domingo, 3 de abril de 2016

Construções espácio-temporais

Theo van Doesburg - Construcción espaciotemporal II (1923)

Também a vida espiritual é uma construção espácio-temporal. Rasga um caminho na terra ao ritmo do tempo. Não se trata, contudo, do espaço exterior captado tridimensionalmente pelos sentidos nem do tempo cronológico. O tempo é o tempo oportuno, o kairós, e o espaço é aquele que, interior e exteriormente, se traça entre as diversas manifestações desse tempo oportuno, o caminho que torna a vida uma resposta aos desafios que se manifestam segundo o Kairós.

sábado, 2 de abril de 2016

Poemas do Viandante (535)

Jesús María Cormán - 6.6 Richter Scale (2001)

535. a escala de richter

a escala de richter
um segredo
balança 
na terra
o peso de
um dedo
que a abre
e logo logo
a encerra

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A mulher e a ave

Pierre Puvis de Chavannes - Le Pigeon (1871)

Eu sou o pássaro que seguro contra o peito e trago em mim o desejo incendiado do voo, o vício impenitente de deixar a terra e elevar-me, como um anjo, aos céus, para, livre da gravidade, poder seguir o caminho no silêncio das alturas. Eu sou a pomba que me toca o seio. No desconcerto de sentir-se presa, a ave funde-se lentamente em mim. Sinto as suas penas na minha pele, o seu coração, vibrátil e ansioso, no meu. Olho o sol e um pássaro terrível chama-me. Ergo um braço, depois outro, e tudo em mim é leveza, ausência de peso. A cidade resplandece ao longe e o sol banha-me o corpo, um corpo tão branco e tão leve. Eu sou a pomba que a mulher segura contra o peito e voo, na liberdade dos céus, no seu corpo alado e quente.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Haikai do Viandante (279)

Benvenuto Benvenuti - Inverno - Mattina (1905)

as manhãs de inverno
descem sobre os ciprestes
fogo frio na terra

quarta-feira, 30 de março de 2016

Para lá dos manifestos

Boris Kustodiev - Reading the Manifesto (1909)

A vida do espírito começa para lá de todos os manifestos. Um manifesto é um exercício exacerbado de ruído, a concentração de desejos e ilusões. A vida do espírito brota do silêncio, da solidão, da pura presença perante aquilo que é. O manifesto dirige-se ao rebanho e é sempre a afirmação do poder, ou da sua ânsia, de um pastor. A vida do espírito repousa na singularidade de cada um, quanto muito no encontro de duas singularidades. Nela, não há lugar para manifestos.

terça-feira, 29 de março de 2016

Poemas do Viandante (534)

Edna Araraquara - Amendoeira

534. da brancura da flor

na brancura da flor
eleva-se um
aroma
paira 
na sombra
trémula
de uma pétala
coberta de luz
coberta de assombro

segunda-feira, 28 de março de 2016

Uma dança infinita

Cruzeiro Seixas - Dança Infinita (2007)

Propulsionado pela música, aquele que dança enfrenta o império da gravidade e eleva-se, por instantes, acima da terra, como se do alto uma voz o chamasse. A gravidade devolve-o ao chão, mas a música, a voz que vem do alto, não pára de chamar. E, mais uma vez, o corpo ergue-se e enfrenta aquilo que o arrasta para baixo numa ânsia infinita de responder ao chamamento. A vida do espírito não é outra coisa senão uma dança infinita.

domingo, 27 de março de 2016

A ressurreição

El Greco - Ressureição (1605-1610)

A pintura de El Greco permite perceber uma dimensão da ressurreição do Cristo para além das leituras literais correntes. O que se vê é a elevação de Cristo acima das contingências temporais e mundanas, as quais estão representadas pela confusão e pelo espanto que se apodera dos restantes figurantes da cena. Ressuscitar é então um elevar-se acima das condições do espaço e do tempo, às quais estamos submetidos e são o limite das nossas possibilidades. A ressurreição de Cristo surge como um desafio aos limites e uma ultrapassagem das condições mundanas do homem.

sábado, 26 de março de 2016

Ao pôr-do-sol

Giovanni Boldini - Angeli

A história conta-se em poucas linhas. A verdade fica à consideração do leitor. Ia pela praia, num daqueles passeios que se dão pelo entardecer. Como sempre, caminhava para a duna atrás da qual - temos a ilusão - o Sol se põe. Não havia vento e a ondulação era suave. As gaivotas, por terra, calavam-se. O dia entregava-se e o crepúsculo descia pela baía. Ao desaparecer o Sol, elevou-se não a noite mas luzes em convulsão. Não era uma tempestade. O ritmo do coração acelerou quando decidi subir ao cume da duna. As luzes convulsas não cessavam, mas tudo era silêncio, um silêncio pesado. Ao chegar ao cimo, o leitor é livre de não acreditar, vi enormes seres alados. Havia neles, na face e no corpo, demasiada humanidade. Eram anjos. Flamejantes, coriáceos, combatiam entre si.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Haikai do Viandante (278)

