sábado, 27 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (477)

JCM - Heimat VI (2007)

477. havia naqueles dias uma fronteira

havia naqueles dias uma fronteira
coberta de fogo e rosas

havia um plátano a sombrear a casa
adormecido no jardim

havia a memória  do vento outonal
no silêncio das ramadas

havia a vida inteira e sem mácula
que se abria para mim

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

A luz e as trevas

JCM - Mitologias (the light shines in darkness II) (2006)

A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam (João 1:5).

Nunca se pensa radicalmente o jogo que nos é trazido pelas múltiplas aproximações ao mistério da relação entre luz e trevas. Tanto a luz como as trevas fascinam o homem desde tempos cuja memória há muito se apagou. Com elas foram compondo mitos, poemas, narrativas morais ou soteriológicas, mas a simbologia que luz e trevas introduzem abre para um universo infinito e inesgotável de significações. 

O versículo de João mais do que dilucidar o mistério torna claro a sua natureza mistérica através de um sábio, embora não muito explícito, recurso ao paradoxo. Onde reside esse paradoxo? A primeira afirmação - a luz resplandece nas trevas - constata um facto, mas essa constatação factual é o reconhecimento de uma necessidade. Para resplandecer, a luz necessita das trevas. O paradoxo é introduzido na segunda proposição - as trevas não a compreenderam. O paradoxo não reside no facto de as trevas não terem compreendido a luz, mas no tom marcadamente de censura que resulta da leitura do versículo e de todo o seu contexto. 

O que seria necessário para que as trevas compreendessem a luz? Que nelas houvesse já luz, que elas não fossem trevas. Isso, porém, entra em contradição com a necessidade que luz tem das trevas para resplandecer. O texto de João traz inscrita, no seu cerne, uma contradição: as trevas devem e não devem ser, ao mesmo tempo, trevas. Esta contradição não é um erro lógico, um equívoco da razão. Ela é uma injunção a que o homem, mantendo a contradição, medite nela e entre no mistério que ela encerra, não com a razão, mas com a totalidade do seu ser aberto ao e pelo paradoxo.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Haikai do Viandante (205)

JCM - Black & White Dreams (Serra da Estrela) (2008)

a velha floresta
na clareira da montanha
esp'rança que resta

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A vida e o outo

JCM - Distopia (a silent city) (2007)

Eu dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros (Jo 13,34).

Qual o padrão que deve orientar a nossa relação com o outro, esse outro que é também um próximo? O judaísmo tinha codificado essa relação na lei mosaica, a qual, com os seus mandamentos, estabelecia o padrão que deveria presidir às relações com o outro e o Outro. Esse padrão, mesmo quando fala no amor a Deus, assenta na ideia de respeito. Pela lei mosaica, o respeito pelo outro é a pedra angular da relação ao próximo. Ora o cristianismo traz um novo mandamento, o do amor ao próximo. E qual é o padrão deste amor? O padrão é o amor que Cristo terá devotado aos homens. Ora esse amor está muito longe de ser um delíquio  afectivo, uma vaga sentimentalidade tão ao gosto da nossa época. Para além da aceitação do outro figurada no perdão, o amor crístico reside na dádiva da vida. Toca na raiz daquilo que nos é mais precioso, a vida. Qual é o padrão de amor ao próximo que o cristianismo traz consigo? O dar a vida, morrer por esse outro. Que tal mandamento tenho colonizado parte do mundo, mesmo que a generalidade dos crentes não esteja disponível ou seja impotente para o cumprir, não deixa de ser um mistério.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

No fluir da existência

JCM - Humanitas XI (2014)

Deixai vir a mim as crianças, não as impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que se tornam semelhantes a elas (Mateus 19:14).

