quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O lugar abandonado

Carlo Carra - Casa Abandonada (1930)

Talvez os sítios abandonados tenham uma especial atracção sobre aqueles que estão em viagem. Não porque nesses sítios resida ainda um resto do espírito que os animou, mas porque um sítio abandonado simboliza ao mesmo tempo um lugar de acolhimento e a necessidade de continuar a jornada. Uma casa abandonada é um lugar onde se pode pernoitar, mas que na sua precariedade torna claro ao espírito a necessidade de partir.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sociedade e não comunidade

Niels Bjerre - A Prayer Meeting (1896)

Para nós que fomos educados numa cultura católica, este quadro do pintor dinamarquês Niels Bjerre tem qualquer coisa de inusitado. Aquelas pessoas encontram-se para uma oração, mas não estabelecem entre elas nenhum princípio de comunidade. Estão umas junto das outras, mas não estão umas com as outras. Seguem caminhos puramente privados. Mesmo a figura do Cristo na cruz não exerce qualquer poder congregador. No mundo católico, uma oração conjunta estabeleceria uma comunidade, uma comunhão. Se se tratasse de uma oração não comunitária, então o indivíduo oraria em solidão. No quadro de Bjerre, não temos nem comunidade nem solidão, mas uma sociedade de indivíduos privados que, ensimesmados, perseguem os seus interesses salvíficos individuais. O quadro de Bjerre permite-nos perceber muito bem o que é a versão protestante do cristianismo e, a partir dela, perceber a diferença radical que tem do catolicismo.

domingo, 20 de outubro de 2013

Haikai do Viandante (163)


Um sulco de sangue
abre a porta do mistério
que a rocha encerra.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A rosa sem porquê

Agnes Martin - A Rosa (1964)

Die Rose ist ohne warum.
(A rosa é sem porquê.)
Angelus Silesius, CW I. 289

Lê-se o verso de Silesius (o hemistíquo) A rosa é sem porquê e fica-se fascinado. A tentação é de ver um artifício poético, talvez uma aproximação metafórica à sem razão da beleza. Mas devemos ler literalmente o que lá está. É a leitura literal que nos assusta. No verso diz que o porquê ou a razão não fazem parte do ser da rosa. O assustador está na emergência desumanizada da rosa. A razão e os porquês são a presença humana, do entendimento humano, nas coisas, uma forma de as submeter ao nosso espírito e integrá-las numa cadeia de explicações. Mas tudo isso, apesar de nos tranquilizar - pois dar uma razão tranquiliza-nos -, é estranho à rosa. A rosa é sem porquê é uma injunção a estar perto da rosa sem projectar nela os meus temores e, por isso, a minha racionalização. Estou perante aquilo que não posso explicar, que não tem explicação, que se perfila, na sua simplicidade de ser rosa, como um mistério para o qual a minha pobre razão não tem chave. A rosa sem porquê solicita a mais extrema pobreza de espírito.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Um lugar de epifania

Rita Rutkowski - Campo da Verdade (1961)

Nunca se deverá confundir a verdade como adequação das nossas palavras aos factos e a verdade como revelação. O campo da verdade não é o sítio onde alguém profere a verdade. O campo da verdade é o lugar onde a verdade se revela. Onde tem o ser humano o seu campo da verdade? A vida é o campo onde a verdade se manifesta e se manifesta não por palavras mas naquilo que revelamos ao viver. A vida de cada um é sempre, saiba-o ele ou não, um lugar contínuo de epifania. A manifestação daquilo que ele é e do destino que o chama.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Haikai do Viandante (162)


Entre a pedra dura
brota, sob a branca luz,
a vida que cura.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Um caminho sem mapa

Frantisek Kupka - Composição em azul (1925)

Não há mapas ou cartas que ajudem o viandante no seu caminho. Na verdade, o caminho de cada homem, mesmo o do mais previsível dos homens, é sempre inédito e nunca cartografado. Por vezes, há viandantes que deixam atrás de si aquilo que parece ser um mapa, que poderá ajudar outros viandantes. Isso, porém, não passa de um equívoco. O que parece um mapa seguro e passível de ser seguido não passa de uma composição, onde alguém deixou o testemunho do caminho que trilhou, caminho esse que, mal foi trilhado, logo deixou de estar disponível. Aquele que quer fazer a viagem para o centro de si mesmo, para o que há de mais oculto e secreto em si, pode ver como os outros compuseram o seu caminho, mas deverá saber que para ele aquela composição é inútil, pois o seu caminho é singular e só por si mesmo pode ser trilhado.

domingo, 13 de outubro de 2013

Folhas mortas

Egon Schiele - Árvores Outonais (1911)

Tudo o que se passa na natureza pode constituir-se em símbolo. Se uma metáfora ou uma metonímia introduzem uma certa equivocidade no discurso e no pensamento vulgares, o símbolo aumenta exponencialmente esse grau de equívoco. Em primeiro lugar, porque os símbolos dão que pensar, convocam o logos, para, logo de seguida, o humilharem, ao tornar evidente a impotência da razão para lidar com eles. Em segundo, dirigem-se à experiência viva do homem, suscitando caminhos, abrindo veredas, estabelecendo inesperadas pontes entre margens que a experiência corrente nunca ligaria. 

Olho as folhas mortas que se desprendem das árvores, quando chega o outono. É o ciclo da vida. Mas se tomar a queda das folhas como símbolo, liberto-me da experiência meramente biológica da morte e renascimento da natureza, para poder entrar no reino do espírito. As folhas das árvores que caem simbolizam tudo o que precisamos de abandonar. As nossas crenças, os nossos desejos, os nossos prazeres, as nossas dores, os nossos objectivos, as nossas ilusões e os nossos sonhos. Tudo isso não passa de folhas mortas. Despidos, entramos no inverno, nessa noite escuro que espera o viandante que caminha para a luz.

sábado, 12 de outubro de 2013

Poemas do Viandante (436)

Ramón Casas Carbó - Flores deshojadas (1894)

436. Toco no orvalho que escondes

Toco no orvalho que escondes
e oiço o murmúrio do mar
sob o império da minha boca.

Um silêncio de azul cobre-te
e em cada mão há uma rosa
que desfolhada me aguarda.

Nestes dias de outono, canto
o teu corpo macerado no amor,
a espera com que te entregas

na noite, perfumada e silenciosa.
Púrpura descida dos céus,
ave de luz canta em mim.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O passeio do viandante

Henri Edmond Delacroix Cross - La Promenade (1897)

Há na viagem momentos de puro passeio. Neles, o viandante medita sobre a própria viagem. De onde veio? Para onde vai? Não se trata, todavia, de fazer a contabilidade e de se certificar daquilo que perdeu e daquilo que ganhou, pois ganhos e perdas permanecem obscuros para o coração dos homens. Também não é o caso de se pensar, como Rousseau, um sonhador solitário. O passeio é o momento em que o viandante se funde mais no caminho e, na sombra dessa fusão, se prepara para prosseguir mais determinado e mais destemido em direcção daquilo que o chama.