sexta-feira, 3 de maio de 2019

Poesia do Viandante (718)

José María Yturralde - Ad Quadratum (1990)

718. a escura esquadria

a escura esquadria
do quadrado
sombra
de sílabas
na paisagem vermelha
tão verde
dos campos
incendiados
no solstício de verão

(26/12/2016)

domingo, 21 de abril de 2019

O sal do silêncio (13)

Hippolyte Flandrin, The Resurrection

Não apenas o sal habita no silêncio, mas também o fermento. É ali, no silêncio sepulcral que habita o centro do mundo, que fermenta vida, corroendo os grilhões de aço da morte. Chegada a hora, ela irrompe banhada pela luz do segredo. Em cada irrupção há um ressurgir no qual, sob o véu silente, se escuta a música  eterna das esferas celestes.

sábado, 20 de abril de 2019

Diálogos morais 5. Partilha

Stanley Kubrick, Life and Love on the New York City Subway, 1946

- Contem-te, está ali um homem a dormir. Se ele acorda...
- Não acorda, está morto.
- Que horror. Não brinques com coisas sérias.
- Horror seria ele estar vivo e ter de te partilhar com ele.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Poesia do Viandante (717)

Meyer Schapiro - Surreal Rocks (1960)

717. rochas gânglios

rochas gânglios
de pedra
na crosta da terra
inflamações
a arder
na planície
espelhos
espalhados
na cinza do mar

(25/12/2016)

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Pintura e haikus (9)

Chaim Soutine, Cagnes Landscape with Tree, 1923-24

Paisagens de verde
sombreadas de amarelo.
Luz da Primavera.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

O sal do silêncio (12)

Paul Wolff, Housewife, grass-bleaching the linen, 1930s

Há gestos, tão vivos, congelados no passado que parecem querer soltar-se das férreas grades do calendário, para abraçarem o húmus da terra e entregarem-se ao ardor que, na maresia das manhãs, se desprende já dos raios solares. 

terça-feira, 16 de abril de 2019

Diálogos morais 4. Prazeres

Irving Penn, Man Lighting Girl’s Cigarette (Jean Patchett), New York, 1949

- Obrigada.
- É um prazer.
- Compreendo. Tem prazer no que me faz mal, no que me pode matar.
- E que prazer poderia eu ter no que lhe fizesse bem?

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Meditação Breve (100) Abandono

Foto de Graciela Iturbide

Quando alguém se sente chamado para um território inóspito, então é porque chegou a hora do abandono. Não de se sentir abandonado, mas de abandonar-se, para que o vento que sopra onde quer lhe possa falar e indicar-lhe o caminho que o espera.

domingo, 14 de abril de 2019

Poesia do Viandante (716)

Meyer Schapiro, Landscape, 1940

716. paisagens de granito

paisagens de granito
e grafite
rasgadas na cera
dos campos
paisagens húmidas
untuosas
sedadas no sono
da noite
paisagens de poeira
e seixo
vidradas no visco
de um verso

(25/12/2016)

sábado, 13 de abril de 2019

Impressões 28. Larvas na noite

Yale Joel, Night traffic on the Major Deegan Expressway. New York, June 1958

Os carros deslizam como larvas no território da noite. Abrem valas de luz por onde caminham em busca de um destino, dessa morada onde o silêncio lhes paga cada pergunta com o mistério de uma resposta.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Micronarrativa (15) Indecisão

Elliott Erwitt, Jacksonville, Florida, 1968

Uma inquieta presença insinuava-se à entrada. A sua vida fora sempre um lago de indecisão. Chegava ali e hesitava longamente se devia entrar ou ir-se embora. Acabava sempre por se ir. No dia que entrou, a sua mão ficou agarrada longas horas à porta entreaberta, como se fosse possível apagar o precipitado passo.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Adeus

