sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Meditação Breve (108) O peso do passado

Gertrude Käsebie, Indian Chief, c. 1901
Sempre que se olha pausada e longamente para o futuro, o que dá profundidade e exactidão ao olhar é o peso que o passado deposita nele. Sem uma tradição, os olhos perdem-se na superfície móbil da existência e são incapazes de perscrutar o amanhã.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O sal do silêncio (24)

Paul-Emile Pajot y Gilbert Pajot, A Concarneau, va- et- vient des bateaux de pêche
Feitos da matéria dos sonhos, os barcos deslizam nas águas. Vão e vêm, empurrados pelo vento, sonhados por sonhadores dedicados, que se entregam ao sono durante o dia, para que os pescadores não desesperem retidos em terra, sem que um sonho lhes mova a embarcação.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (736)

Manuel Viola - Ardiendo (1973)
738. um fogo no pórtico

um  fogo no pórtico
a sombra
ergue-se
na erva do estio
e adormece
na água da aurora
no silvar das cigarras

(29/12/2016)

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Transfiguração

Giovanni Segantini, A messa prima, 1884-85
Era o mais popular dos sacerdotes que a paróquia já tivera. Todas as manhãs, bem antes da primeira missa, subia as escadas da Igreja e abria-a. Aos pobres, dava o que tinha. Vivia com pouco, apesar do muito que lhe davam. Aos ricos, ajudava-os a suportar o fardo do egoísmo, abrindo caminhos insuspeitados nos seus corações. Não havia quem não gostasse dele. Num domingo, porém, não o viram subir as escadas. A porta da Igreja, chegada a hora da missa, estava fechada. O tempo passava. Procuraram-no em casa. Não estava. Forçaram a porta do templo. Por trás do altar, ele pendia, sotaina a escorrer sangue, de uma cruz tosca. O rosto era o dele, mas nunca se parecera tanto com Cristo como naquela hora.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Micronarrativa (24) Aprendizagem

Stephan D. Colhoun, Laughing woman with a cup, around 1955
Não conteve o riso e explodiu numa gargalhada. Não sei o que mais me feriu, se o riso ostensivo, se o seio que, com o ímpeto, se desvelou. O som dessa explosão ecoou durante muitos anos dentro de mim. Talvez fosse apenas a voz da sabedoria que descia sobre mim. Naqueles dias, ainda não sabia quão ridículo é todo o amor.

domingo, 18 de agosto de 2019

Haikai do Viandante (377)

George Pierre Seurat, A Gray Day at the Grande Jatte, 1888
Cinzas matinais
caem nas águas do rio.
Voa o Verão.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Impressões 38. Memórias ancestrais

Martin Munkacsi, The Rent-Barracks, Budapest, c.1923
Por vezes, somos transportados para a infância. Como num sonho onde se é levado para o paraíso, damos os mãos e fazemos uma roda. Ao rodopiarmos cada vez mais rapidamente, uma música desprende-se das esferas celestes e escutamos velhas canções nascidas há muitos séculos. Sabemos cantá-las, pois em cada um de nós vive a memória ancestral da humanidade.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (735)

Mordecai Ardon - Anywhere (1971)
735. o odor do outono

o odor do outono
desfaz-se em
folhas mortas
cobertas
de paixões
e pavores
extenuadas
pelo ramalhar
do plátano ao poente

(29/12/2016)

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Haikai urbano (49)

Alfred Stieglitz, Reflections, Night–New York, 1896
Sombras do passado
caem no silêncio da noite.
Secreta cidade.

domingo, 11 de agosto de 2019

A desaparecida

Edvard Munch, Summer Night´s Dream (The Voice), 1893
Caminhava devagar nas noites de Verão. O calor impelia-a para a rua. Só assim, dando um passeio, o temor se aquietava. Era o que dizia. Talvez não passasse de uma mera justificação. Se o não fizesse, acrescentava, a noite seria atormentada por um sonho, onde uma voz desconhecida, vinda da escuridão, chamava por ela. Mal o Verão começava, ela, temerosa, dava o seu passeio, que suspendia no primeiro dia do Outono. Estes passeios terão demorado uma década. Começaram pelos quinze anos e continuaram até ao seu desaparecimento. Numa noite quente de lua nova, saiu como habitualmente. A certa altura, todos na aldeia o confirmam, ouviu-se uma voz estranha chamar por ela. Não tornou a aparecer.

