segunda-feira, 14 de maio de 2012

Uma estranha presença

Jean de Beaumetz - The Cruxifixion with a Carthusian Monk (1389-1395)

Esta intromissão anacrónica de um monge cartuxo na crucificação de Cristo não é um devaneio artístico nem, tão pouco, um acto arrebatado de fé, mas uma meditação sobre a natureza dos acontecimentos religiosos. O que Jean de Baumetz faz é abolir a história, dissolver o tempo. Mas não pretende negar nem história nem tempo, mas tornar evidente que o acontecimento histórico e temporal da morte de Cristo não pertence à história, mas à eternidade. A morte do Cristo, bem como o seu nascimento e a sua ressurreição, por serem eternos, podem acontecer a cada instante do tempo. O monge cartuxo representa cada um de nós contemplando esse acontecimento central na história da humanidade ocidental. Central, porque não pertence a essa história, e por não lhe pertencer move-a, organiza-a, prescreve-lhe, no silêncio da eternidade, o seu secreto fim. A estranha presença não é a do monge perante o Cristo crucificado, mas a presença de Cristo perante cada um de nós, aqui e agora.

sábado, 12 de maio de 2012

Fractura e harmonia

Benvenuto Benvenuti - La case delle armonie celeste (1911-1913)

O sentimento de fractura que, desde muito cedo, se insinua em nós traz consigo uma exigência a realizar na vida. Essa exigência é a da reconstituição da harmonia perdida. Não sei bem qual foi o momento em que senti ter deixado o estádio ingénuo da harmonia primeira para entrar no jogo, um jogo quase desesperado, para equilibrar as partes fracturadas. No hiato entre elas insinua-se um estranho exigência de absoluto. Esta insinuação traz uma lição consigo: não mais é possível restabelecer a ingénua harmonia, esse paraíso perdido dos primeiros tempos de vida. A fractura destruiu a inocência e esta não mais é possível. O conhecimento do mal é uma etapa, então, para esse absoluto. A exigência de absoluto significa a conquista de um novo estádio de inocência, não de uma inocência inocente, mas de uma inocência que se inocentou ao viver a culpa, de uma harmonia que se harmonizou pela mediação da fractura. É para isso que todos temos de passar por esse momento em que o fruto da árvore do bem e do mal nos seduz e joga em plena vida mundana.


sexta-feira, 11 de maio de 2012

Solidão e silêncio

George Pierre Seurat - Port-en-Bessin (1888)

A aprendizagem da solidão e do silêncio  não significa um exercício de afastamento dos outros, uma negação da dimensão social e comunitária que nos constitui, o pôr fim à comunicação, mas uma viagem para si próprio, para aquilo que há de mais fundo em nós. Todo o nascimento significa um acto de separação, mas um acto de separação que constitui um nós. Ao nascer, a criança separa-se da mãe. O corte do cordão umbilical, porém, significa que agora há novas realidades. Não apenas um novo ser, mas uma nova comunidade entre mãe e filho, um terceiro termo. O importante é que o nós instituído, os vários nós que se instituem, sejam um caminho para uma cada vez mais completa individuação. Tornar-se indivíduo é o enfrentar o mistério que nos constitui. Este exige a solidão e o silêncio. O essencial é tornar-se só mesmo estando com os outros, silenciar-se mesmo se comunicamos e partilhamos palavras. Solidão e silêncio não são coisas negativas que se sofram, mas aquilo que activamente se procura nessas horas em que estamos rodeados e conversamos. Só aqueles que amam a solidão e o silêncio têm alguma coisa para dizer. Mas nada melhor do que a silenciosa conversa de solitários.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Haikai do Viandante (71)

Vincente Van Gogh - Cabañas con tejado de paja en Chaponval (1890)

Mundo de erva e palha,
sombra da memória presa
na luz que nos calha.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Poemas do Viandante (266)

John Singer Sargent - View of Capri (1878)

