sexta-feira, 8 de junho de 2012

Da adoração dos ídolos

Umberto Boccioni - Idolo Moderno (1911)

Se há característica específica do tempos modernos, essa é a da idolatria. Perante o desafio da vida e as exigências da viagem em direcção a si mesmo, o homem moderno de tudo faz um ídolo onde se aliena e se perde. A idolatria é a fuga perante o espírito, a deificação da materialidade evanescente, das pequenas coisas que a nossa faculdade de desejar toma como objecto momentâneo de prazer. No exercício idolátrico, contudo, cada ídolo arvorado pelo homem sofre, apesar do culto prestado, uma diminuição no seu verdadeiro ser. Um ídolo nasce da separação da realidade a que pertence.  É esse corte que permite a aparente absolutização que está presente na adoração. Mas essa separação destrói as ligações que mantêm na realidade o ente idolatrado, o tornam em nada, o despem de todo o conteúdo ontológico. É este nada, e não mais do que ele, aquilo que a coisa adorada tem para oferecer ao adorador. O niilismo não é outra coisa que o processo de idolatria em curso há séculos. Sob o efeito do ídolo arquetípico, o homem transforma-se à sua imagem e semelhança, isto é, toma o nada como a sua efectiva natureza.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Poemas do Viandante (271)

Kazimir Malevich - Por la mañana, después de la tormenta, en la aldea (1912)

271. Malevich, Por la mañana, después de la tormenta, en la aldea

veio a neve
incendiou a noite
trouxe clarões de seda
sobre as ruas

e na brancura da tempestade
o sol inscreveu
frio e cortante
o sopro do dia

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Haikai do Viandante (82)

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

súbita alquimia
transforma o chumbo nocturno
em oiro do dia

terça-feira, 5 de junho de 2012

O peso da sombra

Francis Bacon - Study for a Portait of Van Gogh V (1957)

Aquilo que pesa na viagem não é a materialidade do corpo. O grande obstáculo, o que está submetido ao império da gravidade, o que torna o passo mais lento é o peso da sombra. Quanto mais baixo estiver o sol, mais pesada se torna a nossa sombra. Ao nascer, a sombra é apenas uma possibilidade. Ao avançar na vida, a sombra pega-se a nós, cresce desmesuradamente, torna-se opaca, sólida. O pobre viandante está condenado a arrastar atrás de si essa sombra que foi acumulando. Sábio seria o homem que, ao viver, nunca acumulasse sombra, pois caminharia leve e nada o reteria na viagem. Mas nascemos sem sabedoria e, conforme a vida se vai desenrolando, mais longe ficamos dela, até que, vergados ao peso da sombra, ficamos estáticos e entramos no reino das sombras, onde a morte espera silenciosa por nós.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Haikai do Viandante (81)

Jackson Pollock - Convergence (1952)

este estranho mapa
traça rios na floresta
sob um sol que mata

domingo, 3 de junho de 2012

Poemas do Viandante (270)

Kazimir Malevich - Mujer cogiendo flores (1908)

270. MALEVICH, MUJER COGIENDO FLORES

colho-te  no olhar
a pele nua
e em cada flor
uma pétala voa
pássaro de água
no sussurro da rua

sábado, 2 de junho de 2012

Haikai do Viandante (80)

Jackson Pollock - Galaxy (1947)

galáxias de tinta
nascem dos olhos e mãos
astros de quem sinta

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A pobreza mais radical

Jiri Georg Dokoupil - Cuadro de neumáticos beige gris (1991)

Um rasto é aquilo que a vida vivida deixa atrás de si. Por vezes, confundimos a memória, esse estratagema da ilusão de si, com o acontecido. Mas este desvaneceu-se, pulverizou-se, foi deglutido pela gula de Cronos. O que fica são traços, leves sinais, um risco no tampo da mesa, o rasto de pneus no alcatrão da vida. Incapazes de suster o momento, de permanecer perante o instante, sublimamos a nossa impotência olhando o que deixámos para trás ou refugiando-nos na expectativa do que há-de vir. Reside aqui, nessa impossibilidade de coincidir com o tempo onde existimos, todo o desconforto da espécie humana. Por isso, evadimo-nos ora para o passado ora para o futuro, como se fosse impossível fazermos do presente, desse presente pontual onde somos o que somos, a nossa casa. A nossa pobreza, aquela que é mais radical, não se encontra no facto de termos sido pobres ou no de o virmos a ser. Ela reside no simples facto de não encontramos abrigo no tempo presente.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Transparências

