sexta-feira, 14 de junho de 2024

O Espírito da Terra (31)

Fernando Pissarro Gambôa, Terra Perdida IV, 1982 (Gulbenkian)
Toda a terra é uma terra perdida, ulcerada pelo vento, entregue à erosão das águas, aberta ao delírio do fogo. Despois, recompõe-se e, entre cinzas, poeiras e lamas, oferece o corpo despido à fecundação do céu, para que a vida venha com os seus imperativos e lhe devolva o sentido que, por instante, a impiedade do tempo lhe roubara.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Sonetos de Primavera (11)

Mimi Fogt, Spring Time - Serra de Sintra, 1979 (Gulbenkian)

Na cilada das ruas, sol ardente

traça lagos de luz, terras de fogo,

um mundo no bulício da manhã.

O espírito canta, é um pássaro.

 

Tudo na Primavera dissimula

o Verão que virá com a sua corte

ouvir velhas canções de sal e sombra,

para despertar almas sonolentas.

 

Ébrio, bebo a luz, como o fogo,

e canto, sou um pássaro do Sul,

perdido entre ruas e desejos.

 

O Verão arde puro nos lugares

onde a Primavera se esconde

e em mim canta odes e canções.

 

Junho de 2024

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Câmara discreta (21)

Charles Clifford, The Armor of Philip III, 1866

Ali estava Filipe III, reduzido ao que era, um nada moldado na memória de uma armadura que jamais conterá o seu corpo, para o proteger do ímpeto dos inimigos ou do ódio dos amigos. A câmara, devido ao desacerto entre o tempo de Filipe III e o do disparo fotográfico, esquivou-se a mostrar o rei, a roubar-lhe do corpo a imagem, para a tornar pública, para a oferecer ao gáudio sem piedade dos espectadores. Deu-nos uma máscara e um lugar vazio, como se um rei fosse um mistério para sempre indecifrável.

sábado, 8 de junho de 2024

Pintura e haikus (40)

Francisco Tropa, sem título, 2014 (Gulbenkian)

 Um mundo de sombras
percute a terra e a cinza.
Cântico da tarde.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Histórias sem nexo 31. Tradições

Eduardo Nery, Estrutura Ambígua IV, 1969 (Gulbenkian)

Tristão de Trancoso trovejava na travessa, mas Tracy da Trácia trabalhava na tribo. Trancados por uma trave, trocaram tremoços e tremores, transformaram tratados em traições, treparam por trampolins e trepadeiras, se troavam os trovões, se trefegavam as trutas, as trufas e os tritões.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Sonetos de Primavera (10)

João Queiroz, sem título, 1999 (Gulbenkian)

Morre a Primavera no calor

desvairado de Junho, nestes dias

sem nome, sem grandeza, nesta hora

onde os anjos se calam temerosos.

 

Em silêncio, o sol chegou irado,

exausto pelos dramas concebidos

na caverna escura onde o mal

germina como erva impiedosa.

 

Retiram-se os anjos para longe,

procuram o jardim onde as águas

correm entre a noite e a luz.

 

A cidade esconde-se nas sombras,

enquanto o mal trabalha sem sossego,

invade as avenidas, nasce o caos.

 

Junho de 2024


domingo, 2 de junho de 2024

Signo sinal 18. Escuridão

Jorge Molder, O Fazer Suave de Preto e Branco (da série), 1981 (Gulbenkian)

Na escuridão, procuramos em silêncio sinais de luz, relâmpagos que iluminem a noite escura da alma, cintilações que orientam no caminho aquele que decidiu empreender a viagem para dentro de si, levado pela esperança de encontrar os signos que lhe abrirão o portal para o segredo vivo que o habita.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Impressões 118. Noite

Jorge Pinheiro, sem título, 1977 (Gulbenkian)

A noite desloca-se sobre a Terra. Sombra apaziguadora do cansaço trazido pela luz. Poder da desordem que, ameaçado pela força do cosmos, abre a porta para dança do caos. Textura da morte semeada na aridez dos campos e na volúpia dos oceanos. O seu caminho não tem fim.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (9)

Adam Elsheimer, Pan and Syrinx, 1610-1620

Frívolas fantasias pairam na tarde,

enchem os céus de nuvens e promessas,

rasgam nos corações a esperança,

desenham nas estradas fios de sombra.

 

A luz cresce ainda pelos campos,

toca o sal da terra com o ardor

do sol primaveril, com o desejo

que desliza dos seios das mulheres.

 

Águas de Primavera são promessas

trazidas pelas sombras deste dia,

tecidas pelas mãos brancas da tarde.

 

A natureza é campo de júbilo,

onde o desejo cresce, salga a terra

e dardeja os corpos das mulheres.

