sábado, 29 de junho de 2024

Meditação breve (196) Mão

Henry Moore, The Artist's Hand III, 1973 (Gulbenkian)

A mão ainda não é o gesto, mas um começo, o sinal de uma promessa, o marco de uma esperança. Com ela, libertamo-nos da subjugação aos elementos da natureza e tornamo-nos os cuidadores do jardim, os que criam a expectativa de uma ordem na desordem espontânea de tudo o que é. Com ela, também trazemos a ameaça de apropriação daquilo que não é propriedade de ninguém e o anúncio de um caos mais terrível do que a espontânea desordem original, pois onde habita a promessa também dorme o desacordo e onde vive a esperança também se esconde o desespero.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Sonetos de Verão (1)

 León Kossoff, Demolition of the Old House, Dalston Junction, Summer, 1974

Esqueci os amores de Verão.

Esqueci vendavais e noites quentes.

No oceano está presa a memória

dos incêndios bravios da vida rude.


Oiço o leve bater das horas idas

na janela aberta destes dias,

casa branca agora desprezada,

onde ardia o fogo da esperança.


Oiço a noite rugir na rua vazia

onde os passos que dei ainda ecoam

como sinos feridos na montanha.


Animal sem morada nem destino,

animal sem a luz de cada dia,

abro as mãos e no vento oiço o Estio.


Junho de 2024

terça-feira, 25 de junho de 2024

A memória do ar (31)

Yale Joel, People and vehicles moving about city shrouded in fog. Paris, 1948
A neblina é a memória viscosa do ar, o resto do seu corpo que, um dia, foi sólido, mais tarde tornou-se líquido, até chegar à indecisão a que se dá o estranho nome de estado gasoso. Por vezes, a verruma da melancolia invade os ares e, se o vento não interfere com a sua vontade inquieta, eles entregam-se ao húmido exercício da reminiscência.

domingo, 23 de junho de 2024

Geometrias de fogo (31)

Hubert Robert, Roman Ruins, 1773

Por detrás da ruína do mundo, ergue-se o fogo inquieto do espírito. Quando tudo se reduz a cinzas pelo deambular das labaredas, pela desmedida do incêndio, sobe do chão calcinado aquilo que nunca foi visto, nem dito, nem pensado. Então, o espírito traça novas geometrias, descobre um espaço inédito e inventa outro tempo mais próximo da eternidade.

terça-feira, 18 de junho de 2024

Sonetos de Primavera (12)

Ernst Ludwig Kirchner, Fehmarn House, 1908

Partirás, Primavera, apressada.

O teu noivo espera-te na casa

de onde não voltarás para rever

a luz do dia e o frio negro da noite.

 

As flores que trouxeste definharam.

Nos rios, bravias águas adormecem.

São corcéis sem fulgor, velhos amantes

perdidos no cansaço do amor.

 

Jamais retornarás, mesmo se o tempo

trouxer nova vitória sobre a noite

do negro Inverno que virá.

 

Fantasia e fulgor, novos amantes

encontrarão a luz de um desejo

que outra Primavera soltará.


Junho de 2024




domingo, 16 de junho de 2024

A sombra da água (31)

Bernardo Marques, Tejo (Gulbenkian)

Também as águas trazem, na sua memória mais arcaica, o coral de mercúrio da solidão. Por elas se aventuravam, como cavaleiros enlouquecidos, marinheiros experimentados que tinham perdido o desejo da terra. De um pequeno batel faziam o seu palácio e, embalados pela leve ondulação, esperavam a hora que um outro mundo para eles se abrisse.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

O Espírito da Terra (31)

Fernando Pissarro Gambôa, Terra Perdida IV, 1982 (Gulbenkian)
Toda a terra é uma terra perdida, ulcerada pelo vento, entregue à erosão das águas, aberta ao delírio do fogo. Despois, recompõe-se e, entre cinzas, poeiras e lamas, oferece o corpo despido à fecundação do céu, para que a vida venha com os seus imperativos e lhe devolva o sentido que, por instante, a impiedade do tempo lhe roubara.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Sonetos de Primavera (11)

Mimi Fogt, Spring Time - Serra de Sintra, 1979 (Gulbenkian)

Na cilada das ruas, sol ardente

traça lagos de luz, terras de fogo,

um mundo no bulício da manhã.

O espírito canta, é um pássaro.

 

Tudo na Primavera dissimula

o Verão que virá com a sua corte

ouvir velhas canções de sal e sombra,

para despertar almas sonolentas.

 

Ébrio, bebo a luz, como o fogo,

e canto, sou um pássaro do Sul,

perdido entre ruas e desejos.

 

O Verão arde puro nos lugares

onde a Primavera se esconde

e em mim canta odes e canções.

 

Junho de 2024

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Câmara discreta (21)

Charles Clifford, The Armor of Philip III, 1866

Ali estava Filipe III, reduzido ao que era, um nada moldado na memória de uma armadura que jamais conterá o seu corpo, para o proteger do ímpeto dos inimigos ou do ódio dos amigos. A câmara, devido ao desacerto entre o tempo de Filipe III e o do disparo fotográfico, esquivou-se a mostrar o rei, a roubar-lhe do corpo a imagem, para a tornar pública, para a oferecer ao gáudio sem piedade dos espectadores. Deu-nos uma máscara e um lugar vazio, como se um rei fosse um mistério para sempre indecifrável.

sábado, 8 de junho de 2024

Pintura e haikus (40)

Francisco Tropa, sem título, 2014 (Gulbenkian)

 Um mundo de sombras
percute a terra e a cinza.
Cântico da tarde.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Histórias sem nexo 31. Tradições

Eduardo Nery, Estrutura Ambígua IV, 1969 (Gulbenkian)

Tristão de Trancoso trovejava na travessa, mas Tracy da Trácia trabalhava na tribo. Trancados por uma trave, trocaram tremoços e tremores, transformaram tratados em traições, treparam por trampolins e trepadeiras, se troavam os trovões, se trefegavam as trutas, as trufas e os tritões.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Sonetos de Primavera (10)

João Queiroz, sem título, 1999 (Gulbenkian)

Morre a Primavera no calor

desvairado de Junho, nestes dias

sem nome, sem grandeza, nesta hora

onde os anjos se calam temerosos.

 

Em silêncio, o sol chegou irado,

exausto pelos dramas concebidos

na caverna escura onde o mal

germina como erva impiedosa.

 

Retiram-se os anjos para longe,

procuram o jardim onde as águas

correm entre a noite e a luz.

 

A cidade esconde-se nas sombras,

enquanto o mal trabalha sem sossego,

invade as avenidas, nasce o caos.

 

Junho de 2024


domingo, 2 de junho de 2024

Signo sinal 18. Escuridão

Jorge Molder, O Fazer Suave de Preto e Branco (da série), 1981 (Gulbenkian)

Na escuridão, procuramos em silêncio sinais de luz, relâmpagos que iluminem a noite escura da alma, cintilações que orientam no caminho aquele que decidiu empreender a viagem para dentro de si, levado pela esperança de encontrar os signos que lhe abrirão o portal para o segredo vivo que o habita.