domingo, 30 de agosto de 2015

A aridez da pedra

JCM - Mitologias (o triunfo da vida). Serra de Aire (2007)

Subitamente, na aridez desolada da pedra a vida emerge triunfante. O que aprendemos nós com isso? Talvez a pedra não seja tão árida. Talvez a aridez não se tão petrificante. Aprendemos que a vida do espírito não é outra coisa senão extrair da aridez e da petrificação da existência a vida plena e, cuidando-a, fazê-la triunfar sobre a desolação da morte.

sábado, 29 de agosto de 2015

Da frugalidade e da abundância

Ferdinand Hart Noibbrig - Abundância (1895)

A vida material domina as preocupações dos homens, e domina-as na busca da abundância, de uma infinita viagem de acumulação, que nunca se completa e nunca se sente satisfeita. A vida do espírito, contudo, nasce da frugalidade, do abandono, da satisfação com o acontecer. A vida espiritual não alimenta mercados nem ateia a imaginação dos coleccionadores. Ela é pobre. Foi assim que foi simbolizada no presépio em Belém.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Haikai do Viandante (245)

Asher Brown Durand - A Pastoral Scene (1858)

cenas pastoris
sob um céu primordial
canções juvenis

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Alegoria e realidade

André Masson - Alegoria (1935)

Na definição tradicional de alegoria, pensada como processo retórico ou poético, diz-se que ela é a representação de uma realidade abstracta por intermédio de uma realidade concreta. Se abandonarmos os campos da retórica e da poética e entrarmos no campo da ontologia haverá a possibilidade de pensar, a partir da alegoria, que toda a realidade concreta, incluindo os seres humanos, não é mais do que uma alegoria de uma outra realidade menos concreta, a qual por sua vez seria ainda a alegoria de uma outra ainda menos concreta do que a anterior, num processo infinito, no qual o real se vai despindo da sua materialidade e se vai tornando cada vez mais puro e espiritual. 

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Do burlesco

Thomas Hart Benton - Burlesco (1922)

Deixemos o burlesco enquanto género literário de lado. Não precisamos dele para nos rirmos e apreendermos o risível, o ridículo e o caricato. Basta olhar para nós próprios, para os nossos projectos vitais, e, nobres ou comuns, dignos de tragédia ou objecto de comédia, temos todas as razões para nos rirmos, para nos rirmos continuamente, numa gargalhada sem fim.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Um luar nas trevas

Felix Vallotton - Luar (1895)

Muitas vezes a razão é vista através da metáfora da luz solar, pensando-se, através de uma analogia, que assim como a luz do Sol ilumina a Terra, também a razão ilumina a realidade e permite ao homem compreendê-la. Se a nossa espécie não fosse tão narcísica, tomaria como termo de comparação para a sua razão a luz da Lua e não a do Sol. Isso estaria mais de acordo com os resultados e as decepções que a razão, ao longo da história dos homens, trouxe consigo. A luz da razão pode ser bela, mas não passa de um luar que, com dificuldade, fende as trevas exteriores.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Ficar e partir

Umberto Boccioni - Estados de Alma I - os que partem (1911)

Na vida social dos homens há uma grande diferença entre os que ficam e os que partem. Ficar ou partir são formas diferentes de projectar a vida e podem mesmo constituir um traço de carácter. Na vida do espírito, contudo, é indiferente ficar ou partir, pois há que aprender a ficar como se tivesse partido, e aprender a partir como se tivesse ficado.

domingo, 23 de agosto de 2015

Caminhos áridos

Remedios Varo - Caminho árido (1962)

Na vida do espírito, seja qual for a área onde se desenvolva a vida espiritual (religião, arte, ciência, filosofia), os caminhos áridos, marcados pela impotência criativa, são centrais na viagem. A aridez devolve o espírito à sua humildade, mostra-lhe a sua finitude, mostra-o dentro dos limites que são os seus. Estes exercícios forçados de humildade são, porém, momentos preciosos. Preparam uma nova etapa de criação e de atenção ao que é essencial, de capacidade para escutar a voz que chama.

sábado, 22 de agosto de 2015

Poemas do Viandante (519)

Roberto Domingo - O Moinho

519. ó branco e velho moinho

ó branco e velho moinho
rasga-me a memória

ergue-te sobre os campos
suspende o tempo

e conta-me p'lo caminho
a velha história

envolta em negros mantos
presa num lamento

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O filho pródigo

Ivonne Sánchez Barea - A família (1999)

