sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Haikai do Viandante (349)

Max Baur, Park Sanssouci, Potsdam, 1930

Ciprestes tardios
erguem-se leves aos céus.
Sombras e murmúrios.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Poemas do Viandante (669)

Gonzalo Torné - El mundo de Ceballos (1994)

669. mundo mapa mudo

mundo mapa mudo
de anémonas
                tisnado
no sol marítimo
                carcomido
pelo passar da barca
sujo       ó tão sujo
pelo açúcar
                a florir
na erva das encostas

(18/12/2016)

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Biografias 3. Mulher hesitante

Walde Huth - Model Patricia in Jaques Fath, Paris, France, 1955

Parada e pensativa, a mulher, inábil nas artes da tecelagem, hesita. Voltar para trás ou entregar-se ao murmúrio sombrio do desejo dos pretendentes?

domingo, 28 de janeiro de 2018

Haikai do Viandante (348)

Camille Pissarro - Morning, Sunshine Effect Winter, 1895

Uma ave cantou
no frio silêncio da neve.
Manhã de Inverno.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A vida que se retira

Arthur Tress - Cards and Checkerboard in Abandoned Locker Room for Railroad Workers c. 1970

Os espaços que perderam o préstimo e ficaram entregues à ruína têm sempre o condão de abrir no coração do espectador a chaga da nostalgia. Uma chaga suave mas irremissível. Um tabuleiro de xadrez, o resto de um baralho de cartas não são, porém e apesar da degradação trazida pelo tempo, mero lixo, antes símbolos de uma vida que se retirou. Não a vida física e material mas a vida do espírito. Olhamos e quase se sente o ambiente espiritual que animava quem se servia daquelas instalações, aqueles que jogavam às cartas ou os que se mediam no xadrez. A ruína que os olhos vêem é o que restou dos pensamentos, palavras e desejos que ali ecoaram e que agora são silêncio e fragmentos materiais a deslizar para fora do tempo.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Poemas do Viandante (668)

Gonzalo Torné - Espejos para Ceballos (1994)

668. a viagem é um espelho

a viagem é um espelho
onde se reflecte
o viajante coroado
de léguas
                e memórias
tão pesadas
                as memórias
que o vidro
se quebra e quebrado
                o feitiço
resta o girassol
o sol      do silêncio

(18/12/2016)

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Interrupção

Andrea Mantegna - Adoration of the Shepherds (1451-53)

Com a adoração dos pastores, de Andrea Mantegna, o Homo Viator interrompe por uns dias a sua actividade. Voltará no início de Janeiro, passadas as Festas e os mil compromissos que elas trazem consigo. A todos um Bom Natal e um Feliz Ano Novo.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Um casal

André Kertész, Couple devant un coucher de soleil, Lágymányos, Hongrie, 1920

Chegavam ao pôr-do-sol. Vinham de mãos dadas, depois olhavam o horizonte e ele punha-lhe a mão sobre o ombro. Então, ela encostava-se, e assim ficavam largos minutos, depois partiam. Que eu tivesse visto, nunca se beijaram. Se pareciam felizes? Não lho sei dizer. Nunca lhes vi o rosto. Não sei se ela era bela ou se ele tinha um ar altivo. Um dia ficaram mais tempo. O sol pôs-se e eles permaneceram ali, abraçados e luminosos, banhados pelo crepúsculo. Quando a luz estava quase a desaparecer, entraram devagar dentro de água e caminharam sem pressa. Submergiram no momento em que a noite se cerrou. Nem nesse momento houve um beijo, se isso o interessa. Não, não os tornei a ver.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Poemas do Viandante (667)

Joan Hernández Pijoan - Els negres i el violeta (1983)

667. uma violeta vazia

uma violeta vazia
chora
na escura escuridão
do negro
alça os espinhos
e é uma rosa
a desfazer-se em
água e areia
na tábua aplainada
pelo divino carpinteiro

(17/12/2016)

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Haikai urbano (30)

Ted Croner, untitled, 1947-52

Um tempo de Natal
desce no frio da cidade.
Um anjo de luz.

