segunda-feira, 10 de junho de 2013

Poemas do Viandante (420)

Díaz Olano - Desnudo (1895)

420. Deixo a mão escorregar no teu dorso

Deixo a mão escorregar no teu dorso
e sinto a pele sequiosa de água,
o rumor  do desejo na memória do mar,
as areias brancas batidas pelo vento,
o antecipado prazer de cada sensação.

Fosse a tua pele azul e os seios falassem.
fosse a tua voz sombra e a boca calasse.
Fosse a tua mão silêncio e o sexo cantasse.
O dia viria com o seu império de luz
e abriria para a noite a cortina do amor.

Deusa nocturna tragada de memórias,
concha aberta onde repouso,
serva fascinada pela voz do senhor.
Vem! Escurece em mim as trevas
e ateia um fogo no buraco negro da solidão.

Consome-me célula a célula,
rasga-me a carne e dilacera-me o peito,
deixa arder o sexo na água da minha boca.
Sonâmbulo, desenho-te o corpo
na poalha viva da memória fracturada,

e escrevo nessas ancas o casto segredo
dos dedos que se tocam e ressoam,
do eco do teu nome na fímbria do coração,
do lençol branco onde te desejo:
Pura, intocada, meretriz de sangue incendiada.

domingo, 9 de junho de 2013

A alegria do regresso

Giorgio de Chirico - A alegria do regresso (1915)

A questão do regresso tem, na tradição ocidental, duas figurações centrais. Na cultura clássica grega, o regresso - e as alegrias concomitantes - tem o seu símbolo no retorno de Ulisses à pátria, à ilha de Ítaca, que abandonou para seguir, com o exército dos helenos, para Tróia. Na vertente judaico-cristã, o regresso é pensado no retorno do segundo Adão, Jesus Cristo, ao Pai ou, para utilizar a simbólica do Antigo Testamento, ao paraíso, de onde o primeiro Adão tinha, angustiadamente, partido.

A alegria do regresso deve ser compreendida a partir de dois tópicos. Por um lado, a alegria de voltar chez soi, com o prazer de ser reconhecido e o prazer de reconhecer o lugar a que se pertence. Não se trata apenas de uma questão territorial, mas de um voltar àquilo que se é. Ulisses retorna à sua função de Rei, o segundo Adão restaura a natureza divina do homem. Esta alegria central, pois tem uma natureza ontológica, está escorada numa outra alegria, a alegria de ter superado as provações, sejam as da Guerra de Tróia e aquelas que a atribulada viagem de regresso trouxeram a Ulisses, sejam as colocadas pelo processo crucificação, morte e ressurreição do Cristo. 

A alegria do regresso não se trata do júbilo por um retorno ao lugar de onde se partiu, mas da alegria de uma nova condição que é, ao mesmo tempo, restauradora de uma condição perdida e uma condição absolutamente nova. Aquele que regressa retorna ao que foi tornando-se em algo de absolutamente novo.

sábado, 8 de junho de 2013

A angústia da partida

Giorgio de Chirico - A angústia da partida (1913-4)

O quadro de Giorgio Chirico representa uma reflexão pictórica sobre uma das experiências fundamentais da humanidade. O título junta as ideias de angústia e de partida. O que torna uma partida angustiante? O desconhecido, a incerteza, a coacção que torna necessária essa partida. Na tradição ocidental, qual é a partida simbólica que condensa todas as partidas angustiantes? A primeira partida é a de Adão e Eva, aquando da sua expulsão do paraíso. Nesse momento simbólico trazido pelo mito inscrito no Génesis, encontramos todos os elementos necessários para perceber a angústia da partida: a coacção que foi imposta ao par prevaricador, o desconhecido para onde se dirigem, a incerteza sobre a sua sorte na viagem imposta. O sair do paraíso, ou da pátria, ou do lar é sempre um momento angustiante onde o espírito vacila. É também o momento em que o homem, abandonando o estádio ingénuo da existência, toma consciência de si e do seu existir, é a hora em que le se torna viandante. E aqui percebe-se um segundo motivo de angústia para aquele que parte. Será que se perderá no caminho e se entregará à pura errância ou terá o talento para a alegria do regresso?