A família não é apenas um lugar de acolhimento. Ela representa um lugar de ligação. Ligação entre os seus membros - os laços de família - e a ligação com o passado, com o fundo obscuro da humanidade. Tanto os laços actuais como a ligação ao passado foram vistos como sagrados, como tendo uma dimensão espiritual. Essa dimensão espiritual precisa de alguma coisa que a realce e que a vivifique. Ora viagem espiritual do homem traz consigo uma estranha exigência: a da ruptura com a família, a de que nos tornemos filhos pródigos. A aventura do filho pródigo não é apenas a da dissipação. É a do estranhamento e o da aquisição de um novo ponto de vista sobre a família. Ao retornar da sua viagem, o filho pródigo eleva a família de uma dimensão biológica, social e afectiva a uma dimensão espiritual.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Espíritos mundanos

George Grosz - Arbeiter (Trabalhadores) (1912-13)

Houve um momento na história do mundo onde a figura do trabalhador foi tomada como a essência espiritual desse mundo. O mundo, porém, mudou e a essência espiritual do novo mundo desmaterializou-se, tornou-se mais subtil e indecifrável. Apesar das diferenças entre as diversas essências dos múltiplos mundos da história humana, há uma coisa que as une: são todas elas uma ilusão onde o Espírito se aliena e se perde de si mesmo. O importante não é que nos adequemos ao espírito deste mundo, mas que não nos deixemos contaminar por ele, descobrindo o caminho onde o Espírito é como o vento, sopra onde quer.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Haikai do Viandante (244)

Andrés Cortés Aguilar - El Guadalquivir a su paso por Sevilla

nas margens do rio
escuto o rumor das águas
sob um céu sombrio

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Caminhar sobre as águas

Georges Braque - Porto na Normandia (1909)

Se pensarmos os momentos de suspensão na vida espiritual através da metáfora do aportamento, de lançar âncora no porto, então compreendemos que toda viagem do espírito é uma navegação, um abrir horizontes sobre as águas, que, com a sua fluidez, se constituem como uma outra imagem do espírito não muito diferente da do vento. Toda a viagem espiritual é, desse modo, um caminhar sobre as águas.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Improvisar

Wassily Kandinsky - Improvisation (1909)

Vivemos num mundo de planos e de projectos, no qual as acções requerem um elevado grau de premeditação e de deliberação. Neste sentido, o agir dos homens depende de um raciocínio prático, outra forma de dizer a necessidade de uma racionalização prévia do agir. Isto que é regra na vida mundana pode não se aplicar à vida do espírito. O espírito é como o vento, sopra onde quer. E, se assim é, ao homem resta-lhe a improvisação, a resposta espontânea à solicitação do acontecer.

domingo, 16 de agosto de 2015

Visões outonais

Alson Skinner Clark - Claridade de Outono

Na simbólica das estações do ano, o Outono surge como o tempo do declínio. O grande fulgor, simbolizado pelo Estio, já passou, mas a vida ainda não entrou no frio e negro Inverno, presságio da morte. A vida espiritual, contudo, encontra no Outono uma outra simbolização. A claridade do Outono, de onde desapareceram os efeitos dos ardores primaveris e da efervescência estival, é a mais propícia ao caminho e a que permite ver mais fundo e melhor. Não há visões como as trazidas pelo Outono.

sábado, 15 de agosto de 2015

Poemas do Viandante (518)

Jeanne Carbonetti - Puesta de sol en Turner (1987)

518. um lenço de seda fria

um lenço de seda fria
cai sobre a terra

seda vestida de negro
prende a floresta

num laço de cinza pálida
que a tudo encerra

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Integrar o destruído

Salvador Soria - Integración de lo destruido 91-H (1991)

A vida do espírito não é um caminho que se faça sem processos de destruição. Destroem-se visões do mundo, formas de estar, hábitos essenciais. Não é a destruição que é inimiga da vida espiritual, mas o desperdício. Desperdiçar o que se destrói é pôr de lado um aspecto essencial da viagem. O importante não é evitar a destruição mas saber integrar plenamente em si aquilo que foi destruído.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Agora sou um homem

Francis Bacon - Man Turning on the Light (1973-74)

