domingo, 20 de janeiro de 2013

Liberdade e mística

Maria Helena Vieira da Silva - Liberdade (1973)
 
A mística, correctamente compreendida, é o reino da liberdade: liberta o homem tanto dos seus condicionantes transcendentes como dos imanentes, sem o deixar afundar-se numa libertinagem anárquica, porque lhe abre-lhe a via para realizar a sua identidade. (Raimon Panikkar, Mystique plénitude de Vie, p. 210)
 
Para além da liberdade de iniciativa - a possibilidade de iniciar uma acção determinada por si mesmo -, há uma outra liberdade, aquela que nasce da libertação daquilo que nos torna estranhos a nós próprios e que nos aliena. Quando Marx afirma a religião como o ópio de povo, percebe-se que ele próprio possui uma visão alienada do fenómeno religioso e não compreende que a emancipação efectiva não só é anterior à questão económica e política, como tem uma natureza muito mais radical. Emancipar-se significa libertar-se tanto das condicionantes interiores como das exteriores. Ora é isto que as diversas escolas místicas propõem como experiência pessoal, certamente dentro de comunidades, mas não como projecto colectivista. Encontramos assim uma outra porta de entrada na modernidade, de onde a experiência religiosa não terá de ser expulsa mas onde se pode constituir como o elemento central do ser moderno. As diversas libertações e emancipações modernas, desde o liberalismo racionalista ao marxismo, são apenas visões degradadas e decaídas de uma experiência da liberdade muito mais fundamental, aquela que é o objecto central da mística.


sábado, 19 de janeiro de 2013

Sonetos do Viandante (13)

Luca Giordano - Orfeo e le Baccanti
 
13. Animal imperioso, sem destino

Animal imperioso, sem destino,
filho espúrio da terra, guardador
de todos os rebanhos desterrados,
protector desta casa de silêncio.

O vendaval que esperas há-de vir,
no tumulto da noite, na lembrança
dos dias em que cantámos a sombria
canção dos deserdados da fortuna.

Na mão terás de Orfeu a velha lira.
Desabarão palácios de cristal
ao som da melodia que nasce em ti.

Os rebanhos esperam-te, exaustos,
silenciosos, sem mácula no olhar.
Trazem nas mãos serpentes, luas e flores.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Haikai do Viandante (121)

Benvenuto Benvenuti - Alba in padule (1926)

Secreta a manhã
ergue-se no escuro pântano.
Céu de sombra e luz.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O homem crepuscular

Rafael Romero Barros - Crepúsculo (1890)

Por vezes diz-se "somos homens crepusculares". Talvez se queira dizer com isso que somos homens tardios, que pertencemos a um tempo em que uma antiga luz envelheceu e tudo se prepara para entrar na noite, essa negra noite que culminará a tenebrosa idade de ferro que nos foi dada a viver. Mas esta mitologia esconderá antes uma outra coisa. No crepúsculo pensa-se esse momento em que o dia hesita entre a luz e as trevas. Ora essa é a situação de cada um, aquilo que no post de ontem se denominava como o impreciso e o sombrio. O importante, porém, é o destino que se escolhe, aquilo pelo qual o ser anseia. Escolher a luz significa caminhar de claridade em claridade, sem que, nesta vida, seja possível sair do impreciso que a sombra sempre nos impõe.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O impreciso e o sombrio

Pierre-Albert Marquet - Céu nublado em Hendaya (1926)

É nos dias nublados que melhor se vê, pois essa é a situação que se adequa à nossa condição mortal. As trevas tornam tudo negro e a pura luz cega-nos. O caminho do Viandante é feito de sombras, névoas e neblinas. Aí constatmos que tudo é misterioso e não alimentamos a ilusão que podemos compreender o que se nos apresenta. Houve quem procurasse a clareza e a distinção. O Viandante procura o impreciso e o sombrio.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Poemas do Viandante (398)

Felix Vallotton - Road at St Paul (1922)

398. O que esperas nessa estrada?

O que esperas nessa estrada?
A sombra da tarde,
o toque dos sinos?

O rumor da luz anuncia
a pessoa amada.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Haikai do Viandante (120)

Lilla Cabot Perry - Mountain Village, Japan (1898-1901)

Vertigem de luz,
sombra pura da montanha.
O inverno findou.

domingo, 13 de janeiro de 2013

A etapa geométrica

Benjamín Palencia - Paisaje (1932)

As paisagens cubistas representam um momento importante na vida do espírito. Ao tornar a sensibilidade geométrica, o cubismo permite que esta encontre um caminho para a razão. Não é, todavia, a racionalidade que é a questão importante, mas o processo de desmaterizalição da representação do mundo físico, a espiritualização das sensações, a abertura para lá daquilo que os sentidos nos trazem. O mundo geométrico é um mundo purificado, um universo que perdeu a ganga da matéria e começa a perder os contornos das sensações, que num primeiro momento se tornam mais agrestes. São, contudo, já pura racionalidade, prontas a dissolverem-se numa experiência de luz e fluidez que a matéria sensível nunca permitirá.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Sonetos do Viandante (12)

Rubens - El Consejo de los Dioses (1621-25)

12. Este mar de silêncio abre a noite

Este mar de silêncio abre a noite
ao terror do sagrado. Exausto, calo-me
e espero o orvalho da manhã.
Escutamos os sinos, fria parábola

da vida que há-de vir. Um mundo pálido,
invernia sediciosa, a promessa
de um grande amor que nunca nascerá.
Quantos anos a vida cantarei?

Calemo-nos! Os gestos, os olhares,
o gélido silêncio são sinais,
bastam para contar a nossa história.

Um ramo de magnólias, um sorriso,
era tudo o que havia para te dar.
Os deuses chegam sempre muito tarde.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Poemas do Viandante (397)

Albert Bierstadt - Wreck of the "Ancon" in Loring Bay, Alaska (1889)

397. Penso no mar langoroso e suave

Penso no mar langoroso e suave,
nos dias de calmaria,
o sol sombreado por nuvens amistosas
e clarões de luz a golfar
na porta aberta dos meus sentidos.

Medito na superfície rasa das águas,
na cerração sob o bater das ondas,
a costa a ceder passo a passo,
e o deus triunfante a erguer-se nocturno.
Na mão irada, o tridente,
o tremor das águas no coração.

O fogo cristalino apagou-se,
tudo é agora um imenso calvário.
A costa, um império de náufragos,
gente enlouquecida a gritar na noite,
restos de corpos trazidos pela maré,
plásticos, madeiras e algas.
Barcos de sombra passam macilentos
e tudo é silêncio na renúncia da razão.