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O corpo que dança

Henri Matisse - A dança (1909-10)

Talvez tenha sido Paul Ricoeur que tenha dito que a dança é uma luta contra a gravidade. Ao dançar, o corpo fluidifica-se, abole alguns limites, redefine as fronteiras do possível. Quanto mais exigente tecnicamente for um estilo de dança maior a ambição que nele se esconde. Que ambiciona um corpo ao dançar? Tornar-se um corpo mais  eficiente e com maior capacidade performativa? Tornar-se numa aparência arrebatadora para o espectador? Tornar-se fonte inesgotável de um prazer subjectivo? Tudo isso pode ser verdade, mas é secundário. Ricoeur, se não me falha a memória, tem toda a razão, o corpo pretende suspender o efeito da gravidade. O que significa, porém, esse desejo? Significa simplesmente que o corpo aspira a não ser corpo. A gravidade faz parte da corporalidade. A nossa experiência do corpo é concomitante ao nosso sentimento de subjugação à gravidade. Quando o corpo dança, quando responde ao anseio de suspender a gravidade, ele responde ao seu mais secreto desígnio. Ele pretende tornar-se puro espírito. Quando os corpos dançam é o espírito que neles se esconde que se manifesta. A dança é sempre uma hierofania.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Haikai do Viandante (146)

José de Togores - Afinidades (1930)

Traços que se querem,
manchas de cor, velhos corpos:
virão se vierem.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Idolatria e emancipação

Odilon Redon - O Ídolo (1886)

Um dos elementos centrais do Antigo Testamento é o combate contra a idolatria. O Deus de Israel, na sua invisibilidade e irrepresentabilidade, exigia um esforço intelectual e um mergulho na fé, para os quais a população, muitas vezes, se mostrava incapaz. A visibilidade do ídolo e a apreensão intuitiva de uma figura tornavam, na economia da praxis religiosa, a idolatria mais acessível ao homem comum. Impossível de figurar e com uma elevada exigência moral, o Deus de Israel surgia ao povo eleito como qualquer coisa contra-intuitiva, quase como uma monstrusidade abstracta.

Afastados há muito da velha discussão entre os defensores da adoração de ídolos ou dos adoradores do Deus verdadeiro, não damos conta de que a idolatria está sempre pronta a renascer. Hoje não surge no campo religioso mas na vida profana, tornando-a, muitas vezes, ritualística e religiosa. As técnicas de marketing e de comunicação acabam por criar condições para que a nossa relação com os objectos, as pessoas e connosco se torne idolátrica. Não interessa saber quanto tempo dura o culto de um certo ídolo (por exemplo, do iPad ou do iPhone, do Cristiano Ronaldo, etc.), pois a morte de um ídolo significa apenas a sua substituição. 

A relação idolátrica - a fetichização de partes da realidade - é um dos processos mais eficazes de alienação contemporânea. Alienação no sentido exacto em que nos tornamos estranhos a nós próprios. É deste estranhamento a si mesmo que nascem outras alienações, nomeadamente as sociais, onde o indivíduo, seduzido pelo culto idolátrico, é incapaz de perceber as relações reais em que vive e olhar, fria e objectivamente, para o seu lugar na sociedade. Mas, é preciso sublinhar com veemência, a fonte de todas as alienações está no estranhamento relativamente à nossa dimensão espiritual, à negação do espírito, ao esquecimento que não somo apenas pura materialidade. Toda a emancipação espiritual é uma luta contra a idolatria, seja qual for a forma que ela tome, pois esta é a grande cilada onde o espírito incauto sucumbe.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Poemas do Viandante (419)

William Bouguereau - Evening mood (1882)

419. A servidão gloriosa de um corpo despido

A servidão gloriosa de um corpo despido,
o dissimulado átrio que te espera,
o fôlego suspenso, trémulo, ansioso...
Submisso ao relâmpago, componho um hino,
traço uma rota de âmbar e flores,
suspendo a visão na cal do olhar.

Crua e luminosa, cai a tarde,
e os teus ombros esperam quietos
o murmúrio de um barco rasgando o mar.
Uma cotovia incendeia o céu
e na boca ardem equinócios de veludo
sobre a palha queimada do amor.

Deito-me sobre o corpo inacessível
e espero o lento rumor de uma voz,
a secreta e sagrada semente,
a pétala marítima que se desprende,
ave de seda ateada:
fogo que canta, luz de sombra, alma ferida.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Alegorias e parábolas

André Masson- Alegoria (1935)

Platão recorre a alegorias, Cristo a parábolas. Tem-se a sensação que a linguagem comum, ou mesmo a linguagem unívoca utilizada na ciência, é impotente para exprimir a verdade. Seria um problema da linguagem e dos seus limites que conduziria à necessidade do uso deste tipo de figuras linguísticas. Pode haver, todavia, uma outra abordagem da questão. Podemos pensar que a forma como concebemos a realidade é já ela alegórica, que as nossas representações da realidade são verdadeiras parábolas. Por que motivo se usará, então, as alegorias e as parábolas se tudo o que concebemos como realidade é já alegoria e parábola? 

