quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (1)

Brüghel de Velours - O banquete dos deuses (1600)

1. Chegou tarde a sombra e as flores tão cansadas

Chegou tarde a sombra e as flores tão cansadas
tinham sobre a terra as pétalas dobrado.
Um grito cruzou os céus. No silêncio da noite
abriu a negra casa antes que um deus viesse.

Pobres mortais sem tecto ou destino sabido,
esquecemos a vida e aos deuses suplicamos,
entre o grito e a raiva, um frívolo consolo,
a ventura da glória e a força da vaidade.

O tempo tudo diz, que vitória te cabe
ou que dura derrota a sorte te reserva.
Silencia o coração para que os deuses desçam

e, no ameno jardim, cantem as suas canções.
Repara! Eles vêm, belos e luminosos,
e sobre a negra  noite erguem a claridade.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Harmonia

Luis Brihuega - Armonía (1960)

A harmonia consigo mesmo, com os outros e a natureza é o ideal que se oculta muitas vezes sob a capa do mal estar. A experiência de desarmonia, de desacordo, de desconformidade corrói a vida dos homens, trabalha-a por dentro até fazer dela qualquer coisa feia e inaceitável. Essa experiência de nunca se estar em sua própria casa conduz à criação de uma mitologia que nos permita imaginar um ideal de proporção e beleza nas nossas vidas. Mas a vida é desarmonia e desconcerto por excelência, e ao homem resta-lhe aceitar essa sua condição. É no momento em que aceita a desarmonia que o homem começa a dar os primeiros passos na senda da harmonia. Harmonizar-se com a desarmonia, eis o imperativo para quem se sente em desconformidade e desacordo com e na vida.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (89)

Jean Arp - Arrangement according to Laws of Chance (1919-17)

Tardias leis do acaso
semeiam lívidas flores
que guardo num vaso.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O escandaloso modelo crístico

Marc Chagall - White Crucifixion (1938)

Aquilo que faz a atracção do cristianismo também está na origem da sua repulsa. A morte na cruz do filho de Deus veio abolir, na economia das religiões, todo o sacrifício humano. Abolir significa aqui tornar ilegítimo do ponto de vista religioso. Esta suprema dádiva de Cristo, o acto de morrer pela salvação dos outros, é o que faz a força do cristianismo. Mas também é aquilo que causa, nos seres humanos, a maior repulsa. Não a sua morte, mas o facto de Cristo se ter tornado, por esse acto, em modelo de humanidade, em protótipo do homem novo, aquilo que todos os homens deveriam seguir. O que estes deveriam seguir, contudo, não era a morte na cruz, mas pura e simplesmente a limitação, a crucificação, das suas pulsões egoístas. Esta limitação do desejo tem a função de criar a abertura onde os outros se possam instalar ao nosso redor. 

Há na morte de Cristo também um modelo de constituição da comunidade humana. Ela é possível no sacrifício que cada um faz de si. É este sacrifício que gera a cooperação justa. O cristianismo não se confunde com as doutrinas do contrato social, as quais são pensadas segundo um modelo de homem antagónico, o homem que segue os seus impulsos egoístas e que procura, através do direito, torná-los legítimos. Neste caso, a limitação dos impulsos egoístas não deriva de uma decisão de sacrifício pessoal, mas do medo da lei, que representa a vontade geral. É perante este modelo liberal do contrato social que o modelo do sacrifício crístico é escandaloso. A sua proposta representa uma enormidade: não esperes pela lei para te conteres, mas fá-lo como princípio originário da tua existência. O escândalo do cristianismo está todo aqui. Não por acaso, nas sociedades modernas e liberais o cristianismo perdeu poder de atracção. Ele propõe um modelo que desconstrói a narrativa que suporta os actuais contratos sociais, desconstrói a ideia de que a comunidade justa pode resultar dos egoísmos exacerbados limitados pelo medo da sanção humana.

domingo, 7 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (88)

Frantisek Kupka - Abstracción en color (1931-36)

Traços sobre a tela
riscam de azul e laranja
o que vemos nela.

sábado, 6 de outubro de 2012

A condição animal

Amparo Segarra - Descanso y Trabajo (años 70)