domingo, 17 de dezembro de 2017

Para toda a vida

Tóth Zsuzsanna, Egy életen át

- Lembras-te do que me segredaste quando, no dia de casamento, saímos da Igreja?
- Nada de impróprio. Ou foi?
- Não, não foi, embora fosses capaz de o fazer. Não te faltava atrevimento. Não te lembras mesmo?
- Aos dezanove anos, somos capazes de segredar qualquer coisa.
- Ainda não tinhas dezanove anos, faltava uma semana.
- Como era nova. Bem, não era assim tão atrevida... Nunca te deixei tocar-me. Lembras-te?
- Se lembro, atrevida, mas...
- Nunca pensei que ia parecer a minha avó. O que te disse?
- Faz um esforço. Cumpriste.
- Cumpri? Ainda bem, mas, nesse dia, estava tão atordoada que devo ter prometido este e o outro mundo.
- Não foi, propriamente, uma promessa.
- Não? Ainda bem, se o fosse e com o esquecimento poderia acontecer que faltasse à palavra.
- Não. Fizeste uma espécie de constatação.
- Uma constatação? Mas o que constatei?
- Que era para toda a vida. Murmuraste: para toda a vida. E eu senti-me eterno. Eras um anjo, atrevida, mas um anjo.
- Mas, mas a vida ainda não acabou.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Haikai do Viandante (347)

Harry Callahan, New Hampshire, 1961

Silêncios da noite
Ecoam no bosque vazio.
Vento, Inverno e frio.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Biografias 2. Rapariga girassol

Édouard Boubat, Tournesol, 1985

Solícita, a rapariga pousou nua ao sol. E da terra calcada pelos seus pés nasceu-lhe, perdido entre a seara, um casto e cruel girassol.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Poemas do Viandante (666)

Julião Sarmento - Dias de Reis (1985-86)

666. os reis ruminam pelas ruas

os reis ruminam pelas ruas
uma amargura
feita de bolos
a cair nos olhos
da infância
tocados pelo sopro
das estrelas
erguem-se em camelos
de ráfia
por caminhos de musgo
à procura da luz
macerada no lodo da água

(17/12/2016)

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Biografias 1. Rapariga sentada

Alfred Stieglitz, Girl mending nets,1896

Sentada em silêncio, a rapariga remenda as redes que, lançadas no mar encapelado, apanharão o peixe voraz que há-de devorar o vendaval da sua solidão.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Meditação breve (61) Vestígios

Henri Cartier-Bresson, Pergamon, The Acropolis, Turkey, 1964

Como alguém dizia, o passado é um país estrangeiro. E nunca sabemos se os vestígios que ele nos deixa servem para rememoração piedosa do que desapareceu ou se são o sinal de escárnio com que o que passou olha para a nossa azáfama.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Meditação breve (60) Sombras

Leni Riefenstahl - Their Shadows, 1936

Corremos à frente da nossa sombra e ela, ameaçadora, persegue-nos com denodo. O que tememos para assim corrermos? Que nos apanhe? Que nos ultrapasse? Não. Nem uma coisa nem outra. Tememos apenas que nós sejamos a nossa própria e única sombra. 

sábado, 9 de dezembro de 2017

Haikai do Viandante (346)

Brett Weston, Bamboo Forest, Japan, 1970

O vento desliza
na floresta de bambu. 
Pássaros de Outono.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Poemas do Viandante (665)

Max Cantrell - Bullfight (1995)

665. o touro enreda-se na rede

o touro enreda-se na rede
da morte
capeado no comércio
sombra e sol
entre olés e olas
de vibração
bandarilhas de sangue
e sombreros de feltro
a pelica porosa
da espada da perdição

(17/12/2016)

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Nesta terra

Jean Dieuzaide, Turquie, la chevauchée, désert de Konya, 1954

Atravessamos um mundo após outro para chegar a este. E o que nos espera? Um deserto vazio como o esquecimento, um calor infernal e nuvens de poeira que lembram sabe-se lá o quê. Melhor seria termos evitado esta Terra, mas as informações nunca são certas e os vendedores de mundos há muito que perderam os escrúpulos. Os negócios estão mal, queixam-se, como se isso lhes aliviasse a consciência. Pobres cavalos. Estão cansado e não sabemos onde haverá lugar para descanso. Nunca pensei. De todos os mundos possíveis, logo haveríamos de vir a este. Maldita poeira do deserto. Ainda morremos todos nesta Terra.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Ilusão