Que semelhança deve o homem buscar para que se torne como as crianças? Não mentem as crianças? Não fazem elas o mal e, por vezes, de forma tão terrível? Por certo, e apesar do nosso tempo divinizar a moralidade da criança, não será a mentira, o egoísmo e o mal presentes em todas as crianças que os homens são convidados, por Cristo, a emular. Os homens são incitados a devir crianças para que, como elas, se entreguem livremente ao fluir da existência, reaprendam a ingenuidade de dançar, sem ideias preconcebidas ou metas a atingir, com os elementos da vida. São intimados a abrirem-se perante o mistério das coisas como o fazem as crianças. No versículo de Mateus não está em questão uma moralidade mas um modo de ser, uma forma de entrega à existência.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (476)

JCM - Símbolos, segredos e sinais (2014)

476. símbolos segredos e sinais

símbolos segredos e sinais
riscam o caminho

e na via assim tracejada
descerra-se o destino

desenhando na floresta
a breve clareira

onde a rosa se abre para
o pão e o vinho

domingo, 21 de setembro de 2014

Revelação de si

Esteban Vicente - Descubrimiento (1992)

A viagem do viandante é sempre uma aventura de descobrimento. Descobrir aquilo que está em si oculto, como se fosse uma cifra ou um enigma. Na viagem, o que se revela é uma paisagem interior. O viandante, no caminho que toma, revela-se a si mesmo e revela aquilo que o envia.

sábado, 20 de setembro de 2014

Para além das muralhas

JCM - Heimat V. Torres Novas (Castelo) (2007)

Erguer muralhas é ainda um sinal de menoridade do espírito. Preso em si mesmo, tem medo de se abrir à vida plena. Então, fecha-se e olha vida e mundo a partir das torres onde se encastelou. A viagem do Viandante não é outra coisa senão a contínua destruição das muralhas que o medo ergue. Medo da sua própria destinação, medo que o entrega à errância e à dissipação. Porém, para lá das torres do castelo uma voz ecoa no deserto.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O elo da aliança

JCM - Mitologias (o arco da aliança) (2014)

Quando o homem descobriu o arco-íris como símbolo da aliança entre os homens e a divindade talvez tenha compreendido uma outra coisa. Talvez tenha compreendido que, na sua multiplicidade, o homem é o próprio arco-íris, esse elo que estabelece a relação entre as forças da terra e os poderes do céu. E fá-lo-á  tanto mais eficazmente quanto mais frágil e vazio ele for, tão frágil e vazio quanto o arco-íris.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Haikai do Viandante (204)

Lilla Cabot Perry - Autumn Afternoon, Giverny

venham velhas cores
debruar a terra de outonos
e novos odores

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Como terra seca

JCM - Time on space (2007)

Como a terra seca, também o espírito do homem abre fracturas, sinais de longos períodos de seca, onde a espera cava zonas obscuras. Ali está a dor, o abandono, a desistência, mas também a esperança de que algo venha iluminar o espírito e trazê-lo para paisagens mais verdejantes.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (475)

Egon Schiele - Sol de Outono (1912)

475. eis a estreita escada de pedra e cal

eis a estreita escada de pedra e cal
por ela virá o outono

para trás ficarão os dias luminosos
e um rasto de água

ficará o ramalhar sombrio das folhas
no bosque silencioso

e sobre a terra haverá nuvens e cânticos
o vinho que ninguém bebeu

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Metamorfoses

JCM - Colour Dreams (Vila Nova da Barquinha) (2007)

Quantas vezes as metamorfoses do céu são símbolo daquilo que se passa no espírito do homem. Um olhar ingénuo, dir-nos-á que os fenómenos luminosos que o céu reflecte em nada estão relacionados com o que se passa no espírito do indivíduo. Esse, porém, é um olhar ingénuo que esquece que todos os fenómenos ópticos são relacionais e que o indivíduo está implicado nessa relação. E essa implicação não se relaciona apenas com o processo de formação das cores, mas também com aquilo que o levou a dirigir o olhar para um certo lugar e de uma certa forma. As metamorfoses do céu só chamam a atenção de alguém porque esse alguém encontra nelas o espelho das suas próprias metamorfoses. Também elas são símbolo.

domingo, 14 de setembro de 2014

Do símbolo (II)

JCM - Raiz e utopia (cemitério de guerra alemão na Normandia) (2007)

Ontem escreveu-se aqui que o símbolo "rasga uma clareira onde a realidade se realiza". Essa, porém, é apenas uma das potências operantes no símbolo, a capacidade de abrir um mundo. Tem também o poder contrário, o de perfazer ou acabar mundos da vida. A característica central do símbolo é a sua ambiguidade. Ele é o que abre, mas também o que encerra e torna acabado aquilo que foi começado e se manifestou no mundo.