 

Maio de 2024


domingo, 26 de maio de 2024

Micronarrativa (66) Pescadores

Hans Baumgartner, Fischer an der Mosel, 1937

Não, não são os peixes que atraem os pescadores ao rio. Levam o barco para o meio das águas, pegam nas canas de pesca e lançam, presos aos fios, anzóis armadilhados. Querem enganar o tempo e trazê-lo do leito viscoso para a cesta, onde esperam vê-lo contorcer-se e, sem poder recriar as fantasias com que ilude os homens, morrer nos braços vivos da eternidade.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

O sal do silêncio (114)

Carlos Botelho, Sé de Lisboa, 1938 (Gulbenkian)
A evanescência da memória acentua-se pela deslizar das águas. Sobre as pedras do passado, paira um silêncio tão leve que lembra o murmúrio de um anjo ao passar ou o som do sal a desprender-se da mão de Deus para temperar a insípida textura da terra.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Meditação breve (195) Esperança

Querubim Lapa, sem título, 1948 (Gulbenkian)

Quando a vida comum é tocada pela ausência de sentido, a expectativa do homem eleva-se da dureza da terra à imponderabilidade dos céus. Se se olha para cima, espera-se o auxílio e, com ele, o sentido que ajuda a viver no mundo que o perdeu. A esse movimento que transporta o olhar de baixo para cima deu-se, desde sempre e declinado em infinitas línguas, o nome de esperança.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (8)

Francis Picabia, Procesión de Sevilla, 1912

São tardes de assombro no caminho.

Espanto pelas coisas renascidas,

libertadas da morte invernal,

do trôpego casebre da tristeza.

 

Uma procissão vinda do passado

descia ruas cobertas de verdura.

As pétalas das rosas cintilavam

nascidas no contágio da memória.

 

Trago em mim o silêncio do espanto.

Abro os olhos na luz secreta e pura,

no caminho exacto do assombro.

 

Passam pequenos anjos entre andores,

as pétalas pisadas perdem cor.

Renascem em mãos lívidas as rosas.


Maio de 2024


sábado, 18 de maio de 2024

Diálogos morais 66. Destino

Julia Margaret Cameron, The Parting of Lancelot and Guinevere, 1874

- Chegou a altura.
- De quê?
- De que será?
- Não faço ideia.
- Como hei-de dizer?
- Diz, estou a ouvir.
- De deixar o destino seguir o seu caminho.
- O destino tem um caminho?
- Então, não tem?
- Pensava que o destino fosse o caminho.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

A memória do ar (30)

Nikolay Dubovskoy, Calm, 1890

Quando, cansado de deambular pela vastidão da Terra, o vento abandona os seus trabalhos, o ar permanece fiel ao desejo imemorial de imobilidade. Tudo se suspende, as águas do rio, a viagem das nuvens, a inquietação da noite, o pulsar da morte na fímbria do coração. 

terça-feira, 14 de maio de 2024

Geometrias de fogo (30)

Paula Rego, Contos populares portugueses, 1975 (Gulbenkian)

Há no fogo uma beleza rude, o exercício de um fascínio arcaico, a promessa de uma grande espectáculo. As labaredas dançam e o espírito deixa-se contaminar pela variação e mudança que elas, como um velho dragão, sopram sobre o mundo. Tudo muda, pensa-se, enquanto o fogo permanece firme na sua impermanência.

domingo, 12 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (7)

Camille Corot, View of Marino in the Alban Mountains in the Early Morning, 1826 – 1827

Um hálito de lume na cidade

desce sobre o rio, sobre os jardins

tocados pelo sopro do crepúsculo.

Desce sobre o tempo da memória.

 

Fogos de Primavera ardem céleres

nos recantos da noite, nos lugares

onde os corpos dançam no orvalho

trazido pelos braços da incúria.

 

Desenho no papel um fogo mortal,

os jardins inflamados da cidade,

corações desprezados, sem morada.

 

Esquecido do nome, vou na noite

e danço no orvalho incendiado

pelo fogo fremente da aurora.

 

Maio de 2024


sexta-feira, 10 de maio de 2024

Haikai do Viandante (436)

Otto Scharf, Waldbach, 1902

Água rasga a terra.

Promessas de luz e sombra

soltam-se no rio.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

A sombra da água (30)

Albrecht Dürer, Study of water, sky and pine trees, 1495-6

Era uma água tornada sombra, animal que se metamorfoseia para se confundir com o ambiente. Esconde-se para evitar os monstros do dia e ser esquecida pelos fantasmas da noite. Água perdida na errância, esquecida do caminho que da terra leva ao oceano.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

O Espírito da Terra (30)

Dórdio Guimarães, Paisagem alentejana (Évora), 1941

Uma paisagem iluminada pelo sol. No diverso das cores, manifesta-se uma sabedoria arcaica, aquela que, sob o império do espírito , determina o lugar das coisas, o espaço dos animais, as possibilidades dos homens sobre a Terra.

sábado, 4 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (6)

Júlio Resende, sem título, 1952

Remota Primavera dança dentro

dos meus olhos cerrados, no ardor

daqueles dias sem nome e nas noites

tocadas pelo vento cru do sangue.

 

Entardece o esplendor daquelas horas

varado pela espada da cegueira.

Uma sombra trespassa o coração.

As palavras refluem no silêncio.

 

Danço na noite pálida do sangue

e ergo a Primavera na fogueira

dum jogo de palavras sem pudor.

