segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Da essência da pobreza

Pablo Picasso - Los pobres a orillas del mar (1903)

Vivemos tempos equívocos relativamente à pobreza. Depois da insolência com que a necessidade de consumir era imposta, veio a desfaçatez da coacção à miséria. Seja, porém, na riqueza do consumo ou na penúria de bens falha-se o essencial. Importa aprender a ser pobre não por uma questão social, mas porque a realidade que é a nossa o exige. Pobreza significa pura e simplesmente tomar em consideração cada coisa como ela é e não apenas como se fosse propriedade. Isto significa não ter um olhar enviesado pelo "meu" ou pelo "teu" das coisas e do mundo, subtrair-se a lógica que encerra a sociedade no exercício do egoísmo mais estreito e no delapidar irresponsável daquilo que encontrámos ao chegar à vida. Significa, fundamentalmente, que devemos estar prontos, a cada instante, para abandonar seja o que for, sem que isso perturbe o espírito, pois nada, na verdade, nos pertence, mesmo aquilo que mais amamos. Esta pobreza essencial não se confunde com a pobreza social. Esta, a maior parte das vezes, é o resultado da perversão da pobreza essencial. Perversão que é sempre um empobrecimento, seja este manifesto na acumulação de incontáveis riquezas ou na pura indigência. A pobreza essencial, aquela que todos devemos aprender, é a das aves do céu e a dos lírios do campo, aos quais, como se sabe, nada lhes falta.

domingo, 14 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (3)

Edvard Munch - The Hands (1893)

3. Que o teu seio se desvele, que a tua mão

Que o teu seio se desvele, que a tua mão,
suada e suave, se entregue, que a tua boca
se abra, e língua e lábios sejam mel, fogo,
orvalho matinal, o ar da floresta.

E pura e desvalida, te entregues,
na noite fria e calma, ao desejo
que os teus olhos nos meus incendiaram,
que os seios brancos e cálidos atearam.

Espero-te na tarde azul e pálida.
Uma ânsia fere o peito, rasga-me a pele,
rompe-me as veias e o sangue frio se esvai.

Quando oiço os teus passos, quando a voz,
serena e pura, chama já por ti,
uma rosa de seda ergue-se em mim.

sábado, 13 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (90)

Alex Katz - A Tree in Winter (1988)

Árvore de inverno,
sombra no gélido campo,
traz o frio eterno.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (2)

2. Tristes e velhas as ruas desta vila

Tristes e velhas as ruas desta vila,
pedras de sombra, fiel mansão da pálida
enfermidade. Na distância o rio
lembra o vazio. Restos de cal e vidro,

uma janela, casa aberta e amada.
Oiço-te a voz, uma palavra azeda,
tanta amargura, tanto fel e lágrimas,
sempre na noite, sem amor nem ódio.

As minhas mãos, um grito azul, um cântico:
eis a riqueza, o fogo, a pedra e a água.
Esqueço a vila, as ruas, o pó dos túmulos.

Deixo que o sonho vão se cale ao cantar,
deixo que o tempo, velho amigo meu,
na mesa ponha rosas, vinho e pão.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Sonetos do Viandante (1)

Brüghel de Velours - O banquete dos deuses (1600)

1. Chegou tarde a sombra e as flores tão cansadas

Chegou tarde a sombra e as flores tão cansadas
tinham sobre a terra as pétalas dobrado.
Um grito cruzou os céus. No silêncio da noite
abriu a negra casa antes que um deus viesse.

Pobres mortais sem tecto ou destino sabido,
esquecemos a vida e aos deuses suplicamos,
entre o grito e a raiva, um frívolo consolo,
a ventura da glória e a força da vaidade.