Eva-María Wilde - sem título (2000)

Tudo o que é transparente oculta, esconde, desvia o olhar. Quantas vezes sonhamos com uma consciência, a nossa, transparente a nós mesmos, para que nessa transparência possamos descobrir os motivos mais próprios do que amamos e desejamos ou dos nossos ódios mais fundos? Mas mal olhamos para essa consciência, logo que fazemos incidir a luz sobre ela, tudo se começar a turvar, a tornar sombrio, até que a opacidade mais densa cai sobre nós. Quem evidencia grandes e alegres transparências do seu ser muito quer ocultar. Devemos, por motivo de precaução, desconfiar da transparência dos outros. Da nossa, porém, devemos duvidar por uma questão de probidade.

Haikai do Viandante (79)

Jackson Pollock - Mural (1943)

estamos tão perto
uma girândola de cores
o espaço deserto

quarta-feira, 30 de maio de 2012

O desejo fragmentado

Kurt Schwitters - Los Angeles (1943)

Será a realidade uma colagem de fragmentos ou a sua imagem fragmentada resulta das múltiplas intencionalidades do nosso desejo? Relativos e finitos, suportamos o peso de uma faculdade de desejar sem limites. Coisas, objectos, uma paisagem, por vezes o sorriso outras um olhar, depois o toque de uma pele, para chegar a vez de um sonho ou de uma ilusão, tudo isto entra por nós, revolve-nos, cria uma dinâmica, estabelece um desequilíbrio no sistema hidráulico que nos liga ao mundo. Cindidos, fracturados, num mundo em estilhaços, desejamos o Absoluto, esse exercício de libertação das tiranias da relatividade. Este, porém, não desarma e sussurra: descobre-me em cada fragmento, naquele olhar que amaste, na pele que desejaste, no objecto que te fez sonhar, na dor a que fugiste. Estou aí, estou em cada lugar onde o mundo se estilhaça e decompõe, sou o ser em tudo o que deixa de ser, o desejável de cada desejo. Sou o teu desejo e a coisa desejada, sou a intenção desejosa e o prazer consumado.

Haikai do Viandante (78)

Jackson Pollock - Landscape with Steer (1935-37)

vento na paisagem
rasga a terra e para o céu
abre uma passagem

domingo, 27 de maio de 2012

Poemas do Viandante (269)

Kazimir Malevich - Airplane Flying (1915)

269. MALEVICH, AIPLANE FLYING

um voo de sisal
e os teus dedos
negros e amarelos
vermelhos e belos
escrevem segredos
num céu de cal

sábado, 26 de maio de 2012

Haikai do Viandante (77)

Jackson Pollock - Totem Lesson II (1945)

animais totémicos
cuidam da vida no mundo
dos homens anémicos

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Haikai do Viandante (76)

Jackson Pollock - Totem Lesson I (1944)

quimera ardente
guarda a noite em silêncio
louca e paciente

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A sabedoria do não saber

Max Ernst - Oedipus Rex (1922)

Todos esses fantasmas que transportamos em nós, essas sombras que cresceram no lugar onde o medo abriu brechas, são sintomas de um espírito pouco ciente do seu caminho. Não é que a sabedoria nos diga qual o caminho, que passos deveremos, com segurança e certeza, dar a cada momento. O caminho faz-se sem mapa, sem bússola, sem roteiro de viagem. A sabedoria está apenas no aceitar da incerteza, está em fazer da não ciência a única ciência que podemos e devemos transportar. Quando se chega aqui diz-se: não sei para onde vou, mas vou. Abandonados à peregrinação, ela tratará de trazer novos caminhos e outras metas, ela guiará o viandante que se entregou à volúpia do caminho. Na pura entrega à viagem, o medo e as sombras perderam o lugar que tinham tomada dentro do viajante.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Haikai do Viandante (75)

Jackson Pollock - Echo (1951)

traços negros traços
sobre fundo branco lembram
súbitos abraços

terça-feira, 22 de maio de 2012

Haikai do Viandante (74)

Jackson Pollock - Blue (Moby Dick) (1943)

a velha baleia
ainda no azul do mar
um fogo ateia

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Haikai do Viandante (73)

