domingo, 24 de fevereiro de 2013

Uma perplexidade fundamental

Albert Gleizes - A Transfiguração (1943)

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago, Jesus subiu ao monte para orar. Enquanto orava, o aspecto do seu rosto modificou-se, e as suas vestes tornaram-se de uma brancura fulgurante. E dois homens conversavam com Ele: Moisés e Elias, os quais, aparecendo rodeados de glória, falavam da sua morte, que ia acontecer em Jerusalém. Pedro e os companheiros estavam a cair de sono; mas, despertando, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com Ele. Quando eles iam separar-se de Jesus, Pedro disse-lhe: «Mestre, é bom estarmos aqui. Façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias.» Não sabia o que estava a dizer. Enquanto dizia isto, surgiu uma nuvem que os cobriu e, quando entraram na nuvem, ficaram atemorizados. E da nuvem veio uma voz que disse: «Este é o meu Filho predilecto. Escutai-o.» Quando a voz se fez ouvir, Jesus ficou só. Os discípulos guardaram silêncio e, naqueles dias, nada contaram a ninguém do que tinham visto. (Lucas 9,28b-36) [Comentário de Cirilo de Alexandria aqui]

O silêncio que Pedro, João e Tiago guardaram após os eventos do Monte Tabor é o sinal da profunda perplexidade perante um acontecimento que está para lá daquilo que consideramos a experiência possível. Os limites da experiência possível, aqueles que são ditados pelo curso normal da natureza e condensados no que chamamos, hoje em dia, leis da natureza, tinham sido suspensos. Na abertura que se deu no tecido do real, uma outra realidade – na verdade uma hiper-realidade ou uma sobrerrealidade – manifestou-se. Digno de nota não é apenas esse ruptura na ordem da realidade. Também o facto de aqueles três homens, naquele momento, terem tido, apesar da sua incompreensão, acesso ao fenómeno, como se também neles alguma coisa de abrisse, merece atenção.

A ruptura da tecelagem do mundo está claramente afirmada pela tradição ao falar em transfiguração do Cristo. A mudança de figura manifesta-se numa reconfiguração dada pela metamorfose do rosto, pela fulguração das vestes, pelo diálogo com aqueles que há muito tinham partido. A transfiguração é momento de espanto e símbolo de continuidade, sinal de uma tradição que, tendo origem em Abraão, tem pontos cruciais em Moisés e Elias e se cumpre em Cristo. A conjugação da transfiguração e da tradição deixam suspeitar uma dupla relação com a temporalidade. Por um lado, a presença de Moisés e de Elias inscreve Cristo numa História, na dinâmica do acontecer no mundo, numa perspectiva horizontal. Por outro, o encontro entre essas três figuras, tal como é narrado, remete para uma perspectiva vertical onde o tempo aparece abolido e transcendido.

Pedro, com a sua tentativa de inscrever o acontecimento na ordem da realidade, no desejo de o apreender e prender aos limites da experiência possível, não sabia o que estava a dizer. Uma outra ordem se impunha, uma ordem que aos seres humanos só é possível perscrutar a partir do velamento que a nuvem impõe. A condição humana não suporta a luz e como tal a nuvem representa a protecção dos homens e a explicação da incerteza que sempre envolve aqueles que ouvem “Este é o meu Filho predilecto. Escutai-o!” Ao homem não é oferecida nenhuma razão clara e distinta, nenhuma certeza, que justifique o exercício da escuta. Como Pedro, João e Tiago, os homens têm acesso a uma perplexidade fundamental. E é nesta perplexidade que se inscreve a fé.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

A restauração da fraternidade

Marc Chagall - Caim e Abel (1911)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste.» (Mateus 5,43-48) [Comentário de Policarpo de Esmirna aqui]

Como em outros textos, manifesta-se neste uma vontade deliberada de corte com uma tradição. Esta tradição remete para um longo hábito social fundado na reciprocidade, que ordena amar o próximo e odiar o inimigo. O que se descobre não é a irrelevância da reciprocidade mas os seus limites. A reciprocidade continua a ser um valor importante, mas ela é limitada pois defende que ao mal se deve responder com o mal, o que reconduz ao eterno ciclo de violência, no qual cada acto de vingança apenas tem por finalidade acentuar e dinamizar a própria violência, levá-la a um estado paroxístico, para cuja saída nas sociedades tradicionais, segundo René Girard, se instituiu a crise sacrificial. Sendo assim, descobre-se que a reciprocidade não é um bem último, um bem em si mesmo.