O tempo tudo diz, que vitória te cabe
ou que dura derrota a sorte te reserva.
Silencia o coração para que os deuses desçam

e, no ameno jardim, cantem as suas canções.
Repara! Eles vêm, belos e luminosos,
e sobre a negra  noite erguem a claridade.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Harmonia

Luis Brihuega - Armonía (1960)

A harmonia consigo mesmo, com os outros e a natureza é o ideal que se oculta muitas vezes sob a capa do mal estar. A experiência de desarmonia, de desacordo, de desconformidade corrói a vida dos homens, trabalha-a por dentro até fazer dela qualquer coisa feia e inaceitável. Essa experiência de nunca se estar em sua própria casa conduz à criação de uma mitologia que nos permita imaginar um ideal de proporção e beleza nas nossas vidas. Mas a vida é desarmonia e desconcerto por excelência, e ao homem resta-lhe aceitar essa sua condição. É no momento em que aceita a desarmonia que o homem começa a dar os primeiros passos na senda da harmonia. Harmonizar-se com a desarmonia, eis o imperativo para quem se sente em desconformidade e desacordo com e na vida.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (89)

Jean Arp - Arrangement according to Laws of Chance (1919-17)

Tardias leis do acaso
semeiam lívidas flores
que guardo num vaso.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O escandaloso modelo crístico

Marc Chagall - White Crucifixion (1938)

Aquilo que faz a atracção do cristianismo também está na origem da sua repulsa. A morte na cruz do filho de Deus veio abolir, na economia das religiões, todo o sacrifício humano. Abolir significa aqui tornar ilegítimo do ponto de vista religioso. Esta suprema dádiva de Cristo, o acto de morrer pela salvação dos outros, é o que faz a força do cristianismo. Mas também é aquilo que causa, nos seres humanos, a maior repulsa. Não a sua morte, mas o facto de Cristo se ter tornado, por esse acto, em modelo de humanidade, em protótipo do homem novo, aquilo que todos os homens deveriam seguir. O que estes deveriam seguir, contudo, não era a morte na cruz, mas pura e simplesmente a limitação, a crucificação, das suas pulsões egoístas. Esta limitação do desejo tem a função de criar a abertura onde os outros se possam instalar ao nosso redor. 

Há na morte de Cristo também um modelo de constituição da comunidade humana. Ela é possível no sacrifício que cada um faz de si. É este sacrifício que gera a cooperação justa. O cristianismo não se confunde com as doutrinas do contrato social, as quais são pensadas segundo um modelo de homem antagónico, o homem que segue os seus impulsos egoístas e que procura, através do direito, torná-los legítimos. Neste caso, a limitação dos impulsos egoístas não deriva de uma decisão de sacrifício pessoal, mas do medo da lei, que representa a vontade geral. É perante este modelo liberal do contrato social que o modelo do sacrifício crístico é escandaloso. A sua proposta representa uma enormidade: não esperes pela lei para te conteres, mas fá-lo como princípio originário da tua existência. O escândalo do cristianismo está todo aqui. Não por acaso, nas sociedades modernas e liberais o cristianismo perdeu poder de atracção. Ele propõe um modelo que desconstrói a narrativa que suporta os actuais contratos sociais, desconstrói a ideia de que a comunidade justa pode resultar dos egoísmos exacerbados limitados pelo medo da sanção humana.

domingo, 7 de outubro de 2012

Haikai do Viandante (88)

Frantisek Kupka - Abstracción en color (1931-36)

Traços sobre a tela
riscam de azul e laranja
o que vemos nela.

sábado, 6 de outubro de 2012

A condição animal

Amparo Segarra - Descanso y Trabajo (años 70)

A vida do espírito assenta num sagaz equilíbrio entre o descanso e o trabalho. Os gregos antigos descobriram no ócio a virtude que lhes permitia dedicarem-se ao exercício da filosofia, à actividade espiritual. Isto é tanto mais sintomático quanto a pólis grega é o centro de uma intensa actividade pública. O mosteiro medieval beneditino vai encontrar - na sigla que o resume: ora et labora - o equilíbrio para que a vida espiritual floresça. Só a sociedade moderna, marcada pelo triunfo da burguesia sobre a aristocracia, vai desprezar o ócio, o espaço para o livre desenvolvimento do espírito. Nos dias de hoje, a ideologia triunfante é a da pura submissão da vida dos indivíduos ao trabalho e à acção. O resto, se o houver, é dedicado à distracção, ao mais puro divertissement, para usar uma expressão de Blaise Pascal. O triunfo da economia e da visão burguesa do mundo pode representar a vitória do progresso tecnológico e material, mas significa, ao mesmo tempo, o triunfo da mais aviltante subjugação do homem às suas necessidades e desejos materiais. Pela primeira vez na história da humanidade, o homem rege-se pura e simplesmente pela sua condição animal.