sábado, 10 de agosto de 2019

Meditação Breve (107) Conferências

Albert Bloch, Conference, 1951
Esses lugares sórdidos onde se manifesta o que se esconde por detrás das máscaras sociais. Mundos de onde a verdade foi excluída, a justiça expulsa, a beleza afastada e o bem escorraçado. Ali, nenhuma luz penetra, apenas o odor sulfuroso onde as trevas preparam o inferno que desaba sobre os homens.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Meditação Breve (106) A flauta de Eva

Henri Rousseau, La Encantadora de serpiente, 1907
Como tudo seria diferente se Eva fosse uma encantadora de serpentes. Em vez de se deixar encantar por elas, tocaria a sua flauta, todas se lhe renderiam e as suas pretensões seriam subjugadas no fluxo infinito das notas musicais. Em vez de expulsos do paraíso, os homens viveriam ali resguardados pela flauta de Eva. 

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (734)

Hervé Télémaque - Jeu de l'Ombre (1997)
734. um jogo de sombra

um jogo de sombra
sombreia dans
l’ombre sombre
e sombria
do papel
carcomido pelo carvão
ombragé
dans le soleil
que nos éveil
de
setembro em septembre

(28/12/2016)

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Micronarrativa (23) Homicídio

Saul Leiter, Carol Brown in “Harper’s Bazaar”, c.1958
Quando entrou não mais consegui tirar os olhos dela. A sua beleza era tão comovente, o seu encanto tão cativante, que, por mais que o quisesse evitar, o olhar fixava-se naquele rosto. Acabei por matá-la. Não exagero. Lentamente, a imagem dela, aos meus olhos, começou a desfocar-se, a ficar granulada, até que os grãos se separaram uns dos outros. Aquele monte de poeira é o que resta dela.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Haikai do Viandante (376)

William Turner, Tarde de Verão, 1827
Na margem, um cão
ladra aos barcos que passam.
Verão, luz e água.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Impressões 37. Rios eléctricos

Alfred Eisenstaedt, Electricity emitted from machine at MIT, Boston, MA. 1949
Há noites em que sonho rios eléctricos. São rápidos, turbulentos, inquietantes. Habitam-nos peixes de cortiça e piranhas de madeira. Quem neles mergulha volta a terra de baterias carregadas. Quem os observa fica cego, tamanha é luz que deles se desprende. Quem os sonha enlouquece lentamente.

domingo, 4 de agosto de 2019

Diálogos morais 17. Asas

Philippe Halsman, Daytona Beach, Florida, 1946
- Meu Deus, esqueci-me das asas.
- Também eu, mas de Deus não quero...
- A ti não te fazem falta, a queda faz parte da tua natureza.
- Lá por seres um anjo branco, pensas que és melhor do que eu?
- Deixa-te de comparações, vê lá se cais.
- O que tu queres e veres-te livre de mim.
- Cala-te. Se caíres na água talvez te nasçam barbatanas.

sábado, 3 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (733)

Yoriyasu Masuda - Geometría y metafísica en cuadro (1996)
733. geometrias de pelúcia

geometrias de pelúcia
brotam devagar
no vitral trépido
de maio
crescem
no vinho velho
do alfabeto
letras lentas
e já
já moribundas

(28/12/2016)

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

O desdém

Deborah Turbeville, Unseen Versailles - Aurelia Weingarten, 1980
Talvez se tivesse cansado de tudo, ou talvez fosse uma revoltada, é possível, mas tenho uma hipótese mais interessante. Havia nela uma tal altivez que são raros aqueles que podem dizer que conviveram com ela. Fui um desses, mas não pense que sei mais sobre ela do que um mero conhecido. Nunca foi dada a confidências e a afabilidade do convívio não passava de uma muralha com que se defendia - é esta a verdadeira palavra - dos poucos que a rodeavam. Quer saber do que se defendia ela? Do amor, do que haveria de ser? Todos a amávamos, claro, e ela não o suportava. Procurava, na verdade, o desdém, mas nunca o encontrou, a não ser no gesto com que nos abandonou a todos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O sal do silêncio (23)

Johan Hagemeyer, Silence, 1920
Os jardins onde o silêncio nasce escondem-se por detrás da muralha noite. Jardins secretos, onde os anjos esperam uma palavra. Neles, as árvores rumorejam resguardadas da cal do tempo e os seus ramos abrem-se para a eternidade, a nuvem vacilante que se demora no coração dos homens.