Claude Gellée - Amanhecer

vem sobre os campos
a fria luz da madrugada
o dia anuncia-se

quinta-feira, 24 de março de 2016

Da periferia

Pierre-Albert Marquet - Arredores de Paris (1904)

Aquele que escolhe o caminho da contemplação procura a periferia e não o centro. Ser periférico, estar no arrabalde. A vida do espírito é assim um exercício de descentramento e de abandono de si. A humildade é o lugar da contemplação. A glória, o da coisa contemplada. Até que contemplado e contemplador sejam um e único, até que não haja mais periferia nem centro.

quarta-feira, 23 de março de 2016

A grande tentação

Max Beckmann - Tentação (1936-37)

Há neste mundo as pequenas tentações e as grandes tentação. A maior das tentações, contudo, é a de se eximir a qualquer tentação. Eximir-se à tentação significa esquivar-se ao confronto com a realidade, fingir que não se está presente no mundo e que não se está sujeito ao regime da nossa finitude e a sua concomitante fragilidade. A maior tentação é a de se iludir a si mesmo.

terça-feira, 22 de março de 2016

Poemas do Viandante (533)

Emilio Pettoruti - Armonía - Movimiento Spazio (1914)

533. Um rápido

Um rápido 
movimento 
de mãos
abre rugas, 
tão ruidosas,
no espaço negro
onde do caos 
irrompe
a súbita 
harmonia.

segunda-feira, 21 de março de 2016

As cores

Rodríguez Castelao - As cores (1931)

Também as cores assinalam o caminho na viagem. Primeiro prendem o espírito à sua diversidade. Depois, passado o encantamento estético, tornam-se uma ordem onde o viandante aprende a ler, gradualmente, o progresso no caminho que o conduz das trevas mais densas à luz mais pura.

domingo, 20 de março de 2016

Um triunfo

Laszlo Moholy-Nagy - Homem Sentado (1919)

São assim os meus dias. Levanto-me e, como uma sombra, saio de casa. Vagueio pelas ruas e sinto-me desencarnado. Tento ver-me no reflexo das montras e não encontro a imagem do meu corpo. Perplexo, volto para casa. Sento-me e leio. A vida começa nesse momento. A realidade? Valerá a pena disputar sobre o que é a realidade? Não, claro que não. Os meus olhos caem sobre as palavras e o mundo desenrola-se dentro de mim. Uma ilusão? Já não tenho idade para me iludir. Limito-me a descrever o que se passa. Os meus olhos recebem as palavras. Chegadas a mim, transformam-se, ganham densidade, tomam carne. O meu corpo anima-se, participa nas peripécias da história que leio. As horas passam. Por vezes, olho o espelho ao fundo. Ele devolve de imediato a minha imagem. Sorrio triunfante. Baixo os olhos e continuo a ler.

sábado, 19 de março de 2016

Poemas do Viandante (532)

Albert Bloch - Parable (1936)

532. Também ele falava

Também ele falava
por parábolas.
Tecia um véu de sombra
para que a luz
não incendiasse 
as palavras
e os ouvidos incautos
pudessem escutar
o fogo vocálico
que por elas descia.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Trabalho de pioneiro

Pekka Halonen - Pioneers in Karelia (1900)

A vida do espírito implica também ela um trabalho de pioneiro? Sim, claro, pois ela é um desbravar de um caminho. Contrariamente, porém, a outras dimensões da existência, a vida espiritual não é um trabalho de equipa. O pioneiro desbrava o caminho na mais pura solidão. E porquê em solidão? Porque esse caminho é o seu caminho, só a ele diz respeito, só ele o poderá trilhar. Ele é o pioneiro de si mesmo.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Haikai do Viandante (277)

Pekka Halonen - Washing on the Ice (1900)

a desolação
trazida pelo inverno
rio de água gelada

quarta-feira, 16 de março de 2016

Da inclinação

Hsu Wei - Bambous sous la brise

Como um bambu se inclina quando o vento desliza por ele, também o homem se deve inclinar para onde o espírito lhe indicar. O erro é querer permanecer hirto se um vendaval sopra. Inclinar-se é, então, a única forma de se permanecer vertical, pois o alto não está, nessa hora, em cima, mas em frente.

terça-feira, 15 de março de 2016

Desrealização da luz

Albert Bloch - Figures in silver light

A vida do espírito é, antes de mais, uma aprendizagem da visão. Começa com a descoberta de que a visão, para a qual fomos educados e nos dá um mundo, não passa de um artifício, no qual nos prendemos submissos ao que etiquetamos como realidade. Esta, porém, não é mais do que uma realização. A realidade quotidiana não passa de uma realização embotada, que perdeu vigor e repousa na preguiça. O primeiro passo é des-realizar o real, para aprendermos a ver sob uma nova luz. O passo definitivo é descobrir que cada nova luz é sempre um artifício que há que des-realizar. Para o homem não há uma claridade última. A cada etapa ele precisa de aprender a olhar de novo.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Fogos de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fuegos de Artificio

