segunda-feira, 4 de julho de 2016

O ano de 1914

Marc Chagall - O diário de Smolensk (1914)

Que ano este. Tem razão, mas todos os anos são bons para começar uma guerra. Sim, é verdade, mas alguns são mais propícios. As notícias parecem confirmar que estamos num desses anos. Os corações dos homens estão sedentos de aventura, os jornais estão inflamados e a temperatura dos quartéis parece subir a cada dia que passa. Os homens têm de ir para as ruas, ela está desejosa de um grande festim. Ela? Sim, ela. Enfada-se com a rotina e quer excitação, então murmura, com aquela sua voz rouca, ao ouvido dos homens e estes perdem a cabeça. Literalmente. Nunca falha. Ela vai enriquecer. Os próximos anos serão de grande colheita.

domingo, 3 de julho de 2016

Fechar a porta

Fernand Khnopff - I Lock my Door upon Myself (1891)

Há no culto moderno do self, iniciado por Descartes com o cogito como princípio, ainda que garantido por Deus, da certeza inabalável, uma infantilidade que raramente é notada. O centramento sobre si mesmo é uma característica da infância. A maturidade chega pelo descentramento, pela descoberta de que não se é deus, e, de forma mais radical, pela descoberta de que, na verdade, não se é nada. Esta última descoberta pode ter efeitos paradoxais. Pode gerar um grande alívio, uma libertação, ou pode conduzir a que o self se refugie em si mesmo, na sua nulidade, e feche a porta, para que a sua certeza infantil resista ao confronto com a realidade.

sábado, 2 de julho de 2016

Origem e originalidade

Paul Klee - Ab ovo (1907)

Uma das grandes tentações da vida espiritual, seja em que área for, é pensar que se vai começar alguma coisa desde a origem, sendo esta percebida como um começo absoluto. Esta tentação tem duas faces. Em primeiro lugar, pensa que existe uma origem absoluta à qual se possa chegar. Em segundo, crê, de forma ingénua, que se pode saltar por cima da própria sombra, isto é, da história. Não podemos contudo, dizer que não há um momento inicial, uma origem, a partir do qual se faz um certo caminho. A origem existe, mas existe a cada momento. Cada momento é originário e convoca os seres humanos não apenas a mergulhar nessa origem actual como a serem, por isso, originais.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Poemas do Viandante (556)

Gerardo Rueda - Azul y Rosa (1970)

556. um súbito azul

um súbito azul
arde ardente
no rumor
de uma rosa
no voo raso
da gaivota
presa na pétala
rosazul do 
céu de anil
do mar de luz

(28/06/2016)

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Haikai do Viandante (287)

William Turnar - Mortlake Terrace, residència de William Moffat, tarde de Verão (1827)

tardes de verão
tecem-se na luz das águas:
sol, barcos e sombras

quarta-feira, 29 de junho de 2016

A longa espera

Jorge Apperley - Una bailarina del antiguo Egipto (1915-1916)

Foi em meados dos anos oitenta do século passado que começou. Nas primeiras vezes, tudo era impreciso, o contorno dos corpos, a melodia dos instrumentos, o movimento da bailarina. Depois, parece que aprendi a sintonizar-me. Mal adormecia, entrava no sonho. Chegava a ouvir a respiração delas e sentir o odor dos corpos. Ardia de desejo. Passaram décadas. O tempo não passou por elas. Tenho cabelos brancos, mas elas voltam sempre. Também lhes fui fiel. Uma noite, em que a febre do desejo me atormentou mais que o habitual, uma delas sussurrou-me numa língua que nunca ouvira: não tenhas pressa, estamos à tua espera. Também eu as aguardo.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Do deserto interior

Charles Lapicque - Désert (1962)

Teme-se mais do que o deserto real o deserto que cresce dentro de nós. Olha-se para vida do espírito como um acumular de informação. Confunde-se a sabedoria com a erudição ou com a destreza argumentativa. E está aí a raiz daquele temor. Chega-se a uma altura. porém, que se descobre que nada é mais importante do que o deserto interior. Só aí, nessa vastidão desolada, se pode ouvir a voz trazida pelo vento.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Poemas do Viandante (555)