Podemos pensar as várias figuras em que a relação com o outro se encontra no estado de suspensão da fraternidade, cujo arquétipo na cultura judaica se dá no homicídio de Abel por Caim. O concorrente, o adversário, o rival e o inimigo. Estas são figuras que, numa escalada do desejo conflituante, rompem com a fraternidade e instauram o perigo da desagregação da vida em comum, seja qual for o âmbito em que esta é considerada. Com o sublinhar da necessidade de amar os inimigos e orar pelos perseguidores percebem-se duas coisas essenciais.

Em primeiro lugar, do ponto de vista genético, a preeminência da fraternidade entre os homens sobre as figuras do conflito, independentemente da intensidade da oposição com que se apresentam. Em segundo lugar, a importância estrutural, do ponto de vista da razão prática, da restauração dessa fraternidade, de tal forma que o mandamento ético se consubstancia no amor pelos inimigos e na oração pelos perseguidores. A perfeição, que surge no texto de Mateus, ao mesmo tempo como conclusão narrativa e injunção ética, toma a forma de uma equanimidade perante os homens, uma equanimidade que ordena que todos sejam tratados como irmãos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O Filho do Homem

René Magritte - O Filho do Homem (1964)

Naquele tempo, ao chegar à região de Cesareia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» Eles responderam: «Uns dizem que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas.» Perguntou-lhes de novo: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo.» Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. Dar-te ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.» (Mateus 16,13-19) [Comentário de Bento XVI aqui]

O texto trata da instituição da Igreja, o momento em que Cristo coloca Simão como fundamento dessa Igreja. Esta acto instituinte, contudo, deve ser recolocado no contexto, e este é o de um inquérito. O Mestre interroga o seus discípulos, e interroga-os não sobre qualquer matéria de natureza teórica, sobre alguma coisa que eles pudessem saber pelo estudo, mas acerca da própria natureza do Mestre.

O inquérito não deixa de ser surpreendente e marcado por clara ambiguidade. A primeira questão interroga acerca da crença corrente na opinião pública. A ambiguidade está na expressão, corrente no Antigo e no Novo Testamentos, com que Cristo se designa a si mesmo, o Filho do Homem (ben Adam). Essa expressão, em hebraico e na cultura judaica, remete para a referência homem e desse modo a questão poderia ser reformulada da seguinte forma: “Quem dizem os homens que é o homem?”, o que permite perceber que a questão se dirige à essência do próprio homem. O que sabem os homens de si mesmos?

Os homens sabiam pouco, pois viam em Cristo um homem puramente particular, mas não aquilo que é essencial em todos os homens. Na verdade, não se reconheciam a si mesmos na figura do Mestre. A segunda parte do inquérito é dirigida aos discípulos, e Simão reconhece o Mestre. O que leva Cristo a tomar Simão como o alicerce da sua Igreja é o reconhecimento da profunda identidade entre o Filho do Homem (bem Adam) e o Filho do Deus Vivo. Este reconhecimento de Cristo por parte de Simão Pedro é, concomitantemente, o auto-reconhecimento de Pedro. Todo o homem é filho de Deus.

Os poderes conferidos a Pedro estão fundados no reconhecimento que tem da própria humanidade, da sua origem, no reconhecimento do modelo pelo qual todo o homem foi criado. Esse reconhecimento não nasce da carne e do sangue, isto é, não nasce de uma sabedoria exterior, não vem pelo estudo ou pelo ouvir dizer de uma tradição. O reconhecimento do Filho Homem nasce da vida interior, da revelação do Espírito. A afirmação da sacralidade da vida humana e a condição de possibilidade da afirmação da sua dignidade residem neste reconhecimento alicerçado na revelação. E é sobre estes alicerces que se funda uma nova comunidade, não uma comunidade natural, de natureza bio-social, mas uma comunidade espiritual e moral que, pelo reconhecimento do Filho do Homem, eleva os homens para lá da mera contingência da animalidade.

