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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (8)

Pierre Auguste Renoir - Gabrielle con la rosa (1911)

8. Deixas o olhar preso num sonho

Deixas o olhar preso num sonho
e com a mão suspensa no ar
quase me tocas, quase feres
o que em mim clama por ti.

Que f’rida purga no desmando
que arde no teu rosto cansado?
Um véu de cinza, a velha rosa,
tão desfolhada se perdeu.

Noite em que tudo desfalece,
onde os sorrisos de outrora
e o bravio cântico de amor?

Alma fechada e vazia,
perdeste o fogo e o delírio,
resta uma flor exausta e fria.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (7)

Ernst Ludwig Kirchner - Desnudo femenino de rodillas ante un biombo rojo (1912)

7. Seio descuidado aberto sobre o mundo

Seio descuidado aberto sobre o mundo,
luz matinal que me incendeia o desejo.
Pobre esperança de tocar o fundo
desse teu corpo que espero e vejo.

Seda e cetim, puro algodão em flor,
prazer secreto sob a minha mão.
Despida e nua – oiço sombrio rumor –
dás o teu corpo. Nunca digo não.

Chegada a hora, as mãos e os dedos
abrem-se, flores, ervas, rios, segredos
que desaguam agora nesta rua,

onde te espero pura, branca e nua.
Vem na fria noite iluminar os astros,
somos lua e sol, não deixaremos rastros.

domingo, 11 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (6)

William Hogarth - The times - plate 1 (1762)

6. Secreta mutação no ventre do tempo

Secreta mutação no ventre do tempo.
Horas sombrias, azedas, horas perdidas,
o rumo ensanguentado, a vida pobre,
um rosário sem rosas. Tudo estiola

sem rumo nem segredo, no silêncio
das coisas sem sentido, sem palavras
que sejam um relâmpago, a aurora
que chega e anuncia um outro tempo.

Vertigem, dor, o bem submisso ao mal,
um exercício ávido de gritos,
de noites que não têm fim nem retorno.

O tempo que nos cabe, sol de trevas
incendiado, inferno desmedido,
metástase hedionda, fria e sem fim.

domingo, 4 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (5)

Michel Larionov - El desnudo azul (1903)

5. Adormecida sobre a terra pura

Adormecida sobre a terra pura,
a mão no rosto e, no corpo nu,
o véu da lua, seda e cambraia azul,
'strela selvagem, vento, água e fogo.

Puro delírio, seio aberto e suado,
rasto de sangue por amor chorado.
A tudo o sono esquece. Dor, maldade,
vida desfeita, o riso frio e imundo.

Nesta manhã desconsolada vens,
suave e sonâmbula, cobrir o dia,
com o segredo de uma rosa anil,

pura e perfeita, desmedida e bela.
Rosa que se abre sobre o corpo lívido,
rumor de pássaro no frio da tarde.

sábado, 20 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (4)

Gino Rubert - Deliri

4. Um súbito ardor no rosto pálido

Um súbito ardor, pálido o rosto...
Nos olhos, uma luz aberta ao jogo
do amor, e em cada mão a casa vazia,
o lugar onde espera a chama viva,

secreta e silenciosa, que abre o dia.
E nessa incerteza, deixa o ventre
pulsar leve e tranquilo, um mar de seda,
uma fonte, erva doce nos meus lábios.

Sou um velho barqueiro que olha o mar.
Sob o império do vento, negras nuvens
anunciam tempestades e naufrágios.

O abismo… nele a morte lançou âncora,
e desenhou, perfeita, a armadilha
onde o meu coração no teu cairá.

domingo, 14 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (3)

Edvard Munch - The Hands (1893)

3. Que o teu seio se desvele, que a tua mão

Que o teu seio se desvele, que a tua mão,
suada e suave, se entregue, que a tua boca
se abra, e língua e lábios sejam mel, fogo,
orvalho matinal, o ar da floresta.

E pura e desvalida, te entregues,
na noite fria e calma, ao desejo
que os teus olhos nos meus incendiaram,
que os seios brancos e cálidos atearam.

Espero-te na tarde azul e pálida.
Uma ânsia fere o peito, rasga-me a pele,
rompe-me as veias e o sangue frio se esvai.

Quando oiço os teus passos, quando a voz,
serena e pura, chama já por ti,
uma rosa de seda ergue-se em mim.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (2)

2. Tristes e velhas as ruas desta vila

Tristes e velhas as ruas desta vila,
pedras de sombra, fiel mansão da pálida
enfermidade. Na distância o rio
lembra o vazio. Restos de cal e vidro,

uma janela, casa aberta e amada.
Oiço-te a voz, uma palavra azeda,
tanta amargura, tanto fel e lágrimas,
sempre na noite, sem amor nem ódio.

As minhas mãos, um grito azul, um cântico:
eis a riqueza, o fogo, a pedra e a água.
Esqueço a vila, as ruas, o pó dos túmulos.

Deixo que o sonho vão se cale ao cantar,
deixo que o tempo, velho amigo meu,
na mesa ponha rosas, vinho e pão.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (1)

Brüghel de Velours - O banquete dos deuses (1600)

1. Chegou tarde a sombra e as flores tão cansadas

Chegou tarde a sombra e as flores tão cansadas
tinham sobre a terra as pétalas dobrado.
Um grito cruzou os céus. No silêncio da noite
abriu a negra casa antes que um deus viesse.

Pobres mortais sem tecto ou destino sabido,
esquecemos a vida e aos deuses suplicamos,
entre o grito e a raiva, um frívolo consolo,
a ventura da glória e a força da vaidade.

O tempo tudo diz, que vitória te cabe
ou que dura derrota a sorte te reserva.
Silencia o coração para que os deuses desçam

e, no ameno jardim, cantem as suas canções.
Repara! Eles vêm, belos e luminosos,
e sobre a negra  noite erguem a claridade.