Edward Weston, The Marion Morgan Dancers, California,1921

- Vê-as? Está mesmo a vê-las?
- Sim, já lhe disse que sim. Por que pergunta?
- Vejo-as, há muito, mas nunca me aproximei delas. Com o passar do tempo comecei a convencer-me que eram uma ilusão.
- Uma ilusão? Talvez tenha razão. Uma ilusão...
- Uma alucinação, como a daqueles que se perdem no deserto e vêem oásis onde só existe areia.
- E elas estão sempre assim?
- Sim, despem-se, riem e olham para as imagens reflectidas no lago. Depois, pegam na roupa e desaparecem.
- Nunca se sentiu tentado...
- Todos os dias.
- E nunca se aproximou?
- Ó não. E se fossem apenas uma miragem? 
- Compreendo-o, nunca devemos trocar o certo pelo incerto. 
- Já tenho anos suficientes para não trocar um belo engano pela crua realidade. Olho-as e isso basta à minha solidão.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Haikai do Viandante (345)

Florence Henri, Une grappe de raisin, c. 1934

Um cacho de uvas.
Um rio que corre em silêncio.
Um deus que passou.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Meditação breve (59) Sombras

Jean Dieuzaide, La mode à Cologne du Gers, 1987

Sombras são fogos de artifício tão obscuros que diminuem os homens até os tornarem crianças, antes de os esmagarem pelo terror que espalham, ao projectarem-se no ecrã da consciência, sem que um antídoto as detenha.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Poemas do Viandante (664)

Joan Hernández Pijoan – A partir de les albes (1983)

664. um galo ou uma magnólia

um galo ou uma magnólia
entram pela luz
da manhã
e cantam a alba
sobre
a elegia ébria
da noite
ao ritmo e ruído
da árvore da alvorada

(17/12/2016)

sábado, 2 de dezembro de 2017

A espera

Elliott Erwitt - Musée de l'Orangerie, Paris, 1998

- Encosto-me ao silêncio frio da parede e espero. 
- Um museu é um belo sítio para esperar. Será que vem? 
- Outrora, estaria inquieta e jamais ficaria impassível. 
- Era tão impulsiva? 
- Se era, mas isso foi há muito. 
- E continua a esperar?
- Há que manter a disciplina.
- Mas, espera por...
- Por ninguém. Nunca falta. 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Dilaceração

Paul Wolff, Audi cabriolet, 1939

Sentimo-nos sempre dilacerados. Também se sente assim, não é? Muitas vezes, confundimos o desejo com a realidade. Pensamos que o sentir-se dividido é um acidente, talvez uma patologia, e não a natureza dos homens. Isso, porém, é uma ilusão que nasce do desejo de aplacar uma dor. Pode crer no que lhe digo. Não fomos feitos para o sofrimento. Como é que a cisão nasce, é isso que quer saber? Vejamos o que lhe posso contar. Trago sempre em mim duas imagens. Uma fala-me do passado e transporta uma nostalgia que nunca se desvanece. A outra aponta para o futuro e nunca me deixa tranquilo. O resto é a carne a rasgar-se entre uma e outra. Por vezes, sangra.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Haikai urbano (29)

Giuseppe Moder, Puglia, ca. 1960

Rudes ruas de pedra
roem o silêncio da tarde.
A criança grita.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Vestígios

André Kertész - Luxembourg Gardens, Paris, 1925

Quantas vezes, inopinadamente, nos deparamos com vestígios da infância? Olhamo-los e eles respondem ao nosso olhar, interpelando-nos: como te afastaste tão depressa desse tempo em que eu fazia parte do teu mundo? E o nosso silêncio é o sinal de uma ignorância fundamental. Balbuciamos uma explicação sem nexo e sentimos a consciência culpada de termos deixado escapar, sem explicação, o território encantado em que o simulacro de um cavalo era um cavalo verdadeiro que nos levava para este e para qualquer outro mundo que a imaginação criasse.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (663)

Julião Sarmento - Vícios (1988-89)

663. o silêncio é um vício

o silêncio é um vício
desliza
sobre os lábios
toca a boca
abre-a furtivo
para o furúnculo
feroz
da ferida felicidade

(16/12/2016)

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Haikai do Viandante (344)

Bill Perlmutter - Along the Banks of the Main, Germany, 1955

Desceu o Inverno
envolto na neve fria.
Arrojo e silêncio.