Muitas vezes, a vida espiritual não é outra coisa senão um fogo de artifício, a produção de uma grande coreografia luminosa para esconder a realidade e a incapacidade para enfrentar e lidar com essa realidade. A vida do espírito, contudo, só começa quando se deixa para trás qualquer ilusão sobre essa mesma vida. Só a realidade conta. O caminho é sempre árduo e nunca está sinalizado. A mais das vezes, é percorrido na noite mais escura.

domingo, 13 de março de 2016

Haikai do Viandante (276)

João Hogan - Paisagem

um rio de silêncio
rasga a pedra da paisagem
sol terra e água

sábado, 12 de março de 2016

Improvisação da morte

Wassily Kandinsky - Improvisation (1909)

Tremi ao tocar os lençóis frios. E se não sonhar esta noite, pensei, haverá ainda um amanhã? Deslizei para dentro da cama, apaguei a luz. Na consciência, improvisei imagens vívidas, tão opostas à frugal brancura do hotel onde me hospedara. Cavalgava em direcção a um castelo, o vento na face, o odor do animal. Adormeci, por certo. Quanto tempo? Nunca o saberei. Ao acordar, o quarto e o hotel tinham desaparecido. Ergui-me do chão de terra batida. Eram ruínas de um velho castelo. Senti uma vertigem. Aos meus olhos, desenrolava-se uma terrível batalha medieval. No meio do combate, reconheci-me, deitado por terra, trespassado por uma lança, esquecido na morte. 

sexta-feira, 11 de março de 2016

Poemas do Viandante (531)

Umberto Boccioni - Boats in Sunlight (1907)

531. Barcos, barcos

Barcos, barcos,
letras de fogo,
sílabas de luz,
uma palavra
de vento
a murmurar
na água do cais

quinta-feira, 10 de março de 2016

Viver no deserto

João Queiroz - sem título (2004)

É nas paisagens inóspitas, de natureza desértica, de onde a presença do homem foi banida, que o viandante encontra o lugar para a sua viagem. A vida do espírito é um abandono constante das rotas conhecidas e a procura de um território virgem para que um novo e singular caminho se possa traçar. Por isso, mesmo na cidade entre os homens, o viandante vive no deserto.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Para lá da contingência

Alfonso Ponce de León - Accidente (1936)

A vida quotidiana está cheia de acidentes. Um acidente é interpretado como um evento fruto do acaso. É marcado pela contingência e não o resultado de uma necessidade imperiosa. A vida do espírito, na sua mais pura liberdade, não tem, todavia, acidentes. Ela não é o reino nem do acaso nem da contingência. Tão pouco da necessidade exterior. Ela é o reino da liberdade. Tudo o que acontece nela é o fruto de uma necessidade interior que se manifesta livremente e constitui um enigma que o viandante terá de resolver, uma desafio a que tem de responder.

terça-feira, 8 de março de 2016

Do sentimento de abandono

Max Klinger - Abandonada

O sentimento de abandono, de se ser atirado para a solidão, ainda é sinal de que se está preso e submetido a uma ordem de desejo do outro. A dor de estar abandonado - uma dor real - é o sinal de que a pessoa ainda não se abandonou a si mesma, ainda espera alguma coisa para além do puro abandono. Quem se sente abandonado ainda não está disponível.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Haikai do Viandante (275)

Paul Cezanne - Chateau Noir (1904-6)

nas paredes negras
oiço o silêncio da tarde
os campos em flor

domingo, 6 de março de 2016

Uma carta

Alfonso Sucasas - Carta a Rosalía (1989)

Escrevi esta carta como se tivesse alguém a quem a enviar. Imagino uns dedos a abri-la, a ânsia a bater no coração antes de os olhos tomarem de assalta as palavras, palavras escritas num azul tão puro, como aquele que o céu deixa ver nos dias de primavera. Ao imaginar, esses dedos e o pulsar do coração sob os seios, enterneço-me. Há tanto tempo que não me enterneço. O meu coração endureceu e eu escrevo a carta para te poder imaginar a lê-la e enternecer-me na melancolia que haveria em ti, se eu te tivesse escrito e se tu abrisses a carta para ler as palavras que te escrevi com o mais puro azul que o céu tinha.

sábado, 5 de março de 2016

Poemas do Viandante (530)

Francisco Sebastián - Entardecer (1987)

530. Entardece

Entardece
neste inverno
incerto,
neste dia
escuro e frio.
Entardecem,
na sombra
dos teus olhos,
os barcos 
que passam 
no rio.