Sonetos do Viandante (15)

Paul Serusier - O Aguaceiro (1893)

15. Amo os dias taciturnos, amo a sombra

Amo os dias taciturnos, amo a sombra
E a chuva fria que trazem, amo a dor
Que com eles desaba, amo o sopro
Do vendaval e a cinza que se espalha.

Com esta melodia, faço canção
E traço pelo campo a fronteira,
Dessa pátria sem fogo nem futuro,
Casa de colmo, verde de saudade.

Quando a chuva cai, olho a janela
E a terra treme, fímbria luminosa
No veludo rasgado e frio do rosto.

De tudo o que amei, resta-me a penumbra
Que a tua voz desenhava nos dias pálidos,
O perfume vazio dos teus segredos.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Transcendência e reciprocidade

Fernand Léger - A Boda (1910 - 1911)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Pedi, e ser-vos-á dado; procurai, e encontrareis; batei, e hão-de abrir-vos. Pois, quem pede, recebe; e quem procura, encontra; e ao que bate, hão-de abrir. Qual de vós, se o seu filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente? Ora bem, se vós, sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está no Céu dará coisas boas àqueles que lhas pedirem.» «Portanto, o que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas.» (Mateus 7,7-12) [Comentário de Tomás de Aquino aqui]

O excerto seleccionado no evangelho de hoje apresenta uma estranha tensão entre aquilo que parece ser um conjunto de premissas (o que vai de “Pedi, e ser-vos-á dado… até …àqueles que lhas pedirem”) e o que se apresenta na forma de conclusão (“Portanto, o que...”). A tensão resulta das premissas se referirem à relação do homem com Deus, enquanto a conclusão se refere claramente a uma formulação da regra áurea, princípio primeiro de todas as éticas da reciprocidade, portanto de um assunto meramente humano. Como poderemos pensar este absurdo lógico-argumentativo que é derivar uma conclusão referente à simetria das relações entre os homens de um conjunto de premissas cujo conteúdo diz respeito à relação assimétrica entre o homem e Deus?

Uma das possibilidades, talvez a mais radical, é pôr de lado a concatenação lógica entre premissas e conclusão, abrindo a possibilidade de uma outra relação instaurada pelo discurso que não se inscreve na lógica apofântica. Essa possibilidade permite pensar, por exemplo, uma relação de precedência textual: aquilo que vem em primeiro lugar tem uma função de fundamento do que vem depois. Esta decisão ajuda-nos a perceber melhor o texto de Mateus? O que nos diz ela?

Diz-nos que a ética da reciprocidade – que é a essência da Lei mosaica e da sabedoria dos profetas –, com a sua natureza simétrica (faz ao outro aquilo que queres que ele te faça), tem a sua condição de possibilidade na relação assimétrica e misteriosa do homem com Deus. Do lado do homem está o pedido, a procura, o bater à porta. Do outro lado, está a dádiva, a presença e a abertura. Instruídos por esta relação assimétrica os homens podem abrir-se e doar aos outros homens esperando, segundo a principialidade de uma economia do dom, a abertura e a doação por parte do outro.

Se levarmos a exegese do texto mais longe, embora mantendo o critério hermenêutico adoptado, podemos mesmo compreender que aquilo que os homens têm para doar uns aos outros não é outra coisa senão aquilo que receberam na relação assimétrica com Deus. A sua abertura ao outro é feita à imagem e semelhança da abertura de Deus para com o homem. Se se considerar a regra áurea presente na ética da reciprocidade como elemento central da possibilidade de uma comunidade, o texto ensina-nos que essa comunidade só é possível se se fundar na transcendência. É esta que alimenta as relações interiores dessa comunidade e que lhes permite o carácter simétrico.