sábado, 13 de setembro de 2014

Do símbolo

JCM - Raiz e utopia (a cruz) (2008)

Os símbolos não possuem apenas uma dimensão semântica. Melhor dizendo, os símbolos possuem uma dimensão semântica de tal forma densa que, ela mesmo, é um princípio de realidade. Não é a realidade que dá origem ao símbolo. Pelo contrário, é o próprio símbolo que rasga uma clareira onde a realidade se realiza, isto é, se torna real. Os símbolos são presenças no mundo daquilo a que poderíamos chamar sobre-realidade.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Do mestre e do discípulo

Francisco de Goya - Obsequio á el maestro

Não está o discípulo acima do mestre, mas o discípulo bem formado será como o mestre (Lucas 6:40).

Há duas maneiras de conceber a sabedoria. A modernidade, ao concentrar a ideia de sabedoria no conhecimento proveniente das ciências empíricas, concebe a sabedoria como cumulativa. O discípulo tem por objectivo ultrapassar o mestre. As sociedades não modernas, porém, viviam segundo uma matriz completamente diferente. Há uma sabedoria primordial que corre o risco, através do acto de transmissão, de se degradar e perder. Por isso, o mestre, se o for efectivamente, transporta essa sabedoria consigo, e o seu magistério será tanto mais completo quanto ele souber transmitir aquilo que recebeu. Nem mais nem menos. E o discípulo o máximo a que pode aspirar é emular o mestre e tornar-se, como ele, em mestre. No cristianismo, o mestre supremo, o detentor da sabedoria primordial, é o próprio Cristo, o modelo proposto a todos os discípulos, isto é, a todos os homens, e no qual todos os homens se devem tornar.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (474)

JCM - Black & White Dreams (2014)

474. nunca do amor ou da vida ou da morte

nunca do amor ou da vida ou da morte
sabemos o que baste

o coração logo se enreda na penumbra
inclinado pelo desejo

e aquilo que o feroz olhar então abarca
é uma sombra outonal

o rasto de uma promessa incendiada
a ânsia que devora

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O abandono da ilusão

Pierre Puvis de Chevannes - O pobre pescador (1881)

Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. (Lucas, 6:20)

Numa sociedade como a nossa, movida pela dinâmica da riqueza e da pobreza materiais, perdeu-se há muito a capacidade de compreender a pobreza - a pobreza evangélica - como despojamento. Pobre, neste sentido, não é aquele que vive na indigência, mas aquele que compreendeu que os bens materiais são uma ilusão e que optou pela frugalidade e o abandono da ilusão. Ser pobre significa abandonar toda e qualquer ilusão. E essa é a condição da plenitude, daquilo que Lucas nomeia como Reino de Deus.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Haikai do Viandante (203)

JCM - My foolish world (2007)

vermelho e negro
cobrem de folhas a terra
a vida e o desejo

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Bóia de salvação

JCM - Raiz e Utopia (bóia de salvação) (2014)

Talvez a aprendizagem mais difícil a fazer seja a de que não há bóia de salvação que permita ao homem salvar aquilo que ele anseia salvar. E esta inexistência não se deve à avareza da natureza ou a um particular descuido da divindade. Não há porque aquilo que o homem sonha salvar é nada, uma inexistência, a quimera a que, em desespero, se agarra.

domingo, 7 de setembro de 2014

Um sinal de eternidade

JCM - Still-life (2014)

No conceito de still-life (natureza morta) é essencial pensar não o modo estético de composição de um certo objecto artístico mas aquilo que se revela através de uma natureza morta, a suspensão do movimento e a abolição da temporalidade. Uma natureza morta está longe, então, de ser uma manifestação daquilo que está morto, do inanimado. É antes um sinal do que está para lá do tempo e, por isso, não se deixa captar pela armadilha física da cinemática. Uma natureza morta, ao fixar definitivamente uma hora, dirige o seu dedo indicador para a eternidade.

sábado, 6 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (473)

JCM - Mitologias (ó mar salgado...) (2014)

473. deixa que o mar te chegue pela janela

deixa que o mar te chegue pela janela
e traga uma onda de luz

espera que no sal da água venham
os restos de uma caravela

senta-te no frio rumorejo da areia
e conta as aves que passam

e se no céu uma nuvem ensombrar a luz
confia na palavra que te incendeia

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Vencer a escuridão

JCM - Black & White Dreams (2014)

