terça-feira, 10 de outubro de 2023

Signo sinal 14. Mêlée

Júlio Pomar, Mêlée, 1968

Os corpos incautos perdem-se no combate, misturando-se braços e pernas, o sangue que escorre das feridas abertas pelo desejo de superação. Antes de suplantar o adversário ou de vencer o inimigo, há que defrontar-se a si mesmo, fazer um pacto e estabelecer um longo armistício. Nessa hora, o adversário desaparece e o inimigo, descobre-se, não passa da figuração do medo que há dentro de si. 

domingo, 8 de outubro de 2023

No limiar (11)

José Manuel Espiga Pinto, Mapa marcado com rasgão para entrada na sala de projecções simultâneas, 1973 (aqui)

O mundo coagulado oferece-se, como uma vítima no holocausto, ao cutelo do mapa. Este suspende a realidade do território, mantém-na num estado onírico, roubando-lhe a consistência, despindo-o dos acidentes e das linhas de fractura ou dos pontos de encontro, onde se reúnem a água de rios e lagos, a terra de lezírias e charnecas, os ares vindos das montanhas ou fugidos das tempestades oceânicas. Um mapa é como uma droga alucinogénica, cria imagens a que nada corresponde, apaga o que existe na quimera cintilante do que não existe. Espera a benevolência do fogo para, reduzido a cinzas, deixar emergir do nada a realidade viva.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Espírito da Terra (27)

Louis Eysen, The Earth Pillars by the Schalderer Bach near Vahrn, 1878

Também a Terra assenta em poderosos pilares, não de cimento ou nascidos na rocha dura, mas mais fortes e resistentes que o diamante. O espírito, na sua constância inconstante, é a matéria de dos pilares da Terra. Invisíveis na sua presença, invisíveis no seu ser, eles erguem a Terra e não a deixam afundar no abismo eterno. São o espírito da Terra.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Sonetos de Outono (2)

Georges Rouault, Automne, 1936

Ó pura ascese destes dias de sombra.

Ó pura glória do devir sem mácula.

Corro outonal pelo desvão do tempo

e canto livre das mágoas da vida.

 

Uma elegia flutua na voz do vento,

toca na pele das mulheres nuas,

toca a suave nostalgia da morte

com a ciosa luz do puro amor.

 

Deixo aos anjos o reger dos dias,

o vão cuidado com a vida breve,

as horas presas em sombrio silêncio.

 

Busco na boca das mulheres sôfregas,

incendiadas no furor do fogo,

a água morta do meu sangue vivo.


2023

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

A memória do ar (20)

Felix Vallotton, Landscape in the Jura Mountains near Romanel, 1900

O ar puro das montanhas repousa sobre o solo incerto. É uma promessa para o viandante perdido ou para os pastores cansados de guiar os rebanhos no Inverno. Na sua transparência, vêem-se os desejos que tocam o coração dos homens e os anseios que lhes fervilham no peito. 

sábado, 30 de setembro de 2023

O sal do silêncio (105)

Francis Bott, Cathédrale, 1975

As catedrais nascem do silêncio que ronda o mundo. Erguem-se em geometrias de pedra e rompem a linha do horizonte, para que se veja mais além, para que o além, em formas de línguas de fogo, venha e seja na terra, o sal selvagem do vento que sopra onde quer.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Geometrias de fogo (20)

Johan Christian Clausen Dahl, The Eruption of Vesuvius in December 1820, 1826

Vindo do centro da Terra, o fogo dança na boca do vulcão. Ao longe, ouve-se o ronco ameaçador de uma canção de desespero. Espera-se, no silêncio das noites e na luz de cada dia, que o deus adormeça e o trabalho da sua oficina sossegue, para que os pássaros cruzem os céus e os homens lavrem a terra.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Sonetos de Outono (1)

George Morland, Peasants in front of a Hut, ca. 1790

Um doce frémito anuncia o tempo

onde o vinho correrá nas bocas

e o silêncio como sombra amena

virá solícito sarar as mágoas.

 

As folhas secas são sinais de morte,

signos etéreos de uma vida a vir

entre a dança das violetas trémulas

e o desejo frio de corpos pálidos.

 

Longe, o Inverno apressado marcha

com passos rudes e prenúncios negros.

Tudo estremece no cansado mundo.

 

Alegres, castos, elevemos cálices

de vinho puro, a vida flui nos lábios

e o coração fulgura vivo e ávido.


