sábado, 24 de maio de 2008

Do sentido da amizade

Passar o dia com pessoas amigas e desejar a sua presença sem que isso desvie o olhar da presença do inefável. Não será que o inefável está já nessa presença nimbada pela amizade ou pelo amor? Por vezes, procura-se a amizade como fuga a si e à sua realidade, como alienação, estranhamento e esquecimento. Mas a amizade é um dom que recebemos e a sua natureza simboliza uma outra amizade que funda todas as amizades humanas. Na amizade pensamos na igualdade dos amigos e no carácter gratuito dessa benquerença. Se transportamos essas ideias para a amizade com o absoluto, perceberemos de imediato essa estranha relação que absoluto e relativo podem entretecer. Mas o sal de todas as amizades só pode ser um: a lealdade. Talvez não exista nada mais perverso no mundo do que a deslealdade e a traição aos amigos.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Não chamo por Ti

Escuto a tarde a tombar no reino da noite, oiço o rumor dos Teus passos se caminho esquecido de mim e por Ti me deixo conduzir. Abro o coração, o sangue flui tranquilo, e um silêncio de neve rodeia-me delicado, suave, mesmo se é pelo rude mundo que caminho. Não chamo por Ti, pois a minha voz não te alcançaria se já não estivesses nesse lugar de onde por ti chamaria.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Um espaço vazio

Tornar-me um grão de areia, um nada, um espaço aberto e vazio, um espaço onde o que vem de fora e o que vem de dentro circulam sem restrições. Somos nós que afastamos Deus do mundo ao encerrarmos a débil fronteira que cada um é. Quanto mais cerrada for, maior a separação. Medito, por vezes, nas palavras heideggerianas sobre o afastamento de Deus. Mas Deus não se afastou. Está onde sempre esteve, no íntimo de cada um. O Homem é o sinal de Deus no mundo, mas se cada um dos homens fecha o sinal que é, um espectador distante pensará que Deus abandonou o mundo à sua sorte. A verdade, porém, é que o jardineiro esqueceu a sua missão e concentra agora tudo em si. O mundo que era para ele é agora um mundo que é seu, um mundo reduzido à mera propriedade e ao arbítrio do suposto proprietário. Mas se o proprietário se abandonar, se se abrir como espaço, Deus e o mundo reatarão de imediato a ligação e a sensação de derrelicção perderá o sentido.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

A negação de si

Negar-me a mim mesmo, negar as ilusões que sobre mim construo a cada hora que passa, negar o equívoco da minha importância. Mas como cumprir este programa, se todas as forças da natureza lutam com afinco para reforçar esse eu que devo negar? Não há nada mais humano que essa pequena palavra à qual atribuo todos os actos que pratico, os pensamentos que me ocorrem, as omissões que acontecem. Mais, a tarefa de negar-me ainda traz a prescrição de, nessa negação, não cair na abjecção pré-humana, no estado do animal incapaz de se identificar. Se penso, porém, no referente desse eu, se o começo a desmembrar pela análise, se lhe aplico o olho clínico, descubro que esse que diz eu é tão evanescente que o eu, essa impertinente partícula gramatical, parece ser-lhe a sua tábua de salvação, aquilo que na evanescência dá estabilidade. Negar-me a mim mesmo é perder a estabilidade. A negação de si implica então que se caminhe na instabilidade e na evanescência, que se mergulhe no fluxo da vida sem uma bóia. Onde, porém, irei buscar forças para essa caminhada?

terça-feira, 20 de maio de 2008

Via Crucis

De onde vem e para onde vai o homo viator, o viandante que percorre os caminhos do mundo? Se escutarmos a voz do cristianismo, o viandante vai de Adão para Adão. O mundo surge assim como uma longa peregrinatio de si para si mesmo. Como Ulisses, o viandante sai da aprazível Ítaca para a guerra de Tróia. De certa maneira, Ulisses é o homem caído, um Adão helénico, sendo a queda simbolizada pela saída da pátria para a multiplicidade do mundo, da qual a guerra é a metáfora mais acabada. Mas, como o filho pródigo, também Ulisses tem necessidade de retornar ao seu estado adâmico original e empreende a viagem de retorno, uma viagem cheia de armadilhas e perigos. Ulisses é então o peregrino que se perde na terra estrangeira até encontrar, com o beneplácito dos deuses, a graça, dir-se-á em linguagem cristã, o paraíso perdido. O viandante é ao mesmo tempo Adão e Ulisses, mas o Adão que é expulso do paraíso só retorna a ele como Cristo, o crucificado. A peregrinatio do viandante é a via crucis que o leva do primeiro ao segundo Adão. Os caminhos que percorre só podem então ter dois sentidos: ou conduzem ao engano, à ilusão e à delapidação de si, ou apontam para o paraíso de onde Adão e Ulisses foram, por uma necessidade imperiosa, postos fora. Mas saberá o viandante destrinçar um e outro? Quantas vezes não é o caminho do engano, da ilusão e da delapidação de si uma autêntica via crucis? Mas sabê-lo-á aquele que a está a trilhar?

