quinta-feira, 14 de abril de 2016

Haikai do Viandante (281)

Peder Balke - The Mountain Range 'Trolltindene' (c.1845)

montanha sombria
erguida sobre as nuvens
aves pelos céus

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Na margem do passado

Pieter Brueghel, o Velho - Dia sombrio (1565)

Sento-me na margem do passado e deixo o rio correr aos meus olhos. Demorei séculos para chegar aqui. O presente cansava-me e viajar para o futuro seria estultícia. Olho, e a vida que vejo, os homens a trabalhar na floresta, a aldeia pousada na sombra do dia, pertence já ao reino da morte, mas tenho a minha lira e comprei, como Orfeu, uma viagem ao reino subterrâneo. Não, não vim resgatar nenhuma Eurídice que, um dia, teria amado, neste lugar cujo nome há muito não pronuncio. Estou aqui para me recordar do que fui, das paisagens que amei, do sopro do vento sobre as águas do rio. Sento-me na margem do passado e olho a perfeição com que tudo passou.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Poemas do Viandante (537)

Robert Motherwell - À beira-mar n.º 22 (1962)

537. o mar é um punhal

o mar é um punhal
de azul
a germinar
na onda
negra
que se ergue
na areia
quase verde
quase triste

segunda-feira, 11 de abril de 2016

De sombra em sombra

Paul Ackerman - Les choses deviennent peut-être plus claires dans l'ombre

A sombra não é o lugar do sombrio e do ameaçador para o homem. É, na verdade, o lugar cuja luz o homem pode suportar. Quando João, o Evangelista, escreve a luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam, estava a dizer isto mesmo: o homem não suporta a luz mais pura. O seu lugar é a sombra. Pode, claro, avançar em direcção à luz, mas é sempre um avanço de sombra em sombra.

domingo, 10 de abril de 2016

O livro e a pauta

José Victoriano González - O Livro (1917)

O livro constituiu, dentro do campo da cultura ocidental, um elemento estruturante e decisivo. Este papel acabou por ocultar o verdadeiro carácter desse objecto. Esta ocultação era já pressentida no Fedro, de Platão, na crítica, que no mito narrado por Sócrates, o rei faz à escrita. Esta provocará nas almas o esquecimento, pois implicará, devido à confiança no registo escrito, a ausência de exercício da memória. A escrita e o livro, como lugar onde a escrita se concentra, acabaram por tomar um valor intrínseco. Ora, na vida espiritual o livro - seja de que âmbito for - não possui um valor por si próprio, mas enquanto objecto de mediação. O valor do livro reside na sua semelhança com a pauta musical. Esta só tem valor porque permite a interpretação. Também o livro e aquilo que ele contém são uma pauta que o leitor interpreta para produzir a música da existência, da sua própria existência.

sábado, 9 de abril de 2016

Criação e redenção

Mère Geneviève Gallois - Creatio - Redemptio

A tensão entre criação e redenção não pertence apenas à esfera da religião. Ela percorre toda a vida do espírito, manifestando-se como uma estrutura essencial dessa vida. Todo o acto de criar, de fazer vir à luz, acaba por exigir, como complemento e acabamento, a necessidade de redenção do que foi criado. A redenção, a sua necessidade, sublinha o carácter finito do que foi criado, da sua necessidade de completude e de elevação acima da temporalidade.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Haikai do Viandante (280)

Umberto Boccioni - April evening (1908)

as noites de abril
chegam ocultas na luz
abertas ao frio

quinta-feira, 7 de abril de 2016

A sombra vazia

Mario Sironi - Ciclista (1916-20)

Pedalo nesta estrada rugosa, neste dia de sombra. Pedalo para fugir à noite. Pedalo para escapar ao dia. Sou um ciclista e corro, em sprint desmedido, para o infinito, para a vitória que me deseja, para os louros que me hão-de coroar. E neste ir está toda a minha essência e estão todos os  meus acidentes. Pego na bicicleta e, ao sentar-me no selim, descubro a minha casa, que é não ter casa nenhuma e ser um eterno viandante. Sinto os músculos dobrarem-se ao imperativo que me guia, sinto o ritmo cardíaco acelerar com a descoberta que me espera. E pedalo, pedalo firme no crepúsculo e corro para a terra oculta onde, passada a meta, me aguarda a minha sombra vazia.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Poemas do Viandante (536)

Ellsworth Kelly - Black, White and Silver (1952)

536. preto, branco e prata

abre-se o branco
na névoa
nebulosa e
o preto é
a pedra 
que empresta
à luz
o fervor
da prata

terça-feira, 5 de abril de 2016

A queda

Antonio Tápies - A Queda (1982)

Podemos ver no mito da queda de Adão e Eva uma explicação simbólica para a nossa finitude. Essa visão inscreve-se ainda numa lógica de racionalização pré-científica da vida humana, um momento em que as faculdades humanas ganham força para se emanciparem e encontrarem explicações racionais. Por exemplo, o criacionismo bíblico seria a ante-câmara da teoria da evolução darwiniana. Do ponto de vista espiritual, contudo, isso é irrelevante. A queda é antes a experiência contínua de um espírito dilacerado entre o seu desejo do alto, do que é elevado, e a força da gravidade que o empurra para o que é baixo e degradante. A queda é o elemento central de toda a vida espiritual.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