Modesto Ciruelos González - Abstracção (1975)

555. ergue-se o texto

ergue-se o texto
da textura
do papel
um traço de noite
uma mancha
maculada
de tinta e trevas
e uma nuvem
de sentido
cobre e descobre
a luz tão lenta
e quase luminosa

domingo, 26 de junho de 2016

Mudanças

Ludwig Meidner - Revolution (1912)

Eram outros tempos e eu... eu era outro. Tem razão, somos a cada instante outros, mas há um momento em que tomamos consciência de uma alteração nas nossas crenças. Eu acreditava na revolução. Um instinto ancestral acendia-se em mim perante as multidões e o esvoaçar das bandeiras. Não fez essa experiência? Então não pode compreender. Como é que mudei? Diz-me que perdi a fé em revoluções e, por isso, mudei. Está enganado. Foram as revoluções que perderam a fé em mim. Fui abandonado pelo espírito revolucionário e deixei de sonhar com bandeiras. Agora vejo o tempo passar e só espero que passe lentamente.

sábado, 25 de junho de 2016

Tempestade

Jeffrey Smart - Approaching storm by railway (1955)

Pode-se olhar a tempestade do ponto de vista estético e encontrar nela a encarnação do sublime. Pode-se encará-la do ponto de vista ético como um teste à coragem daqueles que por ela são apanhados. O sublime e a coragem, porém, estão longe de ser o essencial ao atravessar a tempestade. A revelação fáctica da nossa fragilidade e da nossa finitude são o fundamental e é essa revelação que permitirá fazer a experiência plena do extraordinário que irrompe do ordinário, do extra-normal que irrompe na norma. A tempestade é um lugar de epifania.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Música e vida

John Yardley - A break in Rehearsal

Tome-se a música como uma metáfora da vida. Na analogia que sustenta a metáfora, porém, há que considerar apenas  a ideia de um fluir dos sons de um princípio em direcção a um fim. Aquilo que se deve excluir, porém, é a ideia de ensaio. Os músicos ensaiam uma e outra vez até chegarem ao palco. Nós caímos no palco e sem qualquer ensaio temos de levar o concerto ou a sinfonia do princípio até ao fim. Sem pauta e, muitas vezes, sem maestro.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Poemas do Viandante (554)

Antonio Tápies - "70"

554. números são navios

números são navios
no deserto
onde te espero
palavras perdidas
na rua
e no rumor
do desespero
uivos que uivam
no silêncio
e
na cinza dos ciprestes

quarta-feira, 22 de junho de 2016

A santíssima trindade

Raoul Dufy - The Three Umbrellas (1906)

Noutros tempos chamavam-lhes sombrinhas. Ainda há quem chame? Pois, não sei. Estava retirado do convívio com o mundo, como sabe, e comecei a perder as referências. Como lhe dizia, aquelas sombrinhas eram a minha santíssima trindade. Daqui, aguardava, que sob a inclemência do sol, elas passassem. Vinham como uma promessa. Sempre pela mesma ordem. Aqueles chapéus-de-sol eram uma bandeira, a bandeira da minha pátria. Passavam lentamente. Por vezes, trocavam breves palavras com alguém conhecido. Nunca lhes vi o rosto. Oh não, não era Eros que falava em mim. Passavam e eu sentia-me salvo no vexame da minha prisão.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Um corpo a corpo

Thomas Hart Benton - Boxing match (1930)

Um corpo a corpo, um combate de boxe, e não o refúgio numa hiper-realidade ou num qualquer além que a imaginação humana, demasiada humana, está sempre pronta a criar para nos proteger da crueza da existência. Falo da vida espiritual, seja qual for o âmbito em que esta se desenrole. Não é uma fuga mundi, mas um estar no mundo. Não é o lugar da paz mas o da espada. Começa sempre com um corpo a corpo consigo mesmo. A vida espiritual não é tema para revistas cor-de-rosa.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Relógios e rios