Se pensarmos a alegoria e a parábola não como revelação de uma verdade mas como a criação de uma tensão, poder-se-á encontrar uma chave para o problema. O que está e causa é criar, através da tensão que as alegorias e as parábolas ditas ou escritas criam ao confrontarem as alegorias e parábolas com que representamos a realidade, um espaço vazio onde o espírito possa, em liberdade, mergulhar e encontrar um caminho para a verdade. A verdade não está nem na representação da realidade nem oculta na alegoria e na parábola, mas no vazio - onde a linguagem está suspensa assim como a representação do real - que o choque cria para que o espírito nele mergulhe.

domingo, 2 de junho de 2013

Compor mundos

Wassily Kandinsky - Composição n.º 5 (1911)

Estamos, desde que nascemos, demasiado treinados para vermos em nós e naquilo que nos rodeia um mundo ordenado. Isso é de tal maneira assim que não suspeitamos que apenas acedemos a uma composição de elementos heteróclitos, acidentais e, muitas vezes, fantasmagóricos. A educação que os neonatos recebem desde o ventre materno visa treinar o olhar e o modo de estar na vida para essa organização, de tal maneira que, com o decorrer do tempo, acreditamos que as coisas são tal e qual nos aparecem e que a realidade é aquilo que aprendemos a ver e que o único caminho de vida é o que nos foi ensinado (com uma ou outra alteração de percurso, claro).

O primeiro passo do viandante talvez seja descobrir que a forma como compreende o mundo é uma composição que lhe foi transmitida pela educação, mas uma composição entre outras possíveis, uma composição útil mas que em si não tem outra verdade que não a utilidade quotidiana. A via, a partir dessa compreensão, torna-se, então, um caminho de descomposição e de recomposição, de um desfazer de mundos para os refazer, nessa experiência que nos afasta deste mundo que não é o nosso e nos conduz, se não nos perdermos na errância, à pátria perdida.

sábado, 1 de junho de 2013

O sintoma melancólico

Edvard Munch - Melancolia (1894-5)

No processo de transformação da vida em patologia, podemos compreender a melancolia como um estado depressivo ligado à sensação de impotência e ao desgosto perante a vida, algo que pertencerá ao foro psiquiátrico. Podemos, por outro lado, questionarmo-nos se a melancolia - aquela que, uma vez ou outra, se abate sobre qualquer um - não será sintoma de uma perda ontológica, como se viver fosse um processo de desrealização e de diminuição do nosso próprio ser. A melancolia antes de ser uma patologia é o sintoma de uma falta, de uma perda essencial. Representa um aviso de que aquele que está em viagem perdeu o caminho e corre o risco de soçobrar na mais pura errância.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Poemas do Viandante (418)

Carolus Duran - Danaë (1900)

418. O meu sexo brilha na boca do teu

O meu sexo brilha na boca do teu,
cometa sem nome e lâmpada sem luz,
um rasto de poeira cósmica
que te toca a pele e deixa a alma branca
na verdura azeda dos campos de batalha.

Canto o exercício do amor na solidão da alma
e escuto o pulsar das estrelas
na inquieta respiração dessas veias,
tintas de azul, presas na astúcia do corpo:
lentamente abre-se para o júbilo da água.

Os dias em que a quietude anuncia o mistério,
a cama de algas onde repousamos
perdidos, esquecidos do nome e do amor.
O meu sexo brilha na boca do mar
e espera, onda a onda, o voraz desejo,

o plâncton que te alimenta a carne
e me inclina para a nudez desses seios:
esperam solitários a solidão de uma boca.
Todo o amor brilha, abóbada constelada,
e ergue uma silhueta de feno em terra de barro.

