quinta-feira, 15 de março de 2018

Biografias 10. A mulher cansada

René Groebli, Das Auge der Liebe, 1954

A monotonia do amor, o ritual do acasalamento, a grande cerimónia do prazer. Como tudo isso me cansa e escorre para a grande obscuridade que me habita. Não sou virgem consagrada nem prostituta do templo. Deixo correr a minha vida na orla da noite e o corpo pede-me o sono da eternidade.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Aquele que rodopia

Leonard Freed, Whirling Dervishes, Konya, Turkeye, 1976

É tão estranha a minha situação que não haverá quem acredite no que aconteceu. Não hesito em chamar paraíso ao lugar onde estou, mas o melhor é não abusar da benevolência do leitor. O que se passa é que estou no céu e não morri. Após uma crise grave, entrei numa comunidade de dervixes. Empobreci e a minha vida tornou-se casta e austera. Segui os preceitos e orei ao Misericordioso. Aprendi, ao dançar, a abandonar-me. Um dia, ao meditar rodopiando como é habitual na nossa ordem, senti que a gravidade deixara de ter poder sobre o meu corpo. Então, enquanto girava, fui elevado aos céus. Aqui estou, grato ao Todo Poderoso, e sem esperança que o leitor acredite em mim.

terça-feira, 13 de março de 2018

Haikai urbano (33)

Gisèle Freund, Sur les quais, Paris, 1956

Sobre o cais, a neve
fria desliza no inverno
do teu coração.

segunda-feira, 12 de março de 2018

O amante excessivo

Cecil Beaton, Fashion Model, 1950s

Há amores que são excessivos. Foi assim que ele começou a conversa. A princípio fiquei atónito, pois não esperava uma confissão, mas logo me recompus. Contou-me como tinha conhecido a mulher, a paixão que dele se apoderou. Não escondeu sequer alguns episódios picarescos, embora nunca tenha exposto a intimidade desse amor. Descreveu o casamento durante horas. A passagem dos anos não saciou a paixão, confessou-me. A dela, não sei. O que ele me contou foi que, um dia, a mulher lhe disse: o teu amor é excessivo para mim. Nesse instante, alimentada pela obsessão dele, ela começou a desdobrar-se. Primeiro, uma sombra, depois um vulto, por fim outra mulher exactamente igual a ela. Hoje, não sem felicidade, vivem os três.

domingo, 11 de março de 2018

Poemas do Viandante (676)

Ana Peters - Revoloteo Voleteig (1997)

676. pássaros palpitam

pássaros palpitam
e volteiam
brancos e brandos
em céu de fúcsia
suspensos
na luz da cerejeira
num trinado
de púrpura
quase roxo
                quase puro
                               quase quase

(19/12/2016)

sábado, 10 de março de 2018

Biografias 9. O amola-tesouras

Ruth Matilda Anderson, Scissors grinder, 1926

Tornar agudo e cortante aquilo que ficou rombo. Não há profissão mais necessária à vida espiritual que a de amolador. Quando rombo, o espírito divaga na errância incapaz de separar o trigo do joio, a verdade da falsificação. De terra em terra, o amola-tesouras era um portador de esperança e de uma promessa de verdade.

sexta-feira, 9 de março de 2018

A ponte

Toni Schneiders, Fykesunds bru im Hardanger Fjord, 1959

Ninguém sabe quem construiu a ponte. Diz-se que nos inícios dos anos cinquenta do século passado, de um dia para o outro, a ponte apareceu ali. Os relatos são coincidentes e os jornais da época registaram o fenómeno. Pouca gente morava então nesta zona, mas o terror foi grande, como pode imaginar. Do lado de lá, não há notícia que tenha vindo alguém e aqueles que do lado de cá se aventuraram nas trevas da outra margem nunca voltaram. O que está no fim da ponte ninguém sabe. A escuridão parece eterna. Desde que a ponte apareceu ali - ia a dizer foi construída - nunca o dia sucedeu à noite. E isto é tudo o que sei.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Haikai urbano (32)

Alfred Stieglitz, Reflections, Night–New York, 1897

Reflexos na noite,
suaves sombras de seda.
Árvores e luz.

quarta-feira, 7 de março de 2018

Poemas do Viandante (675)

Antonio Tápies - Grand triangle marron (1963)

675. o triste triângulo marron

o triste triângulo marron
amadurece
entre castanheiros
desenha um símbolo cego
e surdo
o sabre com que
recorto o
bater das folhas
na penúria dos ramos

(19/12/2016)

terça-feira, 6 de março de 2018

Meditação breve (70) Massa

Sebastião Salgado, Church gate station, 1995

Basta olhar para esse aglomerados de seres humanos que justificam o nome de massa para nos tornarmos cépticos sobre se a nossa espécie será tão plástica quanto pensa. A plasticidade nasce da vida do espírito e este só se manifesta no indivíduo. Silêncio e solidão são a pátria do espírito, mas a massa é a casa do homem.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Biografias 8. A mulher que perdeu a face

Raoul Hausmann, Le Portrait corrigé, 1946-1947

Possuir uma face é um trabalho secreto e minucioso, um exercício de atenção ao pormenor, a construção daquilo que faz alguém irromper no olhar dos outros. A mulher que perdeu a face, perdeu-a porque nunca a teve. Faltou-lhe a atenção, o esforço e, acima de tudo, a minúcia.

domingo, 4 de março de 2018

Meditação breve (69) Premonições

Gaston Xhardez, La fenêtre volante. Prémonition à un monde futur, ca 1957-1958

Nada pior, no domínio do espírito, do que o exercício da premonição. Não é apenas porque as actividades espirituais não são um exercício de pressentimento do futuro, mas também porque o futuro nunca se ajusta aos desejos de quem se presta  a exercícios premonitórios. Não há nada mais terreno e estranho a viagens no tempo do que a vida espiritual.

