terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (7)

Ernst Ludwig Kirchner - Desnudo femenino de rodillas ante un biombo rojo (1912)

7. Seio descuidado aberto sobre o mundo

Seio descuidado aberto sobre o mundo,
luz matinal que me incendeia o desejo.
Pobre esperança de tocar o fundo
desse teu corpo que espero e vejo.

Seda e cetim, puro algodão em flor,
prazer secreto sob a minha mão.
Despida e nua – oiço sombrio rumor –
dás o teu corpo. Nunca digo não.

Chegada a hora, as mãos e os dedos
abrem-se, flores, ervas, rios, segredos
que desaguam agora nesta rua,

onde te espero pura, branca e nua.
Vem na fria noite iluminar os astros,
somos lua e sol, não deixaremos rastros.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (102)

Ludwig Hirschfeld-Mack - Círculo cromático com 12 divisiones (1922-23)

Círculo de cor.
Entre o dia e a noite, a vida
é sombra e rumor.

domingo, 11 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (6)

William Hogarth - The times - plate 1 (1762)

6. Secreta mutação no ventre do tempo

Secreta mutação no ventre do tempo.
Horas sombrias, azedas, horas perdidas,
o rumo ensanguentado, a vida pobre,
um rosário sem rosas. Tudo estiola

sem rumo nem segredo, no silêncio
das coisas sem sentido, sem palavras
que sejam um relâmpago, a aurora
que chega e anuncia um outro tempo.

Vertigem, dor, o bem submisso ao mal,
um exercício ávido de gritos,
de noites que não têm fim nem retorno.

O tempo que nos cabe, sol de trevas
incendiado, inferno desmedido,
metástase hedionda, fria e sem fim.

sábado, 10 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (101)

Miquel Rivera Bagur - Assossec (1989)

Vermelho deserto,
areia, sol, vasto horizonte.
A morte tão perto.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O tempo dos vendilhões

Stanley Spencer - Expulsion of the Money Changers (1921)

O episódio da expulsão dos vendilhões do templo é, juntamente com o dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, um dos elementos matriciais da cultura ocidental. Se a separação entre Deus e César prefigura a separação entre religião e política, a expulsão dos mercadores do templo revela um topos cuja estrutura merece ser meditada. Há múltiplas leituras do acontecimento. Por exemplo, Mestre Eckhart, num dos seus sermões, faz uma leitura simbólica e espiritual, sem qualquer incidência política e social. A natureza simbólica dos textos evangélicos implica a existência de múltiplas leituras que não se excluem mas complementam. Este episódio, do ponto de vista social, não significa apenas a divisão dos espaços, a separação rigorosa do locus do espírito do locus do mercado. Significa também a sua hierarquia. As coisas espirituais estão acima das questões de mercado, de tal maneira que estas estão impedidas de se misturar com aquelas. No ideal regulador da vida do ocidente, esta separação e hierarquização sempre esteve presente, as coisas do espírito estão acima das questões do mercado e têm sobre estas preeminência.

A modernidade pode ser vista como um processo de subversão desta velha hierarquia. Lentamente, os mercadores expulsos do templo começaram a invadir as esferas que não lhe diziam respeito. Infiltraram-se na ciência e na política. Transformaram a ciência numa cadeia de apoio aos negócios e converteram a política à protecção do lucro privado dos vendilhões expulsos do templo. A vingança contra o templo de onde foram expulsos veio a seguir. Veio não apenas através da conivência entre os guardas do templo e os vendilhões, mas no acto de substituição do próprio templo. Os bancos são as novas catedrais onde os mercadores se entregam à corrupção do espírito e à corrosão do carácter dos homens. A vida, que um dia foi organizada em função do espírito, é agora toda ela voltada para o mercado e vivida em função do dinheiro. Os mercadores expulsos por Cristo voltaram e criaram os seus templos, onde o espírito não tem lugar, para invadirem e contaminarem todas as esferas da vida. No entanto, no fundo dos homens o episódio evangélico da expulsão dos vendilhões não deixa de ecoar, gerando a sensação de que alguma coisa está mal, de que alguma coisa insensata inverteu a natureza das coisas, de que o mundo está fora dos eixos.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (100)

