Caminhamos pelas ruas, observamos os lugares vazios e podem passar-se meses sem que avistemos outro ser humano. Raramente trocamos palavras. Se alguém morre, o mais certo é que não haja quem disso se aperceba. Também nós estamos cansados.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Diálogos morais 36. O tempo

Constantine Manos, Shepherds with goat. Crete, Greece, 1964
- O que esperas?
- Que o tempo passe.
- Não é isso que ele faz continuamente?
- Nem sempre.
- Nem sempre?
- O tempo existe para nos contrariar. Quanto mais desejamos que passe, mais ele permanece imóvel.
- Não é verdade, olha um  relógio. Não brinca com o nosso desejo, avança indiferente e inexorável.
- Um relógio não é o tempo.

domingo, 5 de abril de 2020

A Sarça Ardente - 15

Sam Francis, Around the Blues, 1957-62

A discórdia nupcial das nuvens
ressoa em trovejos
na lonjura sem medida dos campos.

Cavalos pastam silêncios de erva
e uma sirene ecoa
ao longe, sobre a caruma dos pinheiros.

O ardor da solidão chama por mim,
enquanto espero
do anjo o anúncio do alvor da aurora.

Março de 2020

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Haikai do Viandante (390)

Robert Mapplethorpe, Orchid and Leaf in White Vase, 1982
Contra a escuridão,
em vaso branco floresce
a luz duma orquídea.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O homem entre ruínas

Dmitri Kessel, A man walking through the remains of an ancient temple in Athens. 1944
Todas as manhãs era visto a passear entre as ruínas. Verão ou Inverno, chovesse ou fizesse sol, ao raiar da aurora ele aparecia e passeava, durante umas horas, para cá e para lá. Um passo lento, parecia querer absorver o espírito do lugar em cada aspiração. Chamavam-lhe, não sem ironia, o homem entre ruínas. Não se conhece quem tenha trocado alguma palavra com ele, ou quem dele se tivesse aproximado. Formou-se uma tradição de distanciamento e era nessa distância que ele ia e vinha. Um dia, desavisado, um forasteiro dirigiu-lhe a palavra. Ele estancou, olhou-o perplexo e todo o seu corpo se tornou imponderável. À vista de todos, ergueu-se aos céus e desapareceu atrás de uma nuvem.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Pintura e haikus (15)

Frederick Sommer, Paint on cellophane, 1957
Sinal e mistério.
Sobre um abismo de trevas
esquissos de luz.

sábado, 28 de março de 2020

Impressões 50. Uma mulher sombra

Ara Güler,Süleymaniye Mosque and the shore of the Golden Horn at Unkapani , Turkey, 1955
Como um murmúrio, uma mulher passa sorrateira, coberta de sombra, coberta de invernia. Os olhos inclinam-se em silêncio. Só o chão recebe a secreta luz que por um desígnio incompreensível tão pura deles nasce. 

quinta-feira, 26 de março de 2020

A Sarça Ardente - 14

Elmer Bischoff, #13, 1974

Rogo ao deus do Inverno e da noite
uma luz de rosas
sobre o esplendor da montanha.

Perco-me no sabor de uma laranja,
o fruto bebido em sorvos
de âmbar e gomos de maresia.

A caravela do desejo fez-se ao mar
e no oceano encontrou
um cardume na poalha dos teus dedos.

Março de 2020

terça-feira, 24 de março de 2020

Histórias sem nexo 6. A mulher muda

Salvador Dali, Cabeza de mujer, 1926
Uma mulher muda movia-se como uma mariposa, modelava a mudez, marcava o metro, marejava o mar. Magra e macilenta marcou o mundo com a moeda da madrugada.

domingo, 22 de março de 2020

Impressões 49. Música

Yousuf Karsh, Pablo Casals, 1954
De súbito, a música transforma-se em luz e puro o dia irrompe da mancha escura das trevas.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Haikai do Viandante (389)

Edward Weston, Hills and Poles, Solano County, 1937
Vento e silêncio,
solidão devastadora.
Searas de medo.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Diálogos morais 35. Simbolismo

Ansel Adams, Church and Abandoned Automobile, Tiburon, California, 1957
- Estranho simbolismo este.
- É verdade, a ruína de um carro abandonado.
- E uma Igreja nova neste descampado.
- Terrível é o medo.
- É verdade.
- Mal bate à porta, logo nos esquecemos dos ídolos.

segunda-feira, 16 de março de 2020

A Sarça Ardente - 13

Gustavo Torner, Amarillentos, con zona negra, 1957

O vagar da sombra
é um hálito
na languidez da canícula.

Os ralos rodeiam
a noite
com silêncios de água.

Uma lua de ouro
invoca
os poderes da memória.

Março de 2020

sábado, 14 de março de 2020

Meditação Breve (123) Medo

David Turnley, Fearful Palestinian Girl, 1995
Não é necessário que tenhamos uma longa educação em ambientes de terror para que o medo se torne parte da nossa natureza. Basta que a ocasião se apresente, logo se apaga tudo o que o negava esse medo e uma linguagem mais arcaica tome conta do coração e invada cada célula do corpo.