A velha barata habitava a casa há muitos anos. Era alimentado pela família e acabara por ter um quarto para dormir. Talvez tivesse ali nascido e crescido, e o seu desmedido crescimento tornara-a uma presença inquestionável. O hábito pode tudo. Grete, a filha do casal, dizia aos vizinhos: esta barata repugnante é como se fosse meu irmão. Que nome tem, perguntavam. Ela respondia: Gregor. Gregor Samsa. Um nome melancólico para barata tão grande, respondiam. Tudo isto, ao longo dos anos, fora percebido pelo insecto. O seu cérebro humanizara-se no conforto da casa. Esta noite, porém, o seu sono de barata fora entrecortado por estranhos sonhos e por dores terríveis. Tudo no corpo se lhe tornava insuportável. Na tensão do sofrimento, a barata deu um salto e precipitou-se para o interruptor. O quarto iluminou-se. Toda a cidade foi varrida por um grito pavoroso e ouviu uma voz gigantesca exclamar: meu Deus, piedade, agora sou um homem.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Jardim e utopia

Pierre Bonnard - O grande jardim (1898)

Poder-se-á pensar que a raiz da propensão utópica no mundo ocidental se encontre na República platónica. O livro de Platão, porém, é demasiado abstracto para incendiar a imaginação popular. É no Génesis bíblico que encontramos o fundamento dessa propensão. O Jardim do Éden, esse lar primeiro do homem, não é apenas o modelo de todos os jardins que o engenho do homem ocidental constrói, é o objecto perseguido em cada utopia que ele desenha. Estas utopias, tão diferentes entre si, não são mais do que a aspiração do filho pródigo ao retorno à casa paterna, ao lar originário.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Haikai do Viandante (243)

Benvenuto Benvenuti - Agosto. Noite (1901)

um cheiro a mosto
uma sombra na floresta
as noites de agosto

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Estátuas de sal

Rafael Canogar - Arqueologia III

A psicanálise terá sido uma das invenções que mais influência exerceu - e exerce - no mundo ocidental. Propõe uma espécie de salvação pelo exercício da arqueologia. O paciente é convidado a escavar no seu passado remoto para encontrar o conflito que se manifesta na sua patologia. O processo, porém, é perturbante pois traz à memória o destino da mulher de Lot. Ao olhar para trás foi transformada em estátua de sal. Quando passamos da arqueologia pré-histórica para a arqueologia pessoal, em vez de encontramos a salvação, corremos o risco de sermos transformados em estátuas de sal.

domingo, 9 de agosto de 2015

As primeiras horas

Max Pechstein - Early Morning (1914)

As primeiras horas do dia sempre foram pressentidas pelo homem como um princípio de esperança. Não apenas a esperança de que a luz se suceda à noite e às trevas, mas também a expectativa de que o novo dia seja a hora em que se corte com a rotina quotidiana, e uma nova vida brote da árvore desgastada da existência.

sábado, 8 de agosto de 2015

Como um arquitecto

Ángel Orcajo - Arquitecturas IV (1986)

A viagem espiritual - essa aventura que nos cabe ao recebermos o dom da vida - é tão excessiva que não há imagens que esgotem o seu sentido. Por isso, recorrentemente é necessário voltar à viagem e a uma nova imagem, como, por exemplo, a da arquitectura. A viagem é um exercício de projecção e de construção de estruturas arquitectónicas, um exercício em que o viandante, como o arquitecto que extrai o cosmos do caos, retira do informe e do não sentido aquilo que ostenta uma forma e ganha um sentido. 

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Poemas do Viandante (517)

Jeanne Carbonetti - Hálito de Primavera (1988)

517. Depois da noite de Inverno

Depois da noite de Inverno
desce em nós a luz.

No segredo da floresta
abrem-se clareiras.

Nelas o lenhador canta
os antigos cânticos.