Trago em mim o delírio de um céu desejante,
a antiga e perfeita ordem do cosmos,
as linhas circulares descritas pelos astros,
o secreto bambolear do teu ventre
batido pelas ondas selvagens da minha mão.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Haikai do Viandante (145)

Caspar David Friedrich - Mountainous River Landscape (1830-35)

Sagrada montanha
sob um céu de cinza e fogo:
luz que se entranha.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O mistério do visível

Benvenuto Benvenuti - O portão fechado (1907)

A porta fechada surge muitas vezes como um símbolo fundamental da vida dos homens. Simboliza a diferenciação de territórios, simboliza os processos de exclusão e de inclusão num dado grupo, simboliza o mistério, ao ocultar o que está para além dela, simboliza também o desafio e prova. A porta propõe um exercício de ultrapassagem da situação em que se está para uma nova situação desconhecida e misteriosa. Ao olharmos para o portão fechado representado no quadro de Benvenuto Benvenuti não encontramos, num primeiro momento, as características mais perturbantes de uma porta. Na verdade, este portão partilha com a porta fechada a mesma potência de demarcação territorial e traça também as regras do jogo da exclusão e da inclusão. Como na porta,não é a mesma coisa estar num lado ou no outro do portão. Falta-lhe, contudo, a dimensão central do mistério. O portão deixa ver em vez de ocultar. O transeunte pode constatar a continuidade entre os dois lados da fronteira, de que o portão fechado constitui o sinal e o lugar de passagem.

Esta sensação de ausência de mistério e de desafio é, porém, ilusória. A transição de um lado para o outro do portão implica uma mudança territorial e a submissão do sujeito a novas regras, as quais estão longe de ser conhecidas. O mistério reside não no que está oculto materialmente, mas nas regras inexpressas daquilo que se vê, e que ao ser visto parece ser conhecido ou idêntico ao conhecido. O mistério - porventura um mistério perturbante - está agora naquilo que é visível, naquilo que é opressivamente visível. Não há mistério maior do que aquilo que não aparenta mistério algum, como se a sua claridade, distinção e transparência fossem apenas o sinal do maior dos desafios. Passar aquele portão pode ser a maior das provações e a mais perigosa das aventuras. Perante ele, deve o viandante interrogar o seu coração e perguntar-se se será por ali o seu caminho.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Verdade e existência

Jules Joseph Lefebvre - A Verdade (1870)

Na tradição intelectual do Ocidente, a verdade é vista ora como revelação daquilo que está oculto - essa é a perspectiva platónica que tem frutuosa aplicação na literatura, nomeadamente na literatura policial - e a verdade como adequação à realidade das representações que o homem produz, por exemplo, na ciência. Um dos momentos mais surpreendentes dos textos evangélicos é aquele em que Cristo afirma que é a Verdade, a Via e a Vida. A questão da verdade é deslocada do elemento intelectual para uma perspectiva mais global. Poder-se-á dizer que, com o Cristianismo, a verdade se combina com a vida e com o modo como a vivemos. Há uns anos atrás, dir-se-ia que a verdade tem um sentido existencial. A verdade não é assim o resultado de uma estratégia cognitiva ou a resultante da justeza das nossas imagens do real, mas uma forma de caminhar na vida que mobiliza não apenas o intelecto mas todo o ser do homem. A verdade não é uma representação mas uma presença que, por ser verdadeira, se torna realidade.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

O abismo e a noite

Alfons Mucha - O abismo (1887-89)

Há um certo paralelismo entre a atracção pelo abismo e a noite escura da alma, tal como é pensada pelos místicos cristãos, nomeadamente por João da Cruz. Na noite escura, o místico sente-se abandonado por Deus e toda a vida espiritual parece perder o sentido. Na atracção pelo abismo há, também, uma experiência de abandono, mas de um sinal bem diferente. O sujeito sente que abandona os mecanismos que o mantêm à superfície e que se entrega à dissolução do sentido. A ausência de sentido que tudo então apresenta deve-se à impotência do indivíduo em coordenar as suas faculdades, para que estas imponham sobre o mundo uma gramática e um léxico que suportem um sentido digno de ser vivido. Ora, entregar-se à atracção do abismo é aceitar que as suas próprias faculdades se dissolvam e, nesta dissolução, arrastem o poder do sujeito em configurar o mundo. A noite escura dos místicos é um tempo e uma experiência de purgação, a atracção pelo abismo é apenas a entrada num processo de dissipação e perda.

domingo, 26 de maio de 2013

Poemas do Viandante (417)

Carlos Schwabe - A dor (1893)

417. A dor é uma melodia transbordante

A dor é uma melodia transbordante,
ruído que pousa na exuberância do corpo
e rasga uma estrada de excessos
que quebram o fôlego
e trazem a noite à claridade do meio-dia.

Pudesse a dor ter uma face geométrica,
ser circunscrita pela luz da razão,
e o mundo, tomado pela vertigem,
ergueria em cada sombra
um império de estrelas e constelações.