Fotografia de Jacques Henri Lartigue

Sentava-me ao lado dela e observávamos o oceano, comentando os veraneantes, a ondulação, o destino dos barcos que passavam. Por vezes, convidava-a a jantar, mas ela nem sempre acedia, protestando cansaço ou algum incómodo ocasional. Era uma amizade intermitente. Num dia à tarde, sentados um ao lado do outro, brilhavam-lhe os olhos. Disse-me: acabou a minha pena, posso voltar para casa. Olhei-a estupefacto. Pena? Sim. Venha comigo. Pegou-me na mão e levou-me para o mar. Dentro de água beijou-me longamente. Depois, dando umas braçadas, disse-me adeus. Volto para casa, acrescentou. E enquanto se afastava mar adentro, soltou um canto belíssimo. Quando se calou, o seu silêncio quase me enlouqueceu.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Diálogos morais 3. As trevas e a luz

William Holman Hunt, The Lantern-Maker's Courtship, 1854-56

- Ah essa boca velada de negro, como eu...
- Contém os teus desejos, os meus lábios...
- Os teus lábios cerra-os tão terríveis trevas.
- E para que te serve a luz de uma lanterna, se não os iluminas?

terça-feira, 9 de abril de 2019

Poesia do Viandante (715)

Antonio Clavé - 23-11-75 (1975)

715. leves os ladrilhos

leves os ladrilhos
da casa latem
latejam
tocados
na porosidade
pura da pedra
pela límpida
luz do ladrilhador

(25/12/2016)

segunda-feira, 8 de abril de 2019

O sal do silêncio (11)

Chin-San Long, Tree with cranes, 1966

Expectante, a ave olha o rumor do silêncio, enquanto o tempo, levedado pela brisa, passa em direcção ao futuro. Na ramagem das árvores, sob um céu anónimo, esconde-se a esperança e a mão que há-de pintar de cinza a sombra efémera que a luz sempre consigo traz.

domingo, 7 de abril de 2019

Impressões 27. Esfinge

Anónimo, Sphinx, Egypt, 1890s

Olho e reconheço-me na imagem que a esfinge me devolve. Se pergunto quem sou, nunca oiço a resposta, apenas o ecoar da pergunta no impenitente vazio do deserto chega aos meus ouvidos, devolvendo-me a angústia da pergunta e a incerteza que me habita. 

sábado, 6 de abril de 2019

Haikai do Viandante (368)

George Inness, A Passing Shower, 1860

Chuva passageira
desce dos céus de Abril.
Balem os cordeiros.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Diálogos morais 2. Eu não desisto

Jean Dieuzaide, Aveiro, Portugal, 1954

- Parece uma bola de luz. Quero-a.
- Não podes querer o Sol. Está longe, é muito grande e quente.
- Não interessa. Eu não desisto.
- Não desistes? Como assim?
- Vou crescer, vou ser maior que tu e então, este barco maior que o sol leva-me até ele. Quando lá chegar, mergulho-o na água e ele arrefece. Então trago-o comigo. Eu não sou como tu. Eu não desisto.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Poesia do Viandante (714)

Georgia O'keeffe - Dark Iris No. 11 (1922-23)

714. o lírio negro

o lírio negro
levita
na loucura
da leda
madrugada

(24/12/2016)

terça-feira, 2 de abril de 2019

O sal do silêncio (10)

Jean Dieuzaide, Castelo dos Sarmiento, Ribadavia, 1960s

O murmúrio das pedras foi arrastado pelo vento para o desfiladeiro do silêncio. Feitas ruínas, as muralhas são agora fantasmas mudos que dormem embalados pelo arbusto do esquecimento.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Meditação Breve (99) Tempestade

Francisco Gutiérrez Cossío, Tempestad, 1946

A chuva cai impiedosa, dilacera a terra seca, enquanto a trovoada abre, com o frenesim de um caçador em busca da presa, um buraco no coração dos homens. Uma tempestade é sempre uma ameaça, mas também é uma porta por onde a luz, por breves instantes, relampeja.