E a vida recomeça:
veio a Primavera.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O desprendimento

Jeanne Carbonetti - Bétulas no outono (1997)

À exuberância do Estio, a natureza responde com o tempo em que as árvores se despem e preparam para a invernia. O Outono traz, para os homens, uma lição decisiva, porventura a mais decisiva de todas. O importante não é acumular. O importante é aprender a despir-se, aprender a abandonar tudo aquilo em que o desejo concentra a sua intencionalidade. Importante não é a posse mas o desprendimento, o desprendimento mesmo de tudo aquilo a que damos a maior das importâncias.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Pontos de contacto

Frantisek Kupka - Pontos de contacto (1934)

A expressão ponto de contacto traz nela uma carga semântica que se presta a uma simbolização da experiência, a qual transcende, pela sua própria natureza, a fisicalidade do tacto e do contacto. Contactar, literalmente, é uma dupla experiência. Passiva, pois recebe-se algo de um corpo exterior, e activa, já que tem uma dimensão exploratória de outros corpos. A vida espiritual é, ela própria, marcada por pontos de contacto, onde o viandante recebe algo que vem gratuitamente a ele, mas onde também é activo na abertura para aquilo que pode descer sobre ele. A viagem não é outra coisa senão um percurso que liga os múltiplos pontos de contacto.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Haikai do Viandante (242)

Prince Eugéne de Suéde - A Summer Night (1895)

noite de verão
frio crepúsculo da terra
sombra e solidão

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Um café

Edward Hopper - Autómata (1927)

Uma bebida naquele sítio estranho, numa terra que vira pela primeira vez. Ao entrar, pensou: está tudo acabado. Um café, pediu, numa voz mecânica, quase sem olhar para a rapariga que a escutava. Um café, e deixou o pensamento vaguear pelo passado, pelos cafés onde entrara nessa vida que acabara. Sentiu a chávena na mão, o calor que lhe subia pelo braço, o cheiro que se desprendia e parecia querer penetrá-la, tomar conta dos seus sentidos. Bebeu o café, lentamente, muito lentamente. A princípio, fê-lo num gesto automático, mas alguma coisa acordou nela. Aquele sabor espesso parecia novo, como fosse a primeira vez que o saboreava. Deixou-se invadir pela novidade, que logo se apossou do seu peito. Ao acabar o café, soube que estava equivocada. Tudo começava agora e o mundo abria-se com uma outra cor, a sua cor.

domingo, 2 de agosto de 2015

Condenados à errância

Ferdinand Hodler - Ahasver, el judío errante (1910)

A história, que se começou a espalhar, ainda na Idade Média, de Ahasver, o judeu errante, é sintomática da vida espiritual e diz respeito a todos homens e não apenas aos que têm a particularidade de serem judeus. Faz parte de um repositório de experiências universais. A narrativa, em resumo, conta que Ahasver ridicularizou Cristo quando este fazia o caminho que o conduziria à crucificação. Recebeu, em troca, a maldição de errar mundo fora até à parusia do Cristo, isto é, até à segunda vinda, em glória, do Messias.

Que sentido podemos encontrar nesta narrativa? Se abstrairmos de uma interpretação histórico-racionalista, encontramos um caminho hermenêutico possível. Ahasver ri-se do seu desejo de vida espiritual (sendo esta figurada na ascese que conduz Cristo à morte na cruz). É este desprezo que o perde e o leva a errar até que se encontre a si mesmo, encontre a sua verdadeira natureza (a qual é configurada, na narrativa, na parusia de Cristo). A história de Ahasver não fala de um judeu particular que cometeu uma certa acção num dado momento histórico. Fala de todos e de cada um de nós que, ao desprezarmos a vida do espírito, nos condenamos à errância.

sábado, 1 de agosto de 2015

Quarta-feira de cinzas

Henri Rousseau - Carnival Evening (1886)

Tomaram o caminho da floresta. Ao chegar a uma clareira, o luar indicou-lhes que era ali o seu lugar. O vento desaparecera e as nuvens ficaram imóveis, para que a lua, a velha companheira do desejo e do mistério, não deixasse de os iluminar. Tudo era silêncio à sua volta. Olharam-se então pela primeira vez. Os olhos levaram tempo a habituarem-se à sombria luz que os envolvia. Quanto mais se olhavam maior era noite que crescia dentro deles. Sem se desfitarem, tiraram a máscara. Depois despiram-se. Estavam nus, um perante o outro, olhos nos olhos, a lua sobre os corpos e a noite, a noite de carnaval, apoderou-se de cada um. Na aurora de quarta-feira, os primeiros lenhadores, ao entrarem na clareira, viram, sob o silêncio do dia que nasce, um monte de cinzas. Ao lado, duas máscaras de carnaval.