A infinita ferida, porém, tem mil caras
e a cada momento a metamorfose
traz um novo e infindável grito,
o suor  que dilacera o peito
e abre a pele para um refúgio insensato.

Um arquipélago de escaras ardentes,
um universo de feridas em expansão,
a fonte de onde nasce o mal.
Silêncio, silencioso silêncio, desce,
o corpo caído, turvo de suor, espera-te.

sábado, 25 de maio de 2013

Haikai do Viandante (144)

Caspar David Friedrich - Hut under snow (1827)

A velha cabana,
coberta de neve, abriga
a quem o frio chama.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

A ordem precária

Frantisek Kupka - Composição em azul (1925)

Ontem escreveu-se aqui sobre aqueles que, não encontrando um caminho, fazem da existência uma aventura no labirinto. Esta visão, contudo, não estará ainda demasiado dependente da teleologia de Aristóteles e da crença numa causa final? Se deixarmos de acreditar numa causa final que nos move, qualquer que ela seja (emancipação da humanidade, salvação da alma, progresso moral, desenvolvimento técnico, etc. etc.), o que acontecerá? De imediato, a vida deixa de ser interpretada como caminho para um fim determinado, muitas vezes a priori. Com a queda da ideia de um caminho determinado, desaparece também o fantasma do labirinto. O labirinto é ainda um caminho, mas em versão múltipla, entrecruzada e dispersa. 

Do ponto de vista do espírito - da aventura espiritual do homem - fará sentido ter um caminho? Não é o espírito como o vento que sopra onde quer? Se o espírito, aos nossos olhos mortais, é assim, arbitrário e indeterminado, não será a vida uma contínua composição com materiais heteróclitos e dispersos, criando figurações inesperadas, desenhando constelações perecíveis, inventando fronteiras móveis que, continuamente, desenham novos e novos territórios. Talvez a ideia de caminho ainda esteja demasiado presa à mitologia do caos e do cosmos, à construção de uma ordem fixa sobre a matéria prima caótica. Não se trata, todavia, de ceder ao caos, mas de lidar continuamente com ele, configurando-o uma e outra vez, num processo sem fim. Talvez o enigma da vida esteja aí, no facto de não haver nenhum caminho, mas apenas o sítio onde se está e que apela para que lhe imponhamos uma ordem precária, que outros desfigurarão para a tornarem a  configurar.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

O caminho e o labirinto

Chaim Soutine - Landscape with Ascending Road (1918)

Seguia o caminho que devia seguir, com um passo indolente e irregular, assobiando e olhando ao longe, a cabeça inclinada para o lado, e se se enganava no caminho, é porque para certos seres não existe verdadeiro caminho.

Quando se lhe perguntava o que ele pensava vir a ser, dava respostas variáveis, pois tinha o hábito de dizer (já o tinha notado) que trazia nele as possibilidades de uma quantidade de existências, juntas à consciência secreta que elas eram, no fundo, puras impossibilidades. (Thomas Mann, Tonio Kröger)

Se a natureza quer perder alguém, nada melhor do que dotá-lo de múltiplas capacidades e fazer suspeitar nesse alguém inúmeras vidas possíveis. Atraído pela exuberância dos dotes, experimenta mil caminhos. Todos são os seus caminhos, mas na verdade nenhum é o caminho. A vida torna-se pura perda, incapacidade de escolha, ausência de fim, um tormento silencioso e cumulado de derrotas. Quantas vezes essa pessoa deseja, no fundo de si mesma, um horizonte tranquilo, apenas rasgado pelo caminho ascendente que o levará à meta, à única meta que lhe diz respeito. Mas a ele não lhe cabe esse destino, pois é um viandante sem caminho. Melhor, é um viandante perdido no seu próprio labirinto.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Eis aqui o homem

Baldomero Romero Ressendi - Ecce Homo

Saiu, pois, Jesus fora, levando a coroa de espinhos e roupa de púrpura. E disse-lhes Pilatos: Eis aqui o homem. (João 19:5)

Numa sociedade como a nossa, a apresentação do homem flagelado, amarrado, coroado de espinhos, em suma, completamente humilhado, caso a nossa época não estivesse saturada de imagens e não se tivesse tornado insensível a elas, seria uma verdadeira provocação. Os nossos tempos são tempos de homens vitoriosos. Só os vencedores contam. Quem quer rever-se numa imagem de um Cristo humilhado? O cristianismo tornou-se, para as ideias dominantes, aquilo que há de mais repulsivo. A repulsa nasce, em primeiro lugar, da má-consciência - quando existe ainda alguma consciênca - pois este homem humilhado e à beira da execução é a imagem fiel dos milhões de homens humilhados e sobre a dor dos quais se constrói a vitória dos vencedores.