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Pintura e haikus (11)

Ken Howard, High water, Summer, 1996
No meio do mar,
o Verão cresce na água.
Os homens renascem.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Micronarrativa (22) Impaciência

Alexander Rodchenko, Girl with a Leica, 1934
Sentada, ela esperou. Enquanto havia sol, pequenos quadrados de luz iluminavam-na furtivamente. Nesses momentos, a esperança não a abandonara. Depois, fez-se noite e ela confundiu-se com a escuridão. Aquele por quem esperava passou então por ali, mas não a viu. Impaciente, continuou o caminho, esperançado em encontrá-la num outro sítio onde ela nunca haveria de estar.

domingo, 28 de julho de 2019

Poesia do Viandante (732)

Yoriyasu Masuda - Ambiente espiritual (1996)
732. o espírito espuma

o espírito espuma
na boca
de orvalho
floresce envolto
em auroras
de cânhamo e sisal
declina
no incenso
do carvão a arder

(28/12/2016)

Diálogos morais 16. Tolerância

Auguste Rodin and Rose Beuret, Meudon, 1893
- Como podes gostar tanto de cães?
- Mantêm-me vivo.
- Vivo?
- Vivo rodeado de matéria inerte a que dou vida...
- E essa não te chega?
- Não, preciso de ver os cães, de os sentir.
- Para quê?
- Para nada, apenas porque estão vivos.
- Ah, se eles fossem de mármore, ainda poderia tolerá-los.

sábado, 27 de julho de 2019

Impressões 36. Estranhos lugares

Paul Strand, Street, Tetuan, Morocco, 1962

Há lugares - que estranhos são - onde só aquilo que é secreto se pode encontrar. Não se procure ali a claridade nem o que na claridade se dá a ver. Ninguém o achará. Sombras, vultos, vestígios encontram nesses locais a sua pátria. Se os espreitamos, vemo-los como se fossem o rasto de um cometa. Se queremos observá-los de frente, encontramos apenas o vazio que nos enche a alma.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Haikai do Viandante (375)

Claude Monet, Summer, Field of Poppies, 1875
Campos de papoilas
são fogos de luz na terra.
Rumor de Verão.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

A rapariga da flor

Chas. A. Hellmuth, Study of Miss A., 1921
Lembro-me muito bem dela. Como poderia ser de outra maneira? O rosto transbordava de melancolia, o que não deixava ninguém indiferente. Não havia rapaz que não estivesse apaixonado por ela. Acabou por casar com um janota - hoje ninguém usa essa palavra, eu sei -, um daqueles homens inconstantes, quase femininos na preocupação com a aparência. Conquistou-a ao oferecer-lhe uma flor. Ela pegou nela, encostou-a ao coração e rendeu-se. Ele abandonou-a passados alguns meses. O que lhe aconteceu, pergunta-me. Não sei muito bem. Há quem diga que foi para outra cidade e que todos os dias compra uma flor que encosta ao peito, enquanto passeia melancólica com ar ausente. Não sei se é verdade.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Poesia do Viandante (731)

William Congdon - Winter 3 (Exeter-New Hampshire) (1956)
731. alguém chega

alguém chega
coberto
de silêncio
aos ombros
o manto
do inverno
uma trova
de neve
sobre o néon
dos nenúfares

(28/12/2016)

terça-feira, 23 de julho de 2019

Diálogos morais 15. Cegueira

Ernst Haas, Homecoming Prisoners, Vienna, 1947

- Conhece-o, conhece-o?
- (...)
- É o meu filho, viu-o?
- (...)
- Ninguém fala comigo.
- (...)
- Parece que tenho peste. Conhece-o?
- (...)
- Outro que passa. Ninguém vê a minha dor. Viu-o?
- (...)
- Ficaram cegos estes soldados. Viu-o?
- (...)
- Como o teriam podido ver se são cegos.

domingo, 21 de julho de 2019

Diálogos morais 14. Caminho

John Boyd, Couple snowshoeing, 1907
- Está frio.
- Não mais que ontem.
- Sim, mas a cada dia que passa tudo se torna mais difícil.
- É verdade, o caminho nunca mais acaba.
- Julgo que estás errado.
- Estarei?
- Chegará o momento em que o próprio caminho desaparecerá.