André Louis Derain - Big Ben (1906)

Não percebe por que falo da sensatez dos londrinos? Não sei onde li, se é que alguma vez a li, a ideia de que todos os relógios trazem consigo um princípio de irrealidade. Não está a compreender? A questão é simples. Os relógios obedecem a uma lógica cíclica. Os ponteiros retornam, no tempo aprazado, ao mesmo lugar, como se fossem uma promessa do eterno retorno do mesmo. Veja, porém, como o Big Ben se combina com o fluir do rio. Para que não nos deixemos embalar pela doce ilusão da eternidade, o fluxo das águas, com a palavra de Heraclito ao longe, lembra-nos, sensatamente, minha amiga, que não mais viveremos este momento.

domingo, 19 de junho de 2016

Poemas do Viandante (553)

Manuel Quejido - 24 Levitaciones (1972-73)

553. leves levitam

leves levitam
os levitadores
e o tempo
breve
em que puros
se erguem
aos céus
pára imponderável
na mão
que lavra na terra
a queda
dos graves

sábado, 18 de junho de 2016

Ser ninguém

Frantisek Kupka - Elogio (1912, 1919-23)

Não sei o que lhe diga. Acha, então, injusto a ausência de um elogio. Dar-lhe-ia ânimo e, diz-me, precisa de ânimo. Compreendo a sua necessidade de reconhecimento, mas não partilho a carência. Não pense que sobre mim caem elogios. Não caem, pode crer. Aliás, faço tudo para que não cheguem. Se alguém me faz um elogio, eu agradeço. Prefiro, porém, que o evitem. Não quero ser reconhecido? Um dia aspirei a isso, mas o tempo ensinou-me outra coisa. Mais importante do que o reconhecimento é ser desconhecido, é ser ninguém. Quando você, um dia, for ninguém, talvez mereça um elogio. Talvez.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Haikai do Viandante (286)

Charles Bentey - A Squall Approaching the Northern French Coast

cai a tempestade
sobre a costa fria e pálida
aves à deriva

quinta-feira, 16 de junho de 2016

O anjo músico

Raúl Soldi - Ángel músico I (1960)

Também eu duvidava da história. Ouvi-a, tal como o meu amigo, por acaso. Aos domingos, antes de almoço, ia ao café. Numa dessas idas, sentei-me na mesa habitual. Ao lado, alguém contava o episódio. O homem fremia de excitação e falava, como acontece nessas ocasiões, alto. Desisti de ler o jornal e sorri da fábula do anjo. Quando cheguei a casa, naquele tempo vivia sozinho, ouvi uma estranha música. Estremeci, o som chegava do meu quarto. Ao abrir a porta, deparo-me com um anjo a tocar violoncelo. Sentada na borda da cama, uma mulher. Nunca a vira. Sobre o anjo músico não tenho provas. Quanto à invasora desconhecida, acabei por casar com ela.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Poemas do Viandante (552)

Georgia O'keeffe - The dark iris nº II (1926)

552. um frio quase

um frio quase
frívolo
desce em mim
trazido no vento
do verão
no sopro
resplandecente
dos lírios irisados
de luz e maio

terça-feira, 14 de junho de 2016

Composição cósmica

Oscar Dominguez - Composição cósmica (1938)

Olhamos o mundo e tomamos aquilo que apreendemos como sendo a realidade objectiva. Não vemos que grande parte do que chamamos real é trabalho do nosso próprio espírito. O mundo para nós não passa de um grande trabalho de tecelagem, a realização das nossa faculdades sob o efeito dos estímulos externos, um exercício espiritual, aparentemente, espontâneo, um trabalho de composição cósmica.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A grande batalha

Yves Klein - La Grande Bataille

Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. (João 14:27)

A vida é entendida, muitas vezes, através da metáfora da guerra. É compreendida como uma sucessão de batalhas. Por maiores que sejam os conflitos que um ser humano atravessa na existência, está ainda perante pequenas batalhas. A grande batalha é a da paz que foi doada aos homens, lhes foi deixada em herança. Grandes são os perigos que ela traz consigo, pois o maior dos perigos está ligado ao que é misterioso, e nada é mais misterioso do que essa paz que o homem herdou e que o mundo não compreende.