sábado, 30 de março de 2019

Impressões 26. O lugar do sentido

Tom McCrea, Pruitt-Igoe complex, St. Louis, Missouri, 1955

Facilmente as cidades se excedem e ultrapassam a dimensão em que uma humanidade, espiritualmente saudável, é possível. Entre a penúria da aldeia e a desmedida urbana, abre-se o território da possibilidade, esse lugar onde o pequeno e o grande, o alto e o baixo, a tradição e o novo podem conviver e abrir as portas para que os homens dêem sentido à existência.

sexta-feira, 29 de março de 2019

O sal do silêncio (9)

Jean Dieuzaide, Albarracín, Spain, 1955

O rigor das pedras alimentava o silêncio das manhãs. Por vezes, passavam mulheres carregadas de pão e frutas. Quando chegava o meio-dia, o sol cintilava no chão, anunciado a estiagem e a luz que a noite traria presa à ondulação das estrelas.

domingo, 17 de março de 2019

Poesia do Viandante (713)

Josef Albers - Dancing Pair (1916)

713. como carvão

como carvão
sobre papel
o par dança
enlouquecido
pela música
levado pelo ritmo
da terra
o escuro aluvião
do desejo

(24/12/2016)

sábado, 16 de março de 2019

Diálogos morais 1. A melhor coisa

Hugo Erfurth, Mother and son in german landscape, 1904

- O que deixamos nós para trás, mãe? 
- Nada que mereça as nossas palavras ou sequer um olhar. 
- Tenho medo, não consigo olhar em frente, para onde vamos, mãe?
- Não sei, nunca sabemos para onde vamos e essa ignorância é a melhor coisa que tenho para te dar.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Impressões 25. Neve

Henri Le Sidaner, Neige, Boulevard de la Reine, 1928

Os flocos de neve lembram folhas envelhecidas perdidas pelo chão. Não há pássaros que sobre eles poisem, mas vindo o sol, uma seiva fresca entrará pelos poros da terra e um hálito de água selvagem subirá aos céus para chamar as primeiras aves da Primavera.

quinta-feira, 14 de março de 2019

O sal do silêncio (8)

Ellsworth Kelly, Light Reflection on Water, 1950

Uma casa construída no frágil reflexo das águas abrigava todas as esperanças. De uma das janelas, via-se o passar do tempo no barco triste dos dias. Na outra, ouvia-se o canto das aves que descia e pousava no coração de quem ali se sentava. Depois, havia quem mergulhasse e deixasse o corpo flutuar na luz do entardecer. Então o vento erguia-se e espirais de poeira agitavam-se no ar para caírem inclementes na trémula memória da casa.

quarta-feira, 13 de março de 2019

Impressões 24. Um manto de silêncio

Ed Clark, Marilyn Monroe, 1950

Teria sido uma ave ou um raio de luz, talvez a maçã da árvore do paraíso. Agora, é um manto de silêncio sob a penumbra da manhã, a promessa obstinada do Estio que espera, no murmúrio do olhar, o rumor da água na folhagem dos campos.

terça-feira, 12 de março de 2019

Poesia do Viandante (712)

Alexander Mikhailovich - Composición (1939)

712. girândola de grinaldas

girândola de grinaldas
explode
e rios de azul
afluem em planícies
de vermelho
rasgadas pelo ocre
da terra
pela veia do vento
no sopro da floresta

(24/12/2016)

segunda-feira, 11 de março de 2019

À janela

Edouard Boubat, France, 1977

Foi lenta a metamorfose. As coisas mais surpreendentes acabam por parecer banais se o tempo nos habituar a elas. Contrariamente ao hábito, ela abriu a janela. O facto, por inusitado, provou comentários. Também muito notado foi o caso de, passados dias, aparecer no parapeito da janela um gato. Demorou mais de meio ano para que ela, naquela altura ainda muito bela, surgir na janela. Foi o alvoroço. Depois, tornou-se rotina. Passado um ano, nem ela nem o gato saíram mais daquele lugar. Murmurou-se, mas o rumor depressa acabou. Habituamo-nos a tudo e nem sequer foi problemática  a descoberta que o único ser vivo era, apesar de cortado, o ramo preso nas mãos dela. Floresce uma vez por ano.