A vida do espírito assenta num sagaz equilíbrio entre o descanso e o trabalho. Os gregos antigos descobriram no ócio a virtude que lhes permitia dedicarem-se ao exercício da filosofia, à actividade espiritual. Isto é tanto mais sintomático quanto a pólis grega é o centro de uma intensa actividade pública. O mosteiro medieval beneditino vai encontrar - na sigla que o resume: ora et labora - o equilíbrio para que a vida espiritual floresça. Só a sociedade moderna, marcada pelo triunfo da burguesia sobre a aristocracia, vai desprezar o ócio, o espaço para o livre desenvolvimento do espírito. Nos dias de hoje, a ideologia triunfante é a da pura submissão da vida dos indivíduos ao trabalho e à acção. O resto, se o houver, é dedicado à distracção, ao mais puro divertissement, para usar uma expressão de Blaise Pascal. O triunfo da economia e da visão burguesa do mundo pode representar a vitória do progresso tecnológico e material, mas significa, ao mesmo tempo, o triunfo da mais aviltante subjugação do homem às suas necessidades e desejos materiais. Pela primeira vez na história da humanidade, o homem rege-se pura e simplesmente pela sua condição animal.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A longa marcha

Antoni Guansé Brea - La longue marche (1983)

Só quem empreendeu a longa marcha poderá descobrir que ela não conduz a sítio algum. Quem nunca saiu de onde está jamais saberá que esse é o seu lugar. Empreender a longa marcha para se chegar onde se está e tornar-se naquilo se é.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (374)

John Marin - Landscape, Mountains (1918)

374. É TÃO TARDE PARA ANOITECER NA FLORESTA

É tão tarde para anoitecer na floresta,
os animais recolheram-se na funda toca
e o teu coração pulsa receoso do que não vês.
Nada há para temer, porém. Somos os amigos
do invisível, dele esperamos a palavra,
o gesto amplo que indica o caminho,
os hinos que escutaremos à chegada.

Despe-te e deixa o teu corpo no círculo aberto
ao meu olhar, na esplanada onde os sentidos
te convocam para a grande dança da noite.
Ainda não somos inteiros sob o luar,
só agora damos os primeiros passos na montanha,
mas as minhas mãos erguem-se para ti
e esperam vazias o milagre da tua pele.

O tremor que te toca vem das coisas que passam,
do frémito com que se entregam ao devir
e entram no esquecimento que o tempo traz.
São sempre assim os prelúdios, marcados
pela fugaz hesitação, a dúvida cintilante,
pois para nós, mortais, esse é o caminho
que pela floresta ao cume da montanha conduz.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (373)

Amadeo de Souza Cardoso - A parede da janela (1916)

373. CHEGOU O TEMPO DE VENDERES AS MOBÍLIAS

Chegou o tempo de venderes as mobílias
e alugar a casa, não é aqui o teu posto,
nem te esperam já no velho café,
aquele que fechou as portas de ferro
e deixou ao relento os mármores das mesas,
e uma gente triste que vinha jogar
um daqueles jogos de mesa que a memória
apagou, como se apaga um incêndio.

Quando deixas de reconhecer o sentido das
palavras e o bulício traz o ranço do ócio,
nada aqui te diz respeito.
Não deixes que os uivos te enlameiem a alma
e uma hesitação nasça no coração.
Fecha a porta e esquece a cidade,
deixa as praças encherem-se na noite
e o trânsito transbordar nas pontes.
Não chames teu a um lugar que nunca o foi,
nem te comovas com a flor dos jacarandás.

O que se viveu e amou traz em si o peso
da morte, o rasto vazio de um cometa que o céu
tragou, e que não mais voltará.
Olhas os velhos ciprestes presos ao alto,
enquanto uma chuva fina cai sobre a tarde.
Os frutos estão maduros, há que colhê-los,
e levá-los para bem longe, um outro lugar,
uma pátria envolta de arvoredo,
uma pátria coberta pelo silêncio do coração,
a janela que ao longe se ilumina e te chama.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (372)

Giorgio de Chirico - Héctor Andrómaca (1917)

371. O MISTÉRIO MAIOR DE UM CORPO À ESPERA DE OUTRO

O mistério maior de um corpo à espera de outro,
da ânsia que cresce com o aproximar da hora,
o risco no céu azul para lembrar uma promessa.
Há um instante em que chega o terror de que não
venhas, que o tempo te tenha tragado
para te devolver à planície do esquecimento.