Thomas Hart Benton - Impression, Camouflage (World War I) (1918)

Céus em turbilhão.
E nas águas partem barcos,
vai-se o coração.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Poemas do Viandante (383)

Gwen John - A Corner of the Artist’s Room in Paris (1907-9)

383. Esse lugar vazio

Esse lugar vazio,
não sei como preenchê-lo.
Espreito da janela,
vejo uma mesa e um livro,
vejo uma sombra lívida,
mas não consigo ver
onde está a tua mão
para perder-me nela.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (99)

Piet Mondrian - Composición 1916 (1916)

Naturezas mortas,
traço e cor sobre o papel,
jardins, casa e hortas.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Poemas do Viandante (382)

Caspar David Friedrich - Cemitério

382. ESCUTAREMOS UMA VEZ AINDA OS MORTOS

Escutaremos uma vez ainda os mortos,
as palavras silenciosas ciciadas
na penumbra da tarde,
o severo olhar vindo do outro lado,
o julgamento deixado sobre a história.

Todos dormimos na vida um sono,
o esquecimento da verdade,
a relíquia que todos cortejam
e que de todos se esconde,
ao erguer muros de pedra e ilusão.

Escutaremos uma vez ainda os mortos,
a verdade que lhes trouxe a morte,
a terra descampada onde repousam,
entre árvores erguidas para o alto
e o sonho da eternidade.

domingo, 4 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (5)

Michel Larionov - El desnudo azul (1903)

5. Adormecida sobre a terra pura

Adormecida sobre a terra pura,
a mão no rosto e, no corpo nu,
o véu da lua, seda e cambraia azul,
'strela selvagem, vento, água e fogo.

Puro delírio, seio aberto e suado,
rasto de sangue por amor chorado.
A tudo o sono esquece. Dor, maldade,
vida desfeita, o riso frio e imundo.

Nesta manhã desconsolada vens,
suave e sonâmbula, cobrir o dia,
com o segredo de uma rosa anil,

pura e perfeita, desmedida e bela.
Rosa que se abre sobre o corpo lívido,
rumor de pássaro no frio da tarde.

sábado, 3 de novembro de 2012

Serenidade

Miró Mainou - Serenidad (1968)

Este é o tempo que exige do viandante a maior serenidade. A violenta tempestade aproxima-se e não há abrigo onde se possa recolher nem homem que lhe estenda a mão. Nada depende da pequena vontade que lhe cabe. Resta a pura entrega ao acontecer e esperar o que à graça lhe aprouver.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Poemas do Viandante (381)

Paul Klee - A garden for Orpheus (1926)

381. Orfeu no jardim

Orfeu no jardim
sentado dedilha
a pesada lira.
Lágrimas nos olhos,
no coração a dor
e no peito a ira
por tanto desejo
lhe roubar o amor.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (98)

Camille Pissaro - A Path Across the Fields (1879)

Amenas paisages,
velhos campos e caminhos,
 frutos e viagens.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (380)

Vincent Van Gogh - Bosquecillo (1890)

380. No bosque frondoso

No bosque frondoso,
a sombra pálida,
canções e rumores
trazem-te o outono
coberto de musgo,
trevos e flores.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (379)

Julia Hidalgo Quejo - Silencio (1989)

379. Silêncio de pedra

Silêncio de pedra
fala nas paredes,
quase uma sombra,
quase uma queda.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (97)

Kazimir Malevich - Apples Trees in Blossom (1904)

Árvores em flor,
do fruto que há-de vir são
sinal e rumor.

domingo, 28 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (378)

Javier Calvo - A partir de Keiser (1985)