A repulsa tem, porém, ainda outra origem. O que diz Pilatos à multidão ululante? Diz: Ecce homo (eis aqui o homem). Aparentemente, Pilatos estava a apresentar um homem particular, Jesus de Nazaré. Na verdade, porém, ele estava a mostrar à multidão o homem na sua humanidade. Ele devolvia à multidão a imagem de cada um, a terrível imagem da finitude e da impotência humanas perante os poderes do mundo. E é isso que a multidão daqueles dias, assim como os vitoriosos de hoje, não suportam. A arrogância, a velha hübris dos gregos que herdámos e com tanto vigor cultivámos, não suporta a visão do homem finito, limitado e, na verdade, absolutamente impotente perante a desmesura da vida e da morte. Este Cristo abandonado à dor e à morte é insuportável. E é insuportável porque nos detestamos na nossa verdadeira e última condição.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Presença e meditação

Eugène Carrière - Meditação (1900)

O senso comum pensa muitas vezes a meditação como uma espécie de ensimesmamento do sujeito, uma fuga da realidade e do mundo da acção. Os estados meditativos seriam, desse modo, uma alienação e uma errância do sujeito na sua vida interior. No entanto, esta visão é muito limitada. Os estados meditativos podem ser momentos de grande atenção à realidade, aquilo a que se poderia chamar uma sobre-atenção, onde o espírito se abre livremente para o fluir do acontecer. Por outro lado, a própria acção deveria ser consumada em estado meditativo, como se ela fosse a expressão directa de um espírito livre e atento a cada instante e a cada gesto. Isto só tem sentido, contudo, se se entender a meditação como a presença plena e desperta do sujeito em cada instante e em cada gesto, como a substituição dos estados representativos da inteligência pela presentificação do espírito na vida quotidiana, já que não há outra vida que não a quotidiana.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Poemas do Viandante (416)

Edward Burne Jones - O lamento (1866)

416. Nas cinzas de um lamento há uma rosa

Nas cinzas de um lamento há uma rosa,
a flor perdida da primeira inocência,
rasto severo da obscura mão do destino.
A maculada consciência é um fruto tardio,
memória de poeira em pedra de carvão.

Dobro-me sobre a vida que passou
e deixo correr entre dedos
cada momento em que o mal me tocou,
criou raízes na terra dura da verdade
e me abriu, negro e férreo, para a irrisão.

Não tenho palavras para todas as confissões.
Gastei-as errando pelas veredas de sombra,
abrindo caminhos de aço na solidão do mundo.
Entoo a patética elegia da inocência
e escuto rendido o amanhecer da saudade.

domingo, 19 de maio de 2013

Caminho interior

Kenneth Noland - Caminho interior (1961)

Na vida dos homens talvez não faça sentido distinguir entre caminho interior e caminho exterior. O único caminho - ainda que diferente para cada um - é o caminho interior. Na exterioridade, não há caminho algum, apenas becos sem saída, onde os homens desesperam e perdem o sentido das suas vidas. Em si mesmo, cada um encontrará o alvo para onde deverá dirigir a seta da sua acção. Quem se perde de si e mergulha nas trevas exteriores substitui o caminho pelo labirinto, do qual não tem o fio de Ariadne que lhe permita retornar à luz e à vida.

sábado, 18 de maio de 2013

Haikai do Viandante (143)

Albert Bierstadt - Atardecer en la pradera (1870)

O rumor da tarde
ateia incêndios nos céus.
Tudo, tudo arde.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

O prazer da transfiguração

Mikhail Aleksandrovitch Vrubel - A Primavera (1897)

Não sei se alguma Primavera me surpreendeu tanto quanto a deste quadro de Vrubel. No lugar da alegria triunfante sobre a noite invernosa, encontramos a pura contenção. No lugar da exteriorização, vemos a discreta interioridade. No lugar das cores vivas, são os tons melancólicos que dominam. Talvez toda a sabedoria se resuma em apreender em cada coisa o seu contrário e perceber a realidade como um todo indivisível. Na alegria primaveril é preciso intuir, de imediato, a melancolia do outono, e saber que nesta está já toda a esperança de uma nova primavera, como se para o espírito as várias figurações do tempo não passassem de um jogo em que o mesmo, aquilo que permanece idêntico, se entrega ao puro prazer da transfiguração.