A linha do horizonte

Manuel Hernández Mompó - Gente buscando horizonte (1971)

A linha do horizonte circunscreve um espaço de percepção. O que está para além dela deixa de estar ao alcance da visão.Também a vida espiritual dos homens - nas suas diversas manifestações - precisa de uma linha do horizonte. Para quê? Sem linha do horizonte o espírito singular perde-se. A linha do horizonte permite balizar a actividade espiritual do homem, mas não só. A linha do horizonte é aquilo que o homem, na sua aventura espiritual, vai tentar fazer recuar para, assim, alargar o seu campo de experiência. A vida espiritual é o exercício de tornar, através do recuo do horizonte, o além mais próximo do aqui e do agora.

domingo, 3 de abril de 2016

Construções espácio-temporais

Theo van Doesburg - Construcción espaciotemporal II (1923)

Também a vida espiritual é uma construção espácio-temporal. Rasga um caminho na terra ao ritmo do tempo. Não se trata, contudo, do espaço exterior captado tridimensionalmente pelos sentidos nem do tempo cronológico. O tempo é o tempo oportuno, o kairós, e o espaço é aquele que, interior e exteriormente, se traça entre as diversas manifestações desse tempo oportuno, o caminho que torna a vida uma resposta aos desafios que se manifestam segundo o Kairós.

sábado, 2 de abril de 2016

Poemas do Viandante (535)

Jesús María Cormán - 6.6 Richter Scale (2001)

535. a escala de richter

a escala de richter
um segredo
balança 
na terra
o peso de
um dedo
que a abre
e logo logo
a encerra

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A mulher e a ave

Pierre Puvis de Chavannes - Le Pigeon (1871)

Eu sou o pássaro que seguro contra o peito e trago em mim o desejo incendiado do voo, o vício impenitente de deixar a terra e elevar-me, como um anjo, aos céus, para, livre da gravidade, poder seguir o caminho no silêncio das alturas. Eu sou a pomba que me toca o seio. No desconcerto de sentir-se presa, a ave funde-se lentamente em mim. Sinto as suas penas na minha pele, o seu coração, vibrátil e ansioso, no meu. Olho o sol e um pássaro terrível chama-me. Ergo um braço, depois outro, e tudo em mim é leveza, ausência de peso. A cidade resplandece ao longe e o sol banha-me o corpo, um corpo tão branco e tão leve. Eu sou a pomba que a mulher segura contra o peito e voo, na liberdade dos céus, no seu corpo alado e quente.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Haikai do Viandante (279)

Benvenuto Benvenuti - Inverno - Mattina (1905)

as manhãs de inverno
descem sobre os ciprestes
fogo frio na terra

quarta-feira, 30 de março de 2016

Para lá dos manifestos

Boris Kustodiev - Reading the Manifesto (1909)

A vida do espírito começa para lá de todos os manifestos. Um manifesto é um exercício exacerbado de ruído, a concentração de desejos e ilusões. A vida do espírito brota do silêncio, da solidão, da pura presença perante aquilo que é. O manifesto dirige-se ao rebanho e é sempre a afirmação do poder, ou da sua ânsia, de um pastor. A vida do espírito repousa na singularidade de cada um, quanto muito no encontro de duas singularidades. Nela, não há lugar para manifestos.

terça-feira, 29 de março de 2016

Poemas do Viandante (534)

Edna Araraquara - Amendoeira

534. da brancura da flor

na brancura da flor
eleva-se um
aroma
paira 
na sombra
trémula
de uma pétala
coberta de luz
coberta de assombro

segunda-feira, 28 de março de 2016

Uma dança infinita

Cruzeiro Seixas - Dança Infinita (2007)

Propulsionado pela música, aquele que dança enfrenta o império da gravidade e eleva-se, por instantes, acima da terra, como se do alto uma voz o chamasse. A gravidade devolve-o ao chão, mas a música, a voz que vem do alto, não pára de chamar. E, mais uma vez, o corpo ergue-se e enfrenta aquilo que o arrasta para baixo numa ânsia infinita de responder ao chamamento. A vida do espírito não é outra coisa senão uma dança infinita.

domingo, 27 de março de 2016

A ressurreição

El Greco - Ressureição (1605-1610)

A pintura de El Greco permite perceber uma dimensão da ressurreição do Cristo para além das leituras literais correntes. O que se vê é a elevação de Cristo acima das contingências temporais e mundanas, as quais estão representadas pela confusão e pelo espanto que se apodera dos restantes figurantes da cena. Ressuscitar é então um elevar-se acima das condições do espaço e do tempo, às quais estamos submetidos e são o limite das nossas possibilidades. A ressurreição de Cristo surge como um desafio aos limites e uma ultrapassagem das condições mundanas do homem.