São assim os dias dos homens sobre a terra,
cheios de uma cintilação imprecisa,
a troca de um nome, a traição de um amor.
O perigo e o medo impele-os para quem não
os espera, e o desejo que nasce do movimento
não passa de espuma fria deixada pela onda.

Os meses vêm cobertos de imperativos,
erva rala sobre a terra, pasto de animais feridos
à espera da consolação da morte.
Por que espera o outro pelo nosso corpo?
O terror escondido no vítreo silêncio da casa,
a vaidade nascida de uma alma submetida.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (371)

Alfredo García Revuelta - Ciudad (1985)

371. ENTARDECER É DESCOBRIR OS CAMINHOS DA FLORESTA

Entardecer é descobrir os caminhos da floresta,
a metáfora trazida pelo pensador para iluminar
a filosofia, essa outra metáfora da vida,
metamorfose do sangue em puro pensamento,
a esperança irrenunciável ao direito de viver,
o consolo de ir e vir, a que chamaram liberdade.

A lado algum conduzem os caminhos na floresta,
mas os homens sabem neles encontrar a rota,
e navegam sob o império das estrelas
ou o rumor do vento na ramagem das árvores.
Ir a lado nenhum é o teu destino de viajante,
preso no luminoso olival que te liga à viagem.

Ainda não chegou a hora do frio invernoso,
mas os velhos lagares de azeite trabalham,
exercício clandestino trazido do mediterrâneo,
a seiva da terra que ilumina os caminhos.
Os olivais vindos do sul e os bosques do norte
são chão para os teus passos de citadino.

Uma canção desponta num quarteirão longínquo.
A cidade acorda para a tempestade do dia,
para a ventura do puro caminhar para sítio algum.
A voz rouca e amarga traz um uivo selvagem
e entre o betão afivelado das grandes construções
descubro o eco do teu nome esmagado na floresta.

domingo, 30 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (370)

Claude Joseph Vernet - Mar tempestuoso (1748)

370. O ESTRANHO DESÍGNIO DE TRAZER O OCEANO COMIGO

O estranho desígnio de trazer o oceano comigo,
de escutar o mar na rebentação da noite,
de avistar na campina as velas que passam
na planície de água, a vinha nunca vindimada.
Essas são as minhas viagens: sonhar acordado
o Atlântico que de mim se afasta e se abre
para o mundo que o coração não quer amar.

Sou o navegador que se perdeu das águas,
fundeou no cais como numa perífrase,
e no meio de tantas palavras arpoou no silêncio,
para que, ao olhar a floresta, a força voltasse
e trouxesse com ela o espaço vazio
que se esconde na velha paliçada de sílabas,
a aurora em que o sentido se ergue no nascente.

Não sei já onde termina o espaço e começa
o tempo, a ondulação incerta trazida pelo vento,
a casa que abriga se chega a intempérie.
O poeta vive no dia em que o espaço e o tempo
se desintegraram, escura amálgama, lama
que mancha a alma, a cobre de detritos,
e, como se fora argila, se desfaz em pó.

Pertenço à estirpe dos poetas oceânicos,
aqueles a quem o destino decretou a cegueira,
homens que amam o mar mas vivem em terra,
rodeados de insectos e aves selvagens.
O farol roda no buraco vazio da noite,
ilumina as catedrais de pedra por um instante
e recolhe-se no espaço onde o tempo desapareceu.

sábado, 29 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (369)

Paul de Vos - Un león y tres lobos

369. VIVEMOS SOB O CHUMBO DA TARDE TORMENTOSA

Vivemos sob o chumbo da tarde tormentosa.
Os dias, cada vez mais curtos, estão perigosos.
Em cada esquina espreita o lobo
e a garra dos homens virtuosos cai sobre os campos,
inunda as ruas da cidade e o comércio rasteiro,
a porta aberta para o fogo de Pentecostes.

Infelizes os tempos em que o vício clama virtude.
São horas de incêndio e não há dor nem sangue
que sacie os que pedem cabeças
e ululantes rasgam as vestes e espezinham os jardins,
gritam pela verdade cobertos no embuste.
Na lama, os filhos da víbora preparam o leito.