Raramente o homem compreende que está envolto pela escuridão mais tenebrosa. Na verdade, a viagem espiritual não é outra coisa senão a luta contra essas trevas, o exercício de abrir pequenos rasgões na cortina pelos quais a luz possa penetrar e iluminar - por pouco que seja, e é sempre tão pouco - o homem na sua falível humanidade. ´Que fazer? Vencer a escuridão.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A ascese do jardineiro

JCM - Heimat I. TN (2007)

As analogias trazem sempre um perigo. Por exemplo, podemos dizer: a vida do espírito é como um jardim. O perigo reside em perceber a vida espiritual como algo organizado e cosmético, como são os jardins aos olhos daqueles que fruem deles. A verdade da analogia, porém, reside noutro lado. Todo o jardim é uma viagem dura e trabalhosa em que a tendência para o caos e a força do espontâneo são substituídos por um mundo organizado e ordenado a um fim. E sempre que a força natural e a espontaneidade caótica se manifestam, o que preserva e faz perseverar o jardim na sua condição é a ascese do jardineiro, cortando aqui, podando acolá, limpando mais à frente, regando o que clama água. A vida espiritual a que o viandante - quem quer que ele seja - é chamado não é outra senão a da ascese do jardineiro.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Castanheiros em flor

JCM - Mitologias (castanheiros em flor) (2007)

São efémeras as florações, mas trazem nelas a promessa de um novo florir. Uma ilusão seria pensar que cada novo florescimento é a pura repetição do anterior, num ciclo de eterno retorno do mesmo. Também o viandante, na viagem que é a vida, floresce uma e outra vez. Mas, como o castanheiro em flor, a cada novo florir ele dá um passo em frente no caminho para o segredo que transporta consigo.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (472)

Ricardo Asensio - Atardecer (1968)

472. o fumo espesso da tarde inclina-se

o fumo espesso da tarde inclina-se
ao sopro do vento

e tudo se cobre de sombras
e silêncios de água

das janelas avisto ainda um resto
da tua infância

mas a noite desce já pela colina
e chama por mim

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Um texto indecifrado

JCM - Time on space. Baleal (2007)

Estranhas caligrafias deixa o tempo na rocha. Alfabetos por decifrar enviam-nos notícias do mundo, talvez alguma indicação sobre o sentido da viagem. Não, não é aos geólogos que estes textos se dirigem, mas aquele que, na sua ignorância, sabe que um texto indecifrado, o da sua vida, se esconde ali.

domingo, 31 de agosto de 2014

Usar grades

JCM - Mitologias (uma casa portuguesa) (2014)

Os homens usam grades não por medo do que possa vir de fora e tomar de assalto o interior do seu próprio ser. Pelo contrário, o uso de grades reflecte o medo de sair de si, de se abrir à experiência do mundo, o temor de, ao sair de si, retorne feito outro. O medo da alteridade leva o homem a gradear a sua vida, não compreendendo que a sua própria identidade e a verdade desta implicam sempre a abertura ao outro.

sábado, 30 de agosto de 2014

Da pintura abstracta

Lee Krasner - Abstract #2 (1946-1948)

O viandante interroga-se muitas vezes sobre o papel da pintura abstracta no desenvolvimento espiritual da humanidade. Não é uma interrogação sobre pintura ou sequer sobre estética. Trata-se antes de uma questão ontológica. Que potências ocultas essa pintura desoculta e traz à luz do dia? Só uma visão ingénua da pintura poderia afirmar que aquilo que está num quadro nada tem a ver com a realidade. A libertação desses planos do real têm que finalidade? A mera expressão de um caos que se libertou da ordem para que o cosmos se dissolva ou é a solicitação para que o espírito apreenda essa desordem originária e encontre um caminho para configurar uma nova ordem?

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (471)

JCM - Chemin qui ne mènent nulle part III (2014)

471. não sei de que beleza falar

não sei de que beleza falar
nestes dias de seca

esgotei o musgo e o veludo
de cada palavra

entreguei à cobiça do tempo
o que era sublime

resta-me as mãos vazias e um rio
afluente do silêncio