 

Levanta-se a espada dessas horas.

Trespassado e vil, o corpo cai

sem amparo na fenda fria da noite.

 

Abril de 2024


quinta-feira, 2 de maio de 2024

Signo sinal 17. Fim do mundo

Juan José Aquerreta, Amor en el fin del mundo, 1991
Pode-se pensar em palavras monstruosas ou em impulsos tresloucados provenientes de um coágulo sanguíneo. Pode-se meditar na força da gravidade e no seu poder de esmagamento ou na violência idiomática da guerra. Aí haverá sempre o signo do fim do mundo, desse evento que rasgará o silêncio das planícies e aniquilará a saliência das montanhas. Se do amor houver sinal, então um outro mundo começa a despontar com um manto de auroras e a promessa de cascatas caindo para o lago do futuro.

terça-feira, 30 de abril de 2024

Impressões 117. Oceano

Gustave Le Gray, Seascape with Sailing Ship and Tugboat, século XIX

O oceano é uma planície tocada pelo vento. Nela não há searas que anunciem o pão, nem vinhas para vindimar com a promessa de um vinho novo, nem os grandes pomares que tragam frutas maduras para a ânsia de as saborear. Ali, apenas cresce a inquietação ou a sombra que anuncia a grande indústria do temor e o comércio da perdição.

sábado, 27 de abril de 2024

Micronarrativa (65) Um deus na tormenta

Sebastião Salgado, Oil wells firefighter, Greater Burhan, Kuwait, 1991

Um fogo magnético eleva-se do fundo da terra. Atrai com as suas chamas ascensionais os seres celestes, que, espantados, olham a inconstâncias das chamas. Preso na sua solidão, um homem desloca-se, com a lentidão de um deus, para o centro da tormenta. Traz nele a sabedoria do hábito e a inspiração que a hora exige. Está na argúcia das suas mãos o poder de devolver o fogo à caverna de onde o acaso da natureza ou a impotência dos homens o deixou escapar.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (5)

Anny Heimann, Im Garten, 1906

Tarde de tempestade anunciada

na negrura dos céus de anil e chumbo.

O calor prende os pássaros nos ramos

de árvores tolhidas no sol de Abril.

 

Um vento no silêncio do crepúsculo

abre as avenidas aos rumores,

ao desejo da memória, ao incêndio

dos dias de fantasia primaveril.

 

A chuva prometida que não cai.

O soar do trovão no trem da tarde.

O enigma dos pássaros de cinza.

 

A vida na memória se recolhe

aberta ao desejo de quem canta,

fechada ao fulgor da noite fria.

 

Abril de 2024

terça-feira, 23 de abril de 2024

O sal do silêncio (113)

Augusto Gomes, sem título, 1953 (Gulbenkian)
A mulher senta-se na areia, a vastidão do oceano entra-lhe pelo olhos e toca-lhe o coração, abrindo-o ao medo da desmesura. Inquieta, entrega-se na pedra do silêncio, enquanto o sal das águas cintila como uma mensagem viva na terra morta.

domingo, 21 de abril de 2024

Diálogos morais 65. Raízes

Unknown, Cypress Trees on Side of Roadway, 1912

- É estranho ser um cipreste.
- Não mais do que ser qualquer outra árvore.
- Usava apenas a nossa situação como exemplo.
- Exemplo de quê?
- Vivemos ao lado de uma estrada onde as coisas se movem, mas nós somos imóveis, estamos presas pelas raízes.
- Estarmos ancoradas na terra, será uma prisão?
- Não é uma prisão? Como podemos acompanhar quem por aqui passa?
- E quem aqui passa estará seguro do seu lugar? 
- Pode ir a onde queira.
- E nós ficamos a onde pertencemos. Temos raízes.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Pintura e haikus (39)

Fernando Calhau, sem título #80, 2000 (Gulbenkian)

Tinta sobre tinta,

desespero de cinzentos,

entre branco e preto.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (4)

Lucas Van Valckenborch, Animals Grazing beneath Trees, 1573

Sigo pela vereda junto ao rio,

os campos do Inverno se despedem.

Viandantes sem nome, extasiados,

olham o despertar da natureza.

 

A vida rude anima o turbilhão

das águas que procuram o caminho.

Depois dos rios, um mar as aguarda.

Levam a voz dos campos, luz e cal.

 

Olho o longo adeus, oiço calado

o rufar dos tambores na voz quente

dos pássaros do Sul, junto ao rio.

 

A súbita memória do Verão

incendeia de luz rios e campos,

um fogo de água arde frio no mar.

 

Abril de 2024


segunda-feira, 15 de abril de 2024

Meditação breve (194) Ler e escutar

Manuel Filipe, Leitura clandestina / Audição clandestina, 1945 (Gulbenkian)

Toda a autêntica leitura terá um traço de clandestinidade, pois ler é ir para além da letra e procurar sem descanso, em morada abscôndita, o espírito que por ela fala. Ler é quebrar as regras do explícito e mergulhar no oceano do implícito, inventar-lhe sintaxes e semânticas que toquem aqueles que, oculto no segredo, escutam.