quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (48)

Lord Snowdon, Svetlana Berisova, 1957
No instante em que a bailarina atingiu o ponto mais elevado, antes que a gravidade lhe roubasse o desejo de ser ave e a devolvesse a terra, a música parou. A sala ficou suspensa e o tempo formou um casulo intemporal onde o corpo daquela mulher-pássaro permaneceu estático, pura imobilidade, movimento tocado pelo sal da eternidade.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 17

Gioacchino La Pira, Veduta di Capri al chiaro di luna

As águas retêm o murmúrio e deixam que o grande manto do silêncio cubra o mundo. Então, a Lua desce do seu pedestal etéreo e aproxima-se da Terra. A sua luz funde-se no silêncio. Quem, escondido e incógnito, observa o mistério não sabe se está perante um silêncio luminoso ou uma luz silenciosa, apenas abre o coração para que seja tocado pelo que acontece e os sinais desçam no seu ser, o revolvam e inscrevam nele o poder de caminhar sobre as águas e de discernir aquilo que é daquilo que não é e nunca será. 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 63

Maxfield Parrish, Winter Sunrise, 1949
O frio trazido pelas aves
da madrugada
cai sobre o rumor dos campos.

A luz anuncia-se e solene
cobre os cumes
abertos ao mistério do dia.

Na volúpia do acordar
abro os braços
e ato-os ao êxtase da aurora.

Janeiro de 2021

domingo, 24 de janeiro de 2021

Impressões 71. A longa espera

Alfred Stieglitz, The Street, Fifth Avenue, 1900-1901

A longa espera é um exercício destinado à provação da paciência. O dia gélido, a neve pelo chão, o céu de chumbo. A cidade parece entregue à dura dolência do sono. Nas ruas, apenas sonâmbulos caminham sem destino, sem saber onde estão, sem um desejo que lhes anime as vontades. Em fila, homens e animais esperam e essa espera é todo o seu ser e todo o seu mundo.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Haikai urbano (65)

Marcel Dieulafoy, Basílica da Estrela, anterior a 1913

As torres da Estrela
erguem-se aos céus de Lisboa.
Coração tão trémulo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Diálogos morais 55. Sobre a cidade

Alfred Eisenstaedt, View of Los Angeles by night from the hills above city, 1936

- Não admira que se percam.
- É verdade. O excesso de luz cega-os.
- A noite é tempo para descansar.
- Eles já não sabem o que é isso.
- Andam por ali levados por um movimento sem fim.
- O coração fica tolhido.
- Pior, a vontade perverte-se e está sempre a suceder o pior.
- Estás a ver aquela rapariga, ali à direita.
- Parece exausta e o que pensa não é o melhor.
- Vais tu ou vou eu?
- Ambos, pois um já não tem poder para a salvar.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (47)

Johann Wilhelm Cordes, Nach dem Sturm, 1855
Depois da tempestade vem o silêncio com o seu sal dourado para salgar o mar e libertar os estranhos monstros que o tempo aprisionara na recôndita caverna escondida no fundo oceano.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 62

Claude Monet, Road to Louveciennes, Melting Snow, Sunset, 1870
O silêncio vem no alvoroço
do crepúsculo, nos ramos
das tílias,
na luminosa humidade
da relva a sangrar pela cidade.

Anjos de cetim pisam sombras,
se a tarde se inclina
para a mudez
nacarada das tuas mãos
erguidas na imensidão do poente.

Janeiro de 2021

 

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Meditação Breve (148) Espanto

Fred Herzog, Lucy, Georgia, 1968

Sobre a banalidade da vida e o curso normal do trânsito, um olhar anuncia o espanto, não esse espanto que conduz à casa da sabedoria, mas um outro que espelha o terror que nasce perante a decepcionante trivialidade do real.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Impressões 70. Canção da Terra

Rafael Estrany, Cursa de cavalls
O troar dos cascos pelo chão, o galope desenfreado em busca do destino, os gritos de incitamento dos jóqueis, o ulular dos espectadores, tudo isso se abre como um movimento ondulante de uma melodia arcaica e poderosa, uma canção da Terra erguendo-se para o mistério do céu.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Pintura e haikus (21)

Amadeo de Souza-Cardoso, Castelo, 1911
 Um casto castelo
de inocente geometria.
Visão que se abria.