Estou sentado num quarto de hotel e vejo o mar.
Sobre as revoltosas ondas, um frágil veleiro volteia,
segura-se aos céus, inclina-se e tímido retoma a rota.
O mar ferido agita-se no despudor dos meus olhos,
e na feroz rebentação oiço o cansaço da terra,
o uivo da matilha que ao longe espera a presa.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (368)

Achille-Etna Michallon - Ruinas del Teatro de Taormina en Sicilia

368. A RUÍNA, UM MISTÉRIO QUE HABITA AS COISAS

A ruína, um mistério que habita as coisas,
partícula invisível no centro do coração,
a pulsão infernal vestida de alegria e esperança.
Como podem os homens aguardar pela sentença
da história, pequena meretriz que se vende na rua,
e dela fazerem trono e altar, viagem e romaria?

Ela marcha presa na voragem do anjo
e  sob os seus pés caem praças e jardins,
a breve violeta que plantara para as tuas mãos.
Mal chega, a rutilante estrela da vida fenece,
entrega-se lívida à combustão da dor,
às brechas que rasgam a parede da alma.

Hoje não precisamos da chegada dos exércitos.
O inimigo vive entre nós, em nossa casa,
e alimenta-se do vurmo que escorre dos corpos,
enquanto canta nas trevas da adolescência,
enquanto soletra, nome a nome, o destino
que um ódio nascido na febre a cada um reserva.

Insensato terramoto que me rouba a pátria,
os dias em que caminhei a teu lado,
a tua mão que se abria para a ânsia da minha.
As muralhas foram derrubadas e as casas ardem.
Os ratos correm pelos campos vazios
e o sino da minha igreja calou o bronze da sua voz.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (367)

Brueghel el Viejo - Mundo Traidor (1568)

367. DESFEZ-SE O ANTIGO CÍRCULO ONDE SE REUNIAM

Desfez-se o antigo círculo onde se reuniam,
para pronunciar longos veredictos
e assim colocar o mundo nos eixos,
de onde a cegueira dos homens o desviava,
lançando-o, incautos, na penumbra abissal,
as ruelas vazias e as praças incendiadas.

Vagueiam perdidos os velhos juízes,
cegos e sem préstimo por caminhos em ruínas.
Comungam o antigo ardor pela coisa justa
e a dura pena que o tempo lhes trouxe.
Olham e não reconhecem nos campos
a erva verde ou a sóbria seara sob o vento.

Tremem-lhes as mãos e o dorido coração,
a chaga febril, a impiedade contra eles lançada.
Desejam célere a morte que não vem.
Desejam escura a noite que o dia não traz.
Desejam cegos os olhos que tudo divisam.
Eles, alicerce onde a vida triunfante florescia.

Fruste a casa que a ombreira me oferece.
Encosto-me e avisto ao longe vultos de sombra
e seda, velhos peregrinos exaustos de caminhar.
Chamo-os e quando chegam digo-lhes que a justiça
esteja convosco. Sorriem e sentam-se a meu lado.
Na parede uma rosa; pão e vinho sobre a mesa.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (366)

Joan Ponç - Suite Inquietude (1947)

366. O DESASSOSSEGO É FEITO DE SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

O desassossego é feito de semelhanças e diferenças,
uma espécie de doença venérea comprada
nas noites em que a insónia canta sobre o cansaço,
e traça a vida com régua e esquadro
para a entregar, mal chega a manhã, ao serralho
das equações e dos problema irresolúveis.

Na face, trago esculpido esse fundo sobressalto.
Nem o sol nem a lua têm poderes para me curar
e a água do mar vem carregada de dor e solidão.
Oiço a estridência a anunciar o amola-tesouras
e penso: vai chover, enquanto o dia se afunda
na angústia que vagarosamente de mim se deslaça.

Passou a hora em que o teu corpo me trazia a certeza,
a exuberância do animal triunfante na selva,
a suprema saúde de nada haver para meditar.
Tocava-lhe na branca fragilidade da pele
e não havia fórmulas ou regras que me contivessem,
palavras tomadas pelo assalto do pensamento.

O tempo parece abrandar, ouve-se o chiar das rodas
nos carris, uma nuvem de faúlhas perdidas no ar.
Sentado, entrego-me a uma rememoração esquálida.
As palavras mirram, perdem sentido e secam,
eram as últimas flores que te deixara nas mãos
antes de tudo ter escurecido na noite que se levanta.