378. Perdido no céu

Perdido no céu
um pássaro voa.
Entre a rosa e a cinza,
um risco quieto
ali o denuncia.
Corpo oculto e leve,
da gravidade
esquecido e nu.
Estremecem asas
na noite que morta
te abre ao dia.

sábado, 27 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (96)

Joseph Stella - Battle of Lights, Coney Island (1913)

Multiplicidade
tão pura e tão luminosa,
rumor sem idade.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (377)

Emil Nolde - Dark Mountain Landscape

378. O céu misterioso

O céu misterioso
cai sobre a montanha.
Tão leve e suave,
tão dorido e puro,
o céu de Novembro
que se abre na noite,
perdido no tempo.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (95)

Edvard Munch - Alameda con copos de nieve (1906)

Neve na alameda,
pequenos flocos de orvalho,
fogo e labareda.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (377)

Georgia O'keeffe - A Black bird with snow-covered red Hills (1946)

377. Pássaro negro

Pássaro negro, 
sombra despida 
de gravidade.
Traço no céu,
uma promessa
de eternidade.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (94)

Vázquez Díaz - Otoño en Fuenterrabia (1918)

Segredos de Outono:
as cores vibram no bosque,
se em ti me abandono.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Do céu, da terra e do homem

José Ramón Zaragoza - Prometeo encadenado

Há dias, perante uma certa polémica que se levanta em torno de figuras como Slavoj Zizek e Alain Badiou, alguém me acusou de ser humanista. Zizek e Badiou, dois pensadores com bastante destaque mediático nos dias de hoje, são herdeiros da tradição anti-humanista que cresceu em França à volta do estruturalismo. Os pensadores estruturalistas, em oposição ao existencialismo de Sartre, vieram declarar a morte do homem. As posições humanista e anti-humanista tiveram em Portugal representantes fora do campo da filosofia. Vergílio Ferreira e Eduardo Prado Coelho, respectivamente. Não sendo eu um particular adepto das posições de Zizek e de Badiou, só podia ser um humanista.

A questão do humanismo deve ser colocada, porém, na sua fonte moderna. Os humanistas surgem no final da Idade Média e representam um movimento que pretende ultrapassar a visão teocêntrica do mundo e colocar o homem, a humanidade, como o centro da acção do próprio homem. Este humanismo foi tomando múltiplas colorações - as mais díspares, diga-se - ao longo da modernidade. O cartesianismo, o iluminismo, o liberalismo e o utilitarismo, o marxismo ou o existencialismo, são exemplos desse triunfo moderno do homem sobre a sombra de Deus, exemplos de uma visão prometaica da mundo. Este humanismo foi desafiado pelo estruturalismo, o qual substituiu o homem pelas estruturas, sejam as da linguagem, as sociais e económicas, as do psiquismo, etc., numa proclamação da morte do homem, depois da proclamação nietzschiana da morte de Deus. 

Na verdade, a querela interessa-me pouco. Falando psicanaliticamente, o humanismo não passa de um narcisismo da espécie humana e o anti-humanismo de um sado-masoquismo, marcado pelo prazer-dor de dissolver o homem. Não acho que o homem esteja morto nem que seja o centro do universo. Utilizando a simbologia extremo oriental, diria que o homem está entre a terra e o céu. É o mediador entre aquilo que está abaixo dele e aquilo que o ultrapassa. Nesta ultrapassagem, contudo, não penso o sobre-homem nietzschiano, aquele que vem depois do homem. De certa forma, estarei muito mais perto da concepção medieval do que de quaisquer dos contendores da querela do humanismo e do anti-humanismo. Não que pense na possibilidade de um retorno à Idade Média. Não há retornos na História. O fundamental é pensar que o que há de mais elevado, aquilo que a tradição chinesa denomina como céu e a ocidental como Deus, seja o centro dinâmico da vida dos homens, mas de homens que substituíram o princípio de autoridade pelo princípio da liberdade, e por isso são modernos.