2023

 

domingo, 24 de setembro de 2023

Pintura e haikus (34)

Meyer Schapiro, Abstract Landscape, 1971
 A canção da terra
da Primavera ao Inverno.
Quatro estações.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

O sal do silêncio (104)

Giovanni Segantini, Alpine Landscape at Sunset, 1895 – 1898

O silêncio da montanha reverbera ao pôr-do-sol. Desce lentamente dos picos mais elevados, toca, com mãos de veludo, as encostas e cai envolto em sombras sobre os pequenos planaltos onde cintila o sal da mais pura das águas.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

A sombra da água (20)

Andreas Achenbach, Storm at Sea off the Norwegian Coast, 1837

Espuma de tempestade, ondas de revolta, o império da água mostra as suas garras, impenitente e impiedoso. Ensurdecido com o seu grito, não escuta o ruir dos rochedos nem as orações dos homens. Vai e vem, como se toda a paz fosse um perjúrio, como se toda a tranquilidade, uma traição.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Sulcos de Verão 12

Ernst Ludwig Kirchner, Fehmarn houses,1908

Voraz, adormece o Verão,

entrega-se à sombra das folhas,

ao secreto pulsar da sede.

 

A terra ao céu pede água,

um clamor surdo no deserto,

o frio desejo das florestas.

 

Deixemo-nos contaminar

pelas promessas de Outono,

pelo pão e o vinho nas bocas.


Setembro de 2023

 

sábado, 16 de setembro de 2023

No limiar (10)

António Sena, Pintura, 1972
A lenta crispação da matéria estrutura pequenas barreiras, como se fossem dunas ainda na infância, ou os primeiros traços que a criança deixa nas paredes da casa. Ainda se está longe da matéria organizada que dá vida a estrelas e planetas, mas há muito que grandes nuvens de poeira prometem, na obscuridade sem fim, tornarem-se em galáxias que se arrastarão pelo vazio, criando espaços e polvilhando o negro com pétalas de luz. Soltam-se os primeiros sons, abrindo um longo caminho para que nasçam os ouvidos que os possam escutar. 

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Signo sinal 13. Uma fraca argila

José Manuel Espiga Pinto, Brincando com o «Cavalo de Tróia», 1983

Celebra-se no Cavalo de Tróia a astúcia de Ulisses, mas a hermenêutica do acontecimento não deve ficar pela superfície. A astúcia do inimigo é concomitante com a cegueira que o desejo de novidades faz cair sobre nós. O Cavalo de Tróia é o signo de uma queda perante os artifícios que exploram a fraca argila da nossa faculdade de desejar.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

A memória do ar (19)

Egon Schiele, Arboles otoñales, 1911
Os Outonos nascem dos ares que vagueiam pela Terra. Levados pelo hábito, os homens chamam-lhes ventos, se agressivos, vendavais, mas o ar, esse elemento esquivo, de textura subtil, é como um espírito livre, sopra onde quer, fecunda o que se abre para a surpresa da sua passagem.

domingo, 10 de setembro de 2023

Sulcos de Verão 11

Vincent van Gogh, Paisaje cerca de Auvers bajo la lluvia, 1890

Chuvas de Verão sobre a terra

são memórias vindas do céu

para revigorar os dias.

 

Os homens parecem perdidos,

incapazes de olhar as águas,

incapazes de gratidão.

 

Caminho descalço no campo,

os pés enlameados riem

e eu sonho-me na infância.

 

Setembro de 2023 

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Geometrias de fogo (19)

Joan Miró, Pintura sobre fondo blanco (El pájaro de fuego), 1927
O fogo é um pássaro branco a cintilar no horizonte. Abre as asas sobre campos e florestas e cobre com o seu discurso de dor as paisagens maceradas pelo Estio e as sombras sedentas do ardor da aurora primordial.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

O sal do silêncio (103)

Manuel Botelho, Areia e Sal – Igrejas Silenciosas, 1987
Acende-se o candelabro das velhas devoções e o silêncio entra por dentro das igrejas esquecidas e das almas torturadas pelo ferrete da desordem de cada dia. Lá fora, o sal do tempo corrói os metais vis e dá vida efémera aos cristais trazidos pela aurora de novos mundos.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

A sombra da água (19)

Piet Mondrian, Farm with trees and water, 1906

Água de ambrósia envolta no âmbar do acaso. Assim, arrastado pelo ritmos da assonância, pensou o poeta a essência obscura da vida, pois nesta tudo é um fluir ora delicado, ora tempestuoso, como se fosse a sombra de um cedro no Verão ou o cio primaveril de um animal divino.

sábado, 2 de setembro de 2023

Sulcos de Verão 10

Lucio Muñoz, Septiembre, 1985

De súbito, chegou Setembro

maculado por velhas sombras,

pelo carvão da nostalgia.

 

A cal das paredes recebe

a ondulação fria da luz,

o lamento triste do tempo.

 

A música do vento ecoa

pelas ruas cobertas de sílabas,

quase orações, quase silêncios.