Jackson Pollock - Circuncisión (1946)

um pássaro voa
e na planície o verde 
do azul destoa

domingo, 20 de maio de 2012

Poemas do Viandante (268)

Chenu - Los Rezagados; Impresión de Nieve (1875)

268. CHENU, Los Rezagados; Impresión de Nieve

um lírio pelo chão
e um manto de cinza
cobre o céu

o inverno chegou
animal furtivo
perdido nos laços
do velho caçador

o meu coração balança
agita-se e espera
por ti no lugar 
onde a neve poisou

sábado, 19 de maio de 2012

Do relativo perante o absoluto

Frank Auerbach - Euston Steps (1981)

Passo a passo, degrau a degrau. Assim nos aproximamos do Absoluto, pensamos. Não será, porém, incomensurável a nossa relatividade e o Absoluto a que nos propomos chegar? Essa alteridade não será uma barreira? Sim, mas essa barreira está toda no nosso olhar. Não há degrau que nos leve ao Absoluto, nem passo que faça avançar no caminho. Estamos mergulhados no Absoluto, apenas a nossa relatividade nos cega e leva-nos a imaginar um caminho, uma escada, uma meta, um fim. Mas tudo isso são fugas da luz, de uma luz que, de tão intensa, é negra e cega.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Haikai do Viandante (72)

Van Gogh - Cabañas con techo de paja (1890)

Palha por telhado,
um súbito tom de azul
no tempo cansado.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Desinventar a linguagem

Max Beckmann - Embarcadero de hierro

Sou uma ponte, não aquela que liga o animal ao super-homem, mas a que vai daquele nada de onde vim para esse outro nada para onde me dirijo. Será, porém, alguma coisa essa ponte que liga dois nadas? Não. A ponte ainda é nada. Quando falamos em nada, enredamo-nos de imediato nas dicotomias e simplificações da linguagem, nas armadilhas da lógica, nas seduções da retórica. Quem nos disse que o nada tem por contrário o ser? Quem nos garante que o nada de onde vim é o mesmo para onde vou ou aquele que sou? Tantos lugares comuns, tantos espaços cansados pela utilização quotidiana. Precisamos de rasgar as gramáticas, esquecer a lógica e refazer o dicionário. Talvez Deus, que despreza a gramática, confunde-se com a lógica e só conhece uma palavra, se aproxime de nós ou nós dele. O homem não é o pastor do ser, mas o nada que tem por missão abrir crateras no tecido da língua. O homem é a ponte que leva de um a outro silêncio. Precisamos de desinventar a linguagem.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Poemas do Viandante (267)

Degas - Patio de una casa en Nueva Orleans (1872)

267. DEGAS, PATIO DE UNA CASA EN NUEVA ORLEANS

os dias de inocência
tecidos de animais
e pequenos jardins
são primaveras
perdidas nas folhas
de um velho calendário

se fosse orfeu
pegaria na lira
e deixaria correr
a água do rio
entre as minhas mãos
ávidas de terra
esquecidas dos dias
em que o anjo solitário
olhava para mim

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Uma estranha presença

Jean de Beaumetz - The Cruxifixion with a Carthusian Monk (1389-1395)

Esta intromissão anacrónica de um monge cartuxo na crucificação de Cristo não é um devaneio artístico nem, tão pouco, um acto arrebatado de fé, mas uma meditação sobre a natureza dos acontecimentos religiosos. O que Jean de Baumetz faz é abolir a história, dissolver o tempo. Mas não pretende negar nem história nem tempo, mas tornar evidente que o acontecimento histórico e temporal da morte de Cristo não pertence à história, mas à eternidade. A morte do Cristo, bem como o seu nascimento e a sua ressurreição, por serem eternos, podem acontecer a cada instante do tempo. O monge cartuxo representa cada um de nós contemplando esse acontecimento central na história da humanidade ocidental. Central, porque não pertence a essa história, e por não lhe pertencer move-a, organiza-a, prescreve-lhe, no silêncio da eternidade, o seu secreto fim. A estranha presença não é a do monge perante o Cristo crucificado, mas a presença de Cristo perante cada um de nós, aqui e agora.

sábado, 12 de maio de 2012

Fractura e harmonia

Benvenuto Benvenuti - La case delle armonie celeste (1911-1913)

