sábado, 20 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (4)

Gino Rubert - Deliri

4. Um súbito ardor no rosto pálido

Um súbito ardor, pálido o rosto...
Nos olhos, uma luz aberta ao jogo
do amor, e em cada mão a casa vazia,
o lugar onde espera a chama viva,

secreta e silenciosa, que abre o dia.
E nessa incerteza, deixa o ventre
pulsar leve e tranquilo, um mar de seda,
uma fonte, erva doce nos meus lábios.

Sou um velho barqueiro que olha o mar.
Sob o império do vento, negras nuvens
anunciam tempestades e naufrágios.

O abismo… nele a morte lançou âncora,
e desenhou, perfeita, a armadilha
onde o meu coração no teu cairá.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (376)

George Grosz - Blauer Morgen (1912)

376. O dia veste-se de outono

O dia veste-se de outono
e sobre as casas verte
a sombra de um lamento. 

Na fria luz da manhã 
uma árvore despe-se,
e nua abre-se ao vento.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (375)

Eugene Louis Boudin - Jetty and Wharf at Trouville (1863)

375. O deserto silêncio

O deserto silêncio 
na praia devastada,
o barco fundeado
no velho cais
lembram dedos
de uma mão aberta,
perdidos na tarde
entre cinzas e corais.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (92)

Carlos Morago - Arboleda (1998)

Sombra e arvoredo,
e na clareira deserta
enfrentas o medo.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (91)

Juan Romero - Bird-Birds (1987-90

Pássaros ociosos
voam em bandos pelo mundo
leves, silenciosos.


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Da essência da pobreza

Pablo Picasso - Los pobres a orillas del mar (1903)

Vivemos tempos equívocos relativamente à pobreza. Depois da insolência com que a necessidade de consumir era imposta, veio a desfaçatez da coacção à miséria. Seja, porém, na riqueza do consumo ou na penúria de bens falha-se o essencial. Importa aprender a ser pobre não por uma questão social, mas porque a realidade que é a nossa o exige. Pobreza significa pura e simplesmente tomar em consideração cada coisa como ela é e não apenas como se fosse propriedade. Isto significa não ter um olhar enviesado pelo "meu" ou pelo "teu" das coisas e do mundo, subtrair-se a lógica que encerra a sociedade no exercício do egoísmo mais estreito e no delapidar irresponsável daquilo que encontrámos ao chegar à vida. Significa, fundamentalmente, que devemos estar prontos, a cada instante, para abandonar seja o que for, sem que isso perturbe o espírito, pois nada, na verdade, nos pertence, mesmo aquilo que mais amamos. Esta pobreza essencial não se confunde com a pobreza social. Esta, a maior parte das vezes, é o resultado da perversão da pobreza essencial. Perversão que é sempre um empobrecimento, seja este manifesto na acumulação de incontáveis riquezas ou na pura indigência. A pobreza essencial, aquela que todos devemos aprender, é a das aves do céu e a dos lírios do campo, aos quais, como se sabe, nada lhes falta.

domingo, 14 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (3)

Edvard Munch - The Hands (1893)

3. Que o teu seio se desvele, que a tua mão

Que o teu seio se desvele, que a tua mão,
suada e suave, se entregue, que a tua boca
se abra, e língua e lábios sejam mel, fogo,
orvalho matinal, o ar da floresta.

E pura e desvalida, te entregues,
na noite fria e calma, ao desejo
que os teus olhos nos meus incendiaram,
que os seios brancos e cálidos atearam.

Espero-te na tarde azul e pálida.
Uma ânsia fere o peito, rasga-me a pele,
rompe-me as veias e o sangue frio se esvai.

Quando oiço os teus passos, quando a voz,
serena e pura, chama já por ti,
uma rosa de seda ergue-se em mim.

sábado, 13 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (90)

Alex Katz - A Tree in Winter (1988)

Árvore de inverno,
sombra no gélido campo,
traz o frio eterno.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (2)

2. Tristes e velhas as ruas desta vila

Tristes e velhas as ruas desta vila,
pedras de sombra, fiel mansão da pálida
enfermidade. Na distância o rio
lembra o vazio. Restos de cal e vidro,

uma janela, casa aberta e amada.
Oiço-te a voz, uma palavra azeda,
tanta amargura, tanto fel e lágrimas,
sempre na noite, sem amor nem ódio.

As minhas mãos, um grito azul, um cântico:
eis a riqueza, o fogo, a pedra e a água.
Esqueço a vila, as ruas, o pó dos túmulos.

Deixo que o sonho vão se cale ao cantar,
deixo que o tempo, velho amigo meu,
na mesa ponha rosas, vinho e pão.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (1)

Brüghel de Velours - O banquete dos deuses (1600)

1. Chegou tarde a sombra e as flores tão cansadas

Chegou tarde a sombra e as flores tão cansadas
tinham sobre a terra as pétalas dobrado.
Um grito cruzou os céus. No silêncio da noite
abriu a negra casa antes que um deus viesse.

Pobres mortais sem tecto ou destino sabido,
esquecemos a vida e aos deuses suplicamos,
entre o grito e a raiva, um frívolo consolo,
a ventura da glória e a força da vaidade.

O tempo tudo diz, que vitória te cabe
ou que dura derrota a sorte te reserva.
Silencia o coração para que os deuses desçam

e, no ameno jardim, cantem as suas canções.
Repara! Eles vêm, belos e luminosos,
e sobre a negra  noite erguem a claridade.