domingo, 12 de junho de 2016

A dinâmica das formas

Gino Severini - Dinamismo de formas

A arte capta muitas vezes aquilo que é o núcleo essencial da vida do espírito. A dinâmica das formas é o sinal de que a vida espiritual não encontra repousa em qualquer forma em que se manifeste. O espírito instaura uma forma e logo encontra nela um limite que anseia ultrapassar. Incansável, deixa-se guiar, na vida formal que é sempre a sua, pelo desejo daquilo que não tem forma e, dessa a-formalidade, chama por ele.

sábado, 11 de junho de 2016

Poemas do Viandante (551)

Friedl Dicker - Forme négative et forme positive dans un champ de force (1941)

551. sou um sim

sou um sim
ao dizer não
e tudo o que digo
se o digo
se o calo
se o trago em mim
ainda é
um não
que me diz
sou assim

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Um study case

Elmer Bischoff - #1 (1974)

Produz conhecimento, investiga, diz-me. Desculpe o sorriso impertinente. Também eu acreditei que era possível conhecer a realidade. Não, não era uma visão ingénua. Parece, porém, que sou um study case. Como foi, pergunta-me. Que lhe hei-de dizer? Primeiros as cores perderam a constância. Depois, os contornos começaram a desaparecer e as formas, falo das formas das coisas, ficaram fluidas. A realidade - não ligue ao meu sorriso - espacial tornou-se uma amálgama, onde nada é discernível. E agora está aqui e quer saber o meu segredo. Como me oriento? Não me oriento. Ajo ao acaso e espero acertar. Não é isso que acontece também consigo?

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Haikai do Viandante (285)

Lyonel Feininger - Blue Coast (1944)

azul sobre azul
barcos rendidos ao mar
ventos de verão

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Mito e liberdade

Ker-Xavier Roussel - Cena mitológica

Por muito que a razão se esforce, por muito que ela reivindique a supremacia e a legitimidade, uma legitimidade fundada no conhecimento e, não menos, na técnica, o mito acaba sempre por retornar e invadir a cena do mundo. Com ele triunfa, uma e outra vez, a ambiguidade, a pluralidade de sentidos, as múltiplas possibilidades. Muitas vezes pensa-se que a liberdade está ligada à ordem moral da razão. Podemos, porém, contar outra história e vê-la emergir na plurivocidade que nasce do mito, como se este fosse uma fonte, frágil e equívoca, de onde nascem diversos e caudalosos rios, os quais se abrem à livre navegação.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Poemas do Viandante (550)

Mario Merz - Alga (1995)

550. na água viva

na água viva
de uma alga
cresce
alucinada
e lenta a luz
das ondas
do mar de vigo
das flores de
verde-verde pino
     ai deus i u é
e ai deus se verrá cedo
     ai deus i u é

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Pregadores da vida beata

Lucio Muñoz - 8-86 (1986)

Tempo lamentável este. Não por ser uma época de desolação, embora o seja. Enquanto a ruína cresce aos nossos olhos, também não param de crescer os vendedores de beatitudes. A cada esquina, até nos lugares mais insuspeitos e outrora dignos de respeito, se ouve apregoar a venda da felicidade, aquela que espera por si ao virar da esquina. Não deixa de ser paradoxal que, no momento em que a actividade espiritual do Ocidente mais se retrai, a pregação da vida beata atinja um insuportável paroxismo.

domingo, 5 de junho de 2016

Construtores de labirintos

Felo Monzón - Construção (1975)

Podemos pensar na vida como uma construção. Não dessas construções que trazem o reconhecimento dos outros, mas a construção de um labirinto. De um labirinto secreto, como o devem ser todos os labirintos. Construímo-lo para podermos encontrar o Minotauro. Para o matar? Não. Para nos reconciliarmos com ele, isto é, connosco.