sábado, 26 de março de 2016

Ao pôr-do-sol

Giovanni Boldini - Angeli

A história conta-se em poucas linhas. A verdade fica à consideração do leitor. Ia pela praia, num daqueles passeios que se dão pelo entardecer. Como sempre, caminhava para a duna atrás da qual - temos a ilusão - o Sol se põe. Não havia vento e a ondulação era suave. As gaivotas, por terra, calavam-se. O dia entregava-se e o crepúsculo descia pela baía. Ao desaparecer o Sol, elevou-se não a noite mas luzes em convulsão. Não era uma tempestade. O ritmo do coração acelerou quando decidi subir ao cume da duna. As luzes convulsas não cessavam, mas tudo era silêncio, um silêncio pesado. Ao chegar ao cimo, o leitor é livre de não acreditar, vi enormes seres alados. Havia neles, na face e no corpo, demasiada humanidade. Eram anjos. Flamejantes, coriáceos, combatiam entre si.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Haikai do Viandante (278)

Claude Gellée - Amanhecer

vem sobre os campos
a fria luz da madrugada
o dia anuncia-se

quinta-feira, 24 de março de 2016

Da periferia

Pierre-Albert Marquet - Arredores de Paris (1904)

Aquele que escolhe o caminho da contemplação procura a periferia e não o centro. Ser periférico, estar no arrabalde. A vida do espírito é assim um exercício de descentramento e de abandono de si. A humildade é o lugar da contemplação. A glória, o da coisa contemplada. Até que contemplado e contemplador sejam um e único, até que não haja mais periferia nem centro.

quarta-feira, 23 de março de 2016

A grande tentação

Max Beckmann - Tentação (1936-37)

Há neste mundo as pequenas tentações e as grandes tentação. A maior das tentações, contudo, é a de se eximir a qualquer tentação. Eximir-se à tentação significa esquivar-se ao confronto com a realidade, fingir que não se está presente no mundo e que não se está sujeito ao regime da nossa finitude e a sua concomitante fragilidade. A maior tentação é a de se iludir a si mesmo.

terça-feira, 22 de março de 2016

Poemas do Viandante (533)

Emilio Pettoruti - Armonía - Movimiento Spazio (1914)

533. Um rápido

Um rápido 
movimento 
de mãos
abre rugas, 
tão ruidosas,
no espaço negro
onde do caos 
irrompe
a súbita 
harmonia.

segunda-feira, 21 de março de 2016

As cores

Rodríguez Castelao - As cores (1931)

Também as cores assinalam o caminho na viagem. Primeiro prendem o espírito à sua diversidade. Depois, passado o encantamento estético, tornam-se uma ordem onde o viandante aprende a ler, gradualmente, o progresso no caminho que o conduz das trevas mais densas à luz mais pura.

domingo, 20 de março de 2016

Um triunfo

Laszlo Moholy-Nagy - Homem Sentado (1919)

São assim os meus dias. Levanto-me e, como uma sombra, saio de casa. Vagueio pelas ruas e sinto-me desencarnado. Tento ver-me no reflexo das montras e não encontro a imagem do meu corpo. Perplexo, volto para casa. Sento-me e leio. A vida começa nesse momento. A realidade? Valerá a pena disputar sobre o que é a realidade? Não, claro que não. Os meus olhos caem sobre as palavras e o mundo desenrola-se dentro de mim. Uma ilusão? Já não tenho idade para me iludir. Limito-me a descrever o que se passa. Os meus olhos recebem as palavras. Chegadas a mim, transformam-se, ganham densidade, tomam carne. O meu corpo anima-se, participa nas peripécias da história que leio. As horas passam. Por vezes, olho o espelho ao fundo. Ele devolve de imediato a minha imagem. Sorrio triunfante. Baixo os olhos e continuo a ler.

sábado, 19 de março de 2016

Poemas do Viandante (532)

Albert Bloch - Parable (1936)

532. Também ele falava

Também ele falava
por parábolas.
Tecia um véu de sombra
para que a luz
não incendiasse 
as palavras
e os ouvidos incautos
pudessem escutar
o fogo vocálico
que por elas descia.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Trabalho de pioneiro

Pekka Halonen - Pioneers in Karelia (1900)

A vida do espírito implica também ela um trabalho de pioneiro? Sim, claro, pois ela é um desbravar de um caminho. Contrariamente, porém, a outras dimensões da existência, a vida espiritual não é um trabalho de equipa. O pioneiro desbrava o caminho na mais pura solidão. E porquê em solidão? Porque esse caminho é o seu caminho, só a ele diz respeito, só ele o poderá trilhar. Ele é o pioneiro de si mesmo.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Haikai do Viandante (277)

Pekka Halonen - Washing on the Ice (1900)

a desolação
trazida pelo inverno
rio de água gelada

quarta-feira, 16 de março de 2016

Da inclinação

Hsu Wei - Bambous sous la brise

Como um bambu se inclina quando o vento desliza por ele, também o homem se deve inclinar para onde o espírito lhe indicar. O erro é querer permanecer hirto se um vendaval sopra. Inclinar-se é, então, a única forma de se permanecer vertical, pois o alto não está, nessa hora, em cima, mas em frente.