 

Setembro de 2023

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Impressões 112. Entre ruínas

Dmitri Kessel, A man walking through the remains of an ancient temple in Athens, 1944
Um homem passeia entre ruínas. Absorto, mergulha nas sombras projectadas pelas pedras do passado. Uma esperança toca-lhe o coração, um desejo prende-o ao lugar. Espera que um deus tenha uma reminiscência e, por um súbito impulso, volte ao templo onde terá sido cultuado e se manifeste, para que ele, passeante incansável pelo rumor de outros tempos, realize o seu desejo e descubra a vida verdadeira que a época que lhe foi dada para viver esqueceu.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Pintura e haikus (33)

António Areal, sem título, 1961 (aqui)

Paisagens incertas
polvilhadas de espectros.
Vozes sem palavras.

domingo, 27 de agosto de 2023

Meditação breve (191) Uma sombra delida

Joaquín Torres García, Carnaval, 1897-98

Não há procissão de Ménades, nem estas se entregam ao culto do deus, mas o Carnaval ainda contém uma reminiscência dionisíaca, agora submetida ao cálculo do prazer, sem o rumor do sagrado nem traço de função cívica. Uma tão delida sombra nem chega a despertar o sobressalto de Apolo.

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 9

António Dacosta, Sonho de Fernando Pessoa Debaixo de uma Latada numa Tarde de Verão, 1982 (aqui)

O Verão ainda caminha,

suspenso na altivez dos dias,

preso pelo sisal das horas.

 

Distribui sonhos e promessas,

rosas pelo Jardim do Éden,

fantasias que não cumprirá.

 

Abrigo na cinza da sombra

pensamentos nunca pensados,

palavras de amor nunca ditas.

 

Agosto de 2023

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A memória do ar (18)

Theodor und Oskar Hofmeister, Elbstrand im Schnee, 1897

A devastação de Inverno liberta o ar da sua submissão ao sopro do Sol. Corre, então, frio e seco sobre paisagens desoladas, rasurando as suas histórias, para que outras e mais tentadoras sejam possíveis. Onde se suspeita a desordem por ele introduzida, deve-se também crer que haverá outro mundo que florirá quando a Primavera, com os seus imperativos, voltar.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

No limiar (9)

Lourdes Castro, Sombra Projectada de Marta Minujín, 1963

Tudo começa como um esboço e este é já uma promessa daquilo que ultrapassará a fronteira que divide o mundo possível do mundo real. Depois, o esboço transforma-se em sombra ténue, primeiro, e, paulatinamente, em sombra cada vez mais densa, como se procurasse a fonte luminosa que a criou e a ilumina para que possa subsistir. Ultrapassado o limiar, abandonados os espaços imponderáveis onde os corpos são pensados para se entregarem à dimensão sensorial que os há-de acolher, um novo ser emerge, pleno de glória que o tempo haverá de apagar.

sábado, 19 de agosto de 2023

A sombra da água (18)

Jacob van Ruisdael, Wooded Landscape with Waterfall and Approaching Storm, c. 1655 [Städel Museum, Frankfurt am Main]

Toda a água contém em si, como uma sombra nascida no princípio do tempo, uma inclinação para a tempestade. Umas vezes, o tempestuoso reside na própria água. Noutras, são elas que o chamam, para que, negro e ameaçador, traga cerzida na desordem a anunciação de uma nova ordem.
 

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 8

Modesto Urgell Inglada, La fiesta mayor, procession

O vento do Norte reparte

as ninfas por fontes e rios,

traz aos dias os velhos mitos.

 

Agosto abre-se aos rumores

de festejos e procissões,

brilham os santos nos altares.

 

Desço a escadaria do tempo.

Sob a névoa de calor vejo

a luz de cada devoção.

 

Agosto de 2023

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Geometrias de fogo (18)

Helmut Middendorf, Elektrische Nacht, 1979

Como num perpétuo inferno, seres humanos mergulhados num destino de trevas entregam-se ao flamejar ansioso das labaredas nascidas no fundo obscuro do coração. Dançam homens e dança o fogo, a realidade contorce-se em geometrias de abandono e insignificância, o desespero move-se pelo território que recebeu em herança. Tudo arde.

domingo, 13 de agosto de 2023

Signo sinal 12. Águas pluviais

Hugo Canoilas, A água da chuva a cair nas bacias oceânicas,2020-2022 (aqui)

Os símbolos sulcam as pradarias oceânicas, onde rebanhos de animais vorazes aguardam as águas pluviais. Esperam delas a pureza decantada na atmosfera, o doçura que equilibrará o excesso de sais e dará um rumo aos que se perdem nos signos dos tempo ou nos sinais de novos mundos.