sábado, 16 de janeiro de 2021

O desejo

Yale Joel, Ribbon Hats, not dated
Encontrei as quatro pela primeira vez num café. Estavam todas juntas e segredavam entre o chá e risinhos de cumplicidade. Havia nelas beleza e mistério. Procurava-as e sempre as encontrava. Discretamente, foram-me atraindo. Como um pássaro inconsciente deixei-me ir. Por vezes, permitiam-me partilhar algum tempo com elas. Eu não amava nenhuma, mas desejava-as a todas. Até que um dia me prenderam e disseram-me: sentimos bem o teu desejo. Tens de escolher uma de nós, mas depois terás de enfrentar a fúria das rejeitadas. Senti a morte próxima. Valeu-me a presença de espírito e o pendor para aceitar o mal menor. Respondi que não rejeitaria nenhuma, mas casaria com aquela que um sorteio ditasse. Não posso dizer que seja um casamento feliz.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 61

Jorge Barradas, Casario – Barquinha, 1922
Havia palavras como cântaros
e infusas, uma laranjeira
perdida no centro do quintal,
pequenos caminhos de tijolo,
um poço onde se escondiam
tesouros e mouras encantadas,
a água escura na luz da tarde.
Os dias nasciam e declinavam
ao som do bronze dos sinos
e todos os meus desejos
levitavam no lume da inocência.

Dezembro de 2020

 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (46)

Johann Jungblut, Land folk on a frozen river

Nos dias gélidos em que os rios se tornam lençóis de vidro translúcido, mesmo se caminham lado a lado, dentro da paisagem invernal, os homens ensimesmam-se e fazem do silêncio o sal que lhes tempera a alma, como se rememorassem outros mundos onde nunca estiveram, mas que sonham nas noite em que a neve cai e os lobos uivam ao longe.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Histórias sem nexo 22. Festa

Francisco Bores, Personages à table, 1955

Os figos da figueira foram-se. No faval, febris as favas ficaram feiosas. Uma fada fadou a Fátima, que de felpuda fatiota falou: Ó Fernando, que falta de fé, filho. Finaram-se os figos, finaram-se as favas. A febre as fez, a fome os fanicou, farfalhou feliz a Felicidade. Uma festa.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Diálogos morais 54. A rainha da Primavera

Yale Joel, Salesman is demonstrating a spring hat, 1962
- Magnífico, fica-lhe muito bem.
- Tem a certeza?
- Repare, olhe para o espelho.
- Sim, sim, eu olho.
- Vai ser a rainha desta Primavera.
- Tem a certeza?
- Já viu como combina com os seus olhos, o tom da pele.
- E serei a rainha desta Primavera?
- Claro. Não uma mera princesa, mas a mais bela rainha da Primavera.
- Então, não quero o chapéu.
- Não quer?
- Não. A Primavera passa depressa.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 16

Johann Anton Castell, Romantisches Lagerfeuer im Mondschein, 1850

Noite de lua cheia, fogo e mar. Três figuras de mistérios e uma de iluminação. Os grandes mistérios da noite, do oceano e da lua, com a sua luz tamisada, crescem dentro do coração de homens e mulheres. O temor da noite, o murmúrio das águas, a secreta vibração da lua, tudo isso se esconde no mais recôndito da alma, enquanto o fogo traz o calor e a luz que iluminando a tudo vela. E assim nasce o amor com os seus jogos nocturnos, preces lunares, rumores marítimos, como se fosse um fogo que arde sem se ver.

domingo, 10 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 60

Max Ernst, El bosque embalsamado, 1933
O bosque de cedros e ciprestes
fecha-se no silvo do silêncio,
uma vidraça de verde
sob a inclemência das chuvas.

Uma mulher atravessa a praça,
leva o enxoval da vida
preso num saco de compras,
entra no limbo da lavandaria.

A vida saltita como uma rã perdida
nas águas paradas do charco,
coaxa no tumulto da tarde
e espera no enigma do calendário.

Dezembro de 2020

sábado, 9 de janeiro de 2021

Meditação Breve (147) Esfinge

Frank Eugene, The sphinx of Giza at midnight, Egypt, 1901

Ali, onde a encontraram, ela vê passar o tempo. Perdeu já a conta aos dias e às noites, às horas em que, imóvel e presa na pedra, contempla o horizonte. Da boca nunca se desprendeu uma palavra, mas nunca deixou de falar, pois a sua voz é a do silêncio. Não tem enigmas a propor aos mortais perdidos na viagem, pois ela é o próprio enigma onde se oculta o mistério do homem.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Impressões 69. Ataque de lanceiros

Eugène Atget, Le Château, fin Octobre, le soir, effet d'orage,  1903

De súbito, a tempestade aproxima-se com o seu exército de lanceiros. Ouve-se o galope dos cavalos e o troar dos gritos que incitam ao combate. Grande bátegas de água, raios e coriscos iluminados pela rapidez do relâmpago são lanças ferinas que se abatem sobre a esquadria silenciosa e pura da razão humana. 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (45)