O sentimento de fractura que, desde muito cedo, se insinua em nós traz consigo uma exigência a realizar na vida. Essa exigência é a da reconstituição da harmonia perdida. Não sei bem qual foi o momento em que senti ter deixado o estádio ingénuo da harmonia primeira para entrar no jogo, um jogo quase desesperado, para equilibrar as partes fracturadas. No hiato entre elas insinua-se um estranho exigência de absoluto. Esta insinuação traz uma lição consigo: não mais é possível restabelecer a ingénua harmonia, esse paraíso perdido dos primeiros tempos de vida. A fractura destruiu a inocência e esta não mais é possível. O conhecimento do mal é uma etapa, então, para esse absoluto. A exigência de absoluto significa a conquista de um novo estádio de inocência, não de uma inocência inocente, mas de uma inocência que se inocentou ao viver a culpa, de uma harmonia que se harmonizou pela mediação da fractura. É para isso que todos temos de passar por esse momento em que o fruto da árvore do bem e do mal nos seduz e joga em plena vida mundana.


sexta-feira, 11 de maio de 2012

Solidão e silêncio

George Pierre Seurat - Port-en-Bessin (1888)

A aprendizagem da solidão e do silêncio  não significa um exercício de afastamento dos outros, uma negação da dimensão social e comunitária que nos constitui, o pôr fim à comunicação, mas uma viagem para si próprio, para aquilo que há de mais fundo em nós. Todo o nascimento significa um acto de separação, mas um acto de separação que constitui um nós. Ao nascer, a criança separa-se da mãe. O corte do cordão umbilical, porém, significa que agora há novas realidades. Não apenas um novo ser, mas uma nova comunidade entre mãe e filho, um terceiro termo. O importante é que o nós instituído, os vários nós que se instituem, sejam um caminho para uma cada vez mais completa individuação. Tornar-se indivíduo é o enfrentar o mistério que nos constitui. Este exige a solidão e o silêncio. O essencial é tornar-se só mesmo estando com os outros, silenciar-se mesmo se comunicamos e partilhamos palavras. Solidão e silêncio não são coisas negativas que se sofram, mas aquilo que activamente se procura nessas horas em que estamos rodeados e conversamos. Só aqueles que amam a solidão e o silêncio têm alguma coisa para dizer. Mas nada melhor do que a silenciosa conversa de solitários.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Haikai do Viandante (71)

Vincente Van Gogh - Cabañas con tejado de paja en Chaponval (1890)

Mundo de erva e palha,
sombra da memória presa
na luz que nos calha.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Poemas do Viandante (266)

John Singer Sargent - View of Capri (1878)

266. SARGENT, VIEW OF CAPRI

sei o teu nome
feito de espera
muro branco
preso numa teia

sei as tuas horas
errâncias antigas
por estradas
e caminhos de areia

sei o teu corpo
névoa dedilhada
em noites
de lua cheia

terça-feira, 8 de maio de 2012

O desejo de partir

Ricardo Sanchez - Estación de Soria

Sedentários, somos por vezes acometidos pelo desejo de partir, sem que um destino esteja encontrado, mas como entrega ao puro devir, à surpresa da jornada, àquilo que o caminho traz e oferece ao viandante. Esta mitologia nómada, contudo, não é inimiga nem contrária à vida sedentária. Contrariamente ao que muitas vezes se pensa, não é o espaço o elemento central da viagem, mas o tempo. Se compreendemos que a essência do viajar é a temporalidade, de imediato percebemos que se pode viajar sem se mover no espaço, entregando apenas corpo e espírito ao fluir do tempo. Caminhar, percorrer espaços, deslocar-se de um sítio para outro, tudo isso implica um esforço físico para vencer distâncias. Viajar no tempo é diferente. Abdicamos da nossa iniciativa e da nossa autonomia e somos levados, inevitavelmente, mais adiante, sempre mais adiante. A viagem no espaço, esse velho nomadismo, ainda contém a possibilidade de um retorno. Por isso, essa viagem tem pouco de decisivo. Viajar no tempo, o deixar-se embalar pelo fluxo dos instantes é actividade sumamente perigosa, pois ela traz consigo duas certezas. A primeira diz-nos que não há retorno ao ponto de partida; a segunda radica na morte como destino final da viagem. O desejo de partir é a reverberação em nós do chamamento da morte.