segunda-feira, 19 de maio de 2008

A morte da vontade

Luto contra a inércia e a indolência. Sento-me e obrigo-me a escrever e a trabalhar. O corpo, porém, é arrastado por um espírito em devaneio e por uma sombra nebulosa que parece cair sobre o cérebro e invadir os braços e o peito. Há um desfalecimento da vontade, mas este desfalecer é tão físico que quase o posso tocar. Talvez agora perceba por que motivo a preguiça é um pecado mortal. Nela habita a morte da vontade, de qualquer vontade, boa ou má. Mas, se olho com mais atenção, surpreende-me que ela seja considerada um pecado, como uma má escolha do meu livre-arbítrio. Eu não quero a preguiça, a indolência, a inércia da vontade. Apenas as sofro e sofro dolorosamente como se me atingissem no mais fundo do meu ser e me destruíssem, lentamente e com determinação. Por vezes, a quantidade de força para vencer a inércia é tão grande que me desgasto só na mobilização da vontade. Na base da preguiça existe uma desordem no ser, como se os elementos estivessem desestruturados e para conduzir a vontade à acção fosse necessário um árduo trabalho de reconstrução. Ao fim de tantos anos, sei que sozinho jamais conseguirei triunfar sobre este desarranjo estrutural. Mas será que sei abrir-me àquilo que ainda há de saudável no fundo do meu ser? Sim, pois apesar das contínuas derrotas de uma vontade frágil, nunca, até hoje, deixei de ter esperança de que as coisas acabariam por ser de outra forma, embora não saiba como será essa outra forma.

domingo, 18 de maio de 2008

O corpo desejado

O desejo de um corpo é muitas vezes mais do que um desejo corporal, de satisfação dos sentidos, se é que esta expressão descreve seja o que for na paixão erótica. A imaginação trabalha sobre o corpo desejado e, se esse desejo nunca foi consumado, ela abre uma clareira onde tudo se ilumina. Desejo aquela pessoa, pressinto o seu corpo a chegar junto do meu, a sua na minha boca. Mas não é aqui que está a verdade desse desejo. Há qualquer coisa inapreensível que me faz querer aquela pessoa e não outras, ou não muitas das outras que existem. É esse “qualquer coisa” que contém um segredo e é nesse segredo que se inscreve o meu desejo. É um facto que desejo aquele corpo, aqueles lábios, desejo ter a minha mão sobre aquela pele, desejo fundir-me naquela pessoa e amá-la, desejo a perdição do sexo e o fulgor de um beijo, desejo que aquele corpo me solicite e se torne solícito à minha solicitação. Mas nada disso ainda tem sentido, nada disso é relevante, nada disse me mostra a essência do meu desejo que se manifesta no desejar daquela pessoa. Pressinto que, para além do corpo desejado e da fusão desses corpos no jogo do amor, há um espírito que se reconhece, talvez por breves instantes, noutro espírito e que, mais do que os corpos, são eles, esses estranhos habitantes das nossas pessoas, que se desejam e que, mais de que todo o resto, desejam fundir-se. Não são os corpos que se desejam, são os espíritos que se procuram e atraem através da espessura nebulosa dos corpos, esses santuários onde o espírito vive puro e sem mácula. Talvez não exista outro amor para além do platónico, talvez. Mas para que isso se torne compreensível, há que pôr de lado aquilo que popularmente se entende por amor platónico.

sábado, 17 de maio de 2008

Da dor e da compaixão

Como pode o drama dos outros tocar-nos se, a seus olhos, somos os culpados desse drama? Dito assim, ainda haveria lugar para considerar um sentimento de culpa na compaixão. Mas se somos culpados pelo mero facto de existirmos, como sentir remorsos por esse facto? Como é possível a compaixão quando se pressente no outro o desejo da nossa aniquilação? Talvez seja possível a compaixão. Mas temo que essa compaixão não seja mais do que a exibição de um sentimento inqualificável de superioridade. Ouve-se o outro, desesperado, a falar, escuta-se a angústia que o percorre, a derrota que o atormenta, derrota da qual somos, a seus olhos, culpados, embora não tenhamos jogado qualquer jogo, embora não tenhamos dado um passo nesse sentido. Enquanto se ouve e fala, o espírito interroga-se sobre como trabalhar naquela situação. Sobre o outro, ainda por cima, temos a vantagem de saber que tudo o que o atormenta é insignificante e que a causa daqueles tormentos apenas está na vaidade, num ego dilatado, em alguém que não é capaz de lidar com a derrota, se é que há uma derrota. Nada disto se lhe pode dizer, pois a verdade destas palavras seria sentida como mais uma exibição inqualificável de superioridade. Deixo-o falar, falar, acusar e continuar a falar. De um determinado ponto de vista, é um exercício infinito de humilhação. Sinto que a única compaixão possível é dar-lhe espaço, abrir o campo para que possa falar e enquanto o quiser fazer. Há ali uma dor sem sentido, mas pelo facto de o não ter não deixa de doer. Talvez a compaixão mais verdadeira seja deixar que o outro exiba a dor que o atormenta. A dificuldade, porém, é não alimentar qualquer expectativa sobre a nossa superioridade, como se essa expectativa não fosse exactamente igual a dor que consome aquele que fala.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A tensão do acontecer

Uma noite mal dormida e cheia de peripécias rocambolescas, um dia vago e vazio, como se o espírito, confundindo-se com o corpo, precisasse de descanso. A tensão do acontecer prende em si o pensamento e este apossa-se de todo o ser, impõe-lhe os seus devaneios e inconsequências. Um dia entre a agitação da possessão pela corrente de consciência e um cansaço de quem precisa de dormir e há muito não o faz. Respiro fundo e anseio pela hora em que posso descansar.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

A matilha de cães

Se tudo em mim se silenciasse, o desejo, a vontade, o intelecto, a memória, talvez alguma coisa pudesse falar nesse silêncio. Mas como poderei calar a matilha de cães que me habita e não pára de ladrar? Se sinto um anseio pela quietude, logo os cães começam a rosnar e a latir e quanto mais os puxo para casa, mais forte se torna a sua voz e maior é o ímpeto com que me arrastam para a rua. Ladram agora em mim todos os cães que me habitam e no silêncio da tarde já não são eles que oiço, mas o lobo que ao uivar anuncia a noite que chega.