sábado, 3 de março de 2018

Haikai do Viandante (353)

Alex Howitt

Um gato desliza
na sombra branca da neve.
O Inverno demora-se.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Poemas do Viandante (674)

Ana Peters - Cádmio limão (1992)

674. extraio o limão do cádmio

extraio o limão do cádmio
e deixo-o escorrer
pela vala
de um corpo
vejo-o borbulhar
e gotejar
pela garganta
e espero sem esperança
a escuridão da eternidade

(19/12/2016)

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Biografias 7. O homem cansado

Ingmar Bergman, Wild Strawberries, 1957

Uma vida pesa sobre os ombros mais que os céus. Tem o peso dos anos, o dos desejos, o dos sonhos. O que mais pesa, porém, ao homem cansado é o que não desejou e o que não sonhou.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Da cisão do espírito

Antoni Angle, Acció Gallot, 1960

Há dias em que o espírito se cinde em mil línguas de fogo, não como o Espírito Santo portador da verdade mas como um corpo lacerado sob o efeito do chicote. Dividido, em luta consigo mesmo, perdido nessa guerra onde cada ideia é inimiga de outra ideia, o espírito sangra. Quando, exausto, se rende na sua cruz, descobre em si uma nova vida. Então, surge a aurora e o mundo retorna à infância como se tudo começasse de novo.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Meditação breve (68) Vozear

James Edward Keeler, The Pleiades, 1900

Basta um pequeno vislumbre do universo visível e tudo aquilo que designamos como fundamental, essencial ou qualquer outra coisa se reduz, na vertigem sentida, ao nada que, efectivamente, somos. E não é que o silêncio desses espaço infinitos assuste, como pensava Pascal. O que assusta é o vozear desmedido da espécie humana.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Haikai do Viandante (352)

Pietro Donzelli, Approdo, dalla serie Delta Del Po, ca. 1950

Um barco na margem
espera a luz triunfante.
Rio, sombra e viagem.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Poemas do Viandante (673)

Julián García Flaquer - La carpa (1981)

673. enredada na rede a carpa

enredada na rede a carpa
debate-se
tragada pelo silêncio
escuta o
vento da vida
a soprar sempre mais
                               e mais longe
e adormece
no arquipélago mudo
da morte
rente ao rugido do pescador

(19/12/2016)

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Meditação breve (67) Noite

Harry Callahan, Aix-en-Provence, 1957

De teias se tece a noite. E na tecelagem da aranha há um mistério que abre o olhar para o resplendor que, no fundo das trevas, anuncia o advento da aurora.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Haikai do Viandante (351)

Max Baur, “Im Nebel” (In the Fog) 1930’s

Névoa sobre o rio:
rumores, silêncio e água.
Sombras de Inverno.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Biografias 6. A mulher de negro

Constantine Manos - Karpathos

Não é pelos filhos que ela vela. Vestida de negro, deixa que os olhos se inclinem numa oração. No murmúrio da súplica os deuses escutam a voz do cosmos quando triunfa sobre o caos.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Poemas do Viandante (672)

Stipo Pranyko - Instalación (1996)

672. o frágil fruto instala-se

o frágil fruto instala-se
em silêncio
nas mãos de cronos
arde se
um fósforo desliza
pela lixa dos dias
e evola-se
aspirado pelas narinas
de um arcanjo a arfar na noite

(19/12/2016)

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Meditação breve (66) Medo

Emmanuel Souge, Assia, 1935

O medo é uma sombra que se inclina sobre a débil nudez de um corpo aberto e preso à escarpa febril e fria do acontecer.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Biografias 5. O homem da luz

Dmitri Badermants, Buoy Keeper, 1960

Não é pelo peso da tarefa, mas não há no mundo maior responsabilidade. Ao crepúsculo, o homem ergue-se e, bordejando precipícios, leva, com mão firme, um grão de luz para que as trevas da terra não façam presa.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Haikai do Viandante (350)

Guy Le Querrec, Paris, Rue Louis Morard, 1989 - Magnum Photos

No hálito da noite
um gato poisa à janela.
O vento ronrona.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Meditação breve (65) Na margem

Alexey Titarenko, Old woman, St. Petersburg, Russia, 1999

Há no rio tempestuoso da vida uma crueldade para com aqueles que envelhecem. São deixados na margem à espera que o tempo passe e os sepulte na grande pátria do esquecimento. E o que não gostamos de ver, durante os anos gloriosos da existência, é que, mal nascidos, os nossos passos dirigem-se, guiados por instinto infalível, para essa margem de onde não há retorno.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Poemas do Viandante (671)

Salvador Soria - Forma,materia, color y espacio (1984)

671. a forma e a matéria e o espaço

a forma e a matéria e o espaço
dão cor ao corpo
                pêndulo perdido
na paisagem
a oscilar em ondas
tocadas pela vibração
um começo e um fim
e entre eles
a mandíbula do movimento

(19/12/2016)

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Meditação breve (64) No canto do café

Václav Chochola, Adolf Hoffmeister au deux Magots, 1969

O canto do café é um lugar privilegiado. Não porque seja um sítio excelente de observação da comédia humana, mas porque torna manifesta a nossa natureza lateral. Talvez ainda hoje a espécie humana se pense como centro do universo, mas na verdade não passa de um bando marginal no concerto da criação.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Biografias 4. O homem do chapéu

Duane Michals, Magritte and hat, 1965

Na ideia de chapéu, um homem sem biografia espera a solenidade da sombra e investe-a com a aura que anuncia, ao mundo e à cidade, a santidade de um pecador ou a perdição de um santo.