Ernst Ferdinand Oehme, Procession in the fog, 1828
O aroma do silêncio desprende-se do nevoeiro. Os homens caminham em procissão para um destino que não vêem e não conhecem. Guia-os o sal da própria voz que se solta da mudez e se eleva em espirais de névoa ao azul onde repousam os astros esquivos da madrugada.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Meditação Breve (146) Ao crepúsculo

Caspar David Friedrich, A Walk at Dusk, 1832-35

O crepúsculo acolhe o solitário que caminha, não porque este tenha um destino, um lugar onde alguém o espera, mas porque o espírito encontra aí a sua hora, nesse momento indeciso entre a luz e as trevas, nessa metáfora sempre viva de toda a condição humana.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 59

Lowell Birge Harrison, Christmas Eve
O Natal consumou-se
entre o fogo do desejo
e a esperança
tocada pelo cristal
das esferas celestes.

Os dias voltam a crescer
e a natureza cuida
que uma rosa
de vinho se abra
na água do silêncio.

Dezembro de 2020

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Histórias sem nexo 21. Tresa, a trambiqueira

Albert Gleizes, Busto de mulher, 1920
Tresa, a trácia, trocou as trindades pelo trono. Uma treda, uma trêfega traidora. Troviscou sobre os trevos, as trufas e o tráfego. Um truão, no trovejo, troou: Tresa, ó trouxa da Trácia, truca, truca, senão troco-te, ó trambiqueira que te trombicaste.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Haikai do Viandante (406)

Erik (Dorn) Bodom, Høyfjell, 1871

As águas repousam
entre murmúrios de luz.
No céu, sombra e pássaros.

sábado, 2 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (44)

Stanisław Witkiewicz, Mountain wind, 1895

O vento é a voz do silêncio. Umas vezes, leve e suave, um murmúrio na aurora. Outras, desabrido e cortante, um sermão pela tarde. Outras ainda, irado e tempestuoso, um pesadelo na noite. Se o coração não se cala, o silêncio não pode emudecer.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 15

Edwin Deakin, Campfire in the Redwoods, 1876
Na floresta, uma fogueira ilumina a noite. Os olhos perdem-se na dança das labaredas, o coração bate compassado e tranquilo, as vozes silenciam-se, enquanto o espírito desce pela corda da memória, de uma memória bem mais antiga e funda do que a de cada um, e mergulha num tempo em que o fogo era a imagem divina, protectora e irada. E nessa memória, cada um pressente, no silêncio da noite, a verdade que se abriga no crepitar da madeira e na inconstância do lume.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 58

Adolf Gustav Schweitzer, Winter Landscape with Brushwood Gather
Dezembro veste-se de vésperas
e deixa os pés pisar
a cal dos caminhos.

Passa entre ruas antigas
e escuta a voz
dos que ali fizeram morada.

O fumo do passado rumoreja
em volutas de seda,
em céu de brancura azul.

Dezembro arrasta o peso dos dias
e traz uma estrela
para cintilar no ano que há-de vir.

Dezembro de 2020

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Acerto de contas

Richard Stacks, A Drink in the Rain, 1955

Reparei nela no momento em que, sob chuva forte, parou defronte da pequena coluna de pedra, dela fez brotar a água e, como criança afogueada, a bebeu. Senti uma incongruência inexplicável e segui-a. Inventava caminhos que desembocavam noutros, que, dados alguns passos, afluíam ainda noutros. A certa altura, percebi que entrara num labirinto e que apenas podia confiar em que ela conhecesse a saída. Chegada a uma pequena praça muralhada, parou. Aproximei-me. Perguntou-me: não me conheces? Não, respondi. Uma vez dei-te um fio de lã em troca do teu amor. Salvaste-te do terrível labirinto e abandonaste-me. Agora devolvo-te a promessa de amor e levo comigo o fio. Como saí dali e posso rememorar a aventura, não o sei.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Impressões 68. Xadrez sob azul

Noronha da Costa, Composição Azul, 1970
Sobre o tabuleiro de xadrez da existência paira uma névoa de azul. Debaixo do véu, personagens compõem um drama feito de reis e rainhas, cavalos à desfilada e torres por conquistar. Os bispos abençoam os pequenos peões que nunca chegarão aos estribos do cavalo para, com a sua lança de água, matarem de sede o rei ou, numa súbita metamorfose, se tornarem diligentes rainhas.