João Queiroz - Sem título (?)
299. O SENTIMENTO DE QUE TUDO ESTÁ PERDIDO
o sentimento
de que tudo está perdido
a voluptuosa
decisão de deixar o mundo entregue
ao desvario
da humanidade ou à rotação dos astros
fonte de
prazer e secreto amor da perdição
um espelho
gasto onde a alma se vê
murmúrio que
trespassa a cólera da inocência
invento aos
teus olhos um idioma
as palavras
são secas e as vogais fechadas
e componho
longas cartas
promessas de
amor nunca cumpridas
um tratado
breve sobre vulcões
e a pequena
liturgia com que adormeço
espero-te na
fímbria dos dias claros
espero-te na
orla das trevas
o meu
coração é um deserto sem pólen
uma fornalha
esfriada pela noite
pobre flecha
que perdeu o alvo
rumor
sinistro na glória do teu esplendor
poderia
voltar ao velho para quê de holderlin
mas não me cabe
tão tormentosa questão
descobri que
todo o tempo é de indigência
pois ele o
ladrão tudo a todos rouba
e quanto
mais furta mais pobre ele é
nesse seu
eterno fluir para lado algum
ao acordar
nunca sei onde estou
se na cidade
que vejo ou na montanha sonhada
nunca sei o
que faço nesta cama
e o que
cobrem os lençóis que me cobrem
ao acordar
estou já cansado do que vejo
e o sono
pesado inclina-me para a escuridão
amo senhor a
pobreza que me deste
a pequenez
velada da adolescência
os dias
incongruentes em que crescia
amo acima de
tudo o nunca ser amado
pequena
sombra entre estrelas rutilantes
o chão de
terra que me deste por habitação
pego num
livro e percorro-lhe as páginas
e a memória
vai passado afora
entra dentro
daqueles cidades
que no
deslumbramento da viagem amámos
um amor
breve e incendiado
as ruas
percorridas de mãos dadas
desisti de
cada teoria que estimei
componho o
jardim com frases soltas
pequenas
citações e plantas anémicas
a água está
cara e tudo morre à sede
a dialéctica
dos dias e a analítica da morte
o borbulhar
inconsciente do coração
um homem
novo prometeram-nos
mas a semana
passou e a mercadoria perdeu-se
os caminhos
estão perigosos
os
bandoleiros não descansam
e o comércio
prefere vender água destilada
e caramelos turvos
e sem açúcar
sou velho e
na minha velhice falta-me a flor
a memória
dos dias em que o não fui
a
possibilidade de um dia ter sido exuberante
nada em mim
se ilumina ao rememorar
nada em mim
se incendeia pelo fogo do passado
nada em mim
requer outra hora que não esta
nos dias de
chuva olho as gotas na vidraça
e lá fora
passam carros aquáticos
dois cães
molhados ganem nos semáforos
e sob os
guarda-chuvas há rostos que não sei
deles vem
até mim uma sombra pálida
o grito
emudecido que cantava na boca
sou um
citadino exilado no ventre da cidade
pobre
apátrida de olhos velados e mãos frias
gestos
imprecisos semeados à luz do dia
passam
macilentos e cansados os eléctricos
uma música
suave sobre o chão em fogo
e tudo em
mim se encerra na prisão da tarde
o que fiz
com os sonhos que a noite oferecia
estranha
pergunta de quem sofre de alucinações
e deseja com
ardor um momento de lucidez
a hora onde
o sonho se esvai
e tudo na realidade
se torna plausível
os carros a lua
ou o anel de noivado que esqueci
sempre
pensei que uma metáfora era um náufrago
o desespero
abandonado nas águas do oceano
a frágil
capa que punhas nos dias de inverno
rememoro
cada hora passado nos escombros da vila
o cerco
antigo posto às muralhas decrépitas
o escândalo
de nunca ter amado o rock-and-roll
lembro-me de
ti senhor se troveja
ou um
incêndio cobre as matas e os campos
fogaréus
brancos na esplanada das mãos
trago a vida
vazia no bolso do casaco
e a lua chega
sempre em quarto minguante
uma promessa
adiada na penumbra do amor
estará tudo
perdido neste tempo fruste
na hora onde
esquecemos o que nos ensinaram
esses
antepassados que julgámos ridículos
presos na
erva das suas convenções
apertados no
estreito vestido herdado
cansados do
joio que a manhã trazia
a mácula do
sentimento é inútil
disseste e
entregaste-te nos meus braços
a cabeça
inclinada e o coração descompassado
bebi o vinho
que havia em ti
e adormeci
sobre o corpo baldio
enquanto um
sino tocava as trindades
invento mansamente
o ardor do instinto
e jogo ao
crepúsculo a sorte bravia
o que vier
trará a sua luz sobre as trevas
e quando o
galo cantar na madrugada
um novo
espírito virá sobre a montanha
e para mim
tudo será crepúsculo