266. SARGENT, VIEW OF CAPRI

sei o teu nome
feito de espera
muro branco
preso numa teia

sei as tuas horas
errâncias antigas
por estradas
e caminhos de areia

sei o teu corpo
névoa dedilhada
em noites
de lua cheia

terça-feira, 8 de maio de 2012

O desejo de partir

Ricardo Sanchez - Estación de Soria

Sedentários, somos por vezes acometidos pelo desejo de partir, sem que um destino esteja encontrado, mas como entrega ao puro devir, à surpresa da jornada, àquilo que o caminho traz e oferece ao viandante. Esta mitologia nómada, contudo, não é inimiga nem contrária à vida sedentária. Contrariamente ao que muitas vezes se pensa, não é o espaço o elemento central da viagem, mas o tempo. Se compreendemos que a essência do viajar é a temporalidade, de imediato percebemos que se pode viajar sem se mover no espaço, entregando apenas corpo e espírito ao fluir do tempo. Caminhar, percorrer espaços, deslocar-se de um sítio para outro, tudo isso implica um esforço físico para vencer distâncias. Viajar no tempo é diferente. Abdicamos da nossa iniciativa e da nossa autonomia e somos levados, inevitavelmente, mais adiante, sempre mais adiante. A viagem no espaço, esse velho nomadismo, ainda contém a possibilidade de um retorno. Por isso, essa viagem tem pouco de decisivo. Viajar no tempo, o deixar-se embalar pelo fluxo dos instantes é actividade sumamente perigosa, pois ela traz consigo duas certezas. A primeira diz-nos que não há retorno ao ponto de partida; a segunda radica na morte como destino final da viagem. O desejo de partir é a reverberação em nós do chamamento da morte.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Da felicidade

Charles Lapicque - L'invitation au bonheur (1954)

Estranho desejo esse que toca a todos os homens, o de uma vida feliz. Filosofia e religião, arte e ciência, mesmo a política, tudo se move em nome da felicidade. No entanto, apesar dos múltiplos convites que ela dirige ao homem, sempre lhe escapa, persistente miragem no deserto da vida. O que seríamos nós, seres humanos, se abandonássemos a velha dicotomia feliz-infeliz? O que aconteceria se eliminássemos o desejo de felicidade e riscássemos do mapa sentimental a infelicidade? Talvez nesse momento coincidíssemos connosco e nenhuma brecha se abrisse no nosso ser. Mas não será essa coincidência consigo aquilo que sentimos quando nos sentimos felizes? E a busca da felicidade não se deve a essa distância entre o que somos e o que desejamos? E a infelicidade não nasce da constatação de um hiato entre desejo e realidade? Talvez não haja coisa que causa mais infelicidade do que a ideia de felicidade, essa revolta contra o que, a cada instante, somos.

domingo, 6 de maio de 2012

Haikai do Viandante (70)

Van Gogh - Banco de piedra en el jardín del Hospital de Saint-Paul (1889)

Sentado, descanso
na pedra o corpo dorido,
e logo avanço.


sábado, 5 de maio de 2012

Da arte da dança

Giorgio Morandi - Natura Morta (1918)

A tensão entre corpo e espírito é o cerne da nossa natureza viva. O desprezo pelo corpo, a sua negação, o ódio ao que ele traz consigo são formas de morte, mas de uma morte onde o próprio espírito morre. Também a eliminação do espírito, dos seus anseios e desejos, é uma forma de solidificar o corpo, torná-lo numa verdadeira natureza morta. Dividir o ser em duas partes é já uma decisão arbitrária, mas à qual não podemos fugir, pois foi assim que o mundo e o estar nele nos foi ensinado. O importante é aprender o jogo que as partes devem uma à outra e jogá-lo. A finalidade desse jogo não é a vitória de uma parte sobre a outra, mas abolir a fronteira onde a divisão se dá. Abolir a fronteira não significa uma decisão jurídica proferida por uma instância independente ou um tratado onde as partes, mantendo-se enquanto partes separadas e distintas, deixam o viandante transitar de um território para o outro sem necessidade de passaporte e paragem na alfândega. Abolir a fronteira significa que já não há juiz que sentencie nem partes que assinem tratados, tão pouco um viandante que as percorra. Significa apenas que corpo e espírito se fundiram e nessa fusão são alimentados pela tensão. Não já a tensão inicial entre corpo e  espírito, mas a tensão que resulta agora da tendência para a separação e o desejo de aprofundar a fusão. A tensão inicial deu lugar ao jogo, e este à dança. O ser dança e não é possível dançar sem que uma tensão percorra cada célula daquele que dança, que a alimente e a impulsione no seu movimento, na sua luta contra a gravidade.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Poemas do Viandante (265)

Cézanne - Uma tarde em Nápoles
265. CÉZANNE, UMA TARDE EM NÁPOLES

invisível raiz 
vinha pela tarde
sombra
cair solícita
na lassidão dos dedos

o vozear longínquo
apagava-se
e o tremor da pele
indicava
o sopro do vento

quinta-feira, 3 de maio de 2012

De noite em noite

Max Ernst - Las fases de la noche (1946)

Várias são as modalidades da nossa cegueira. Entre a noite trazida pela sofreguidão do desejo e a noite criada pela luz que tudo obscurece existem mil cambiantes. A noite não é apenas o complemento do dia, mas a metáfora perfeita da nossa condição terrestre. Anoitece-nos o desejo, os sentidos, o dever, a vontade e a imaginação. Negra é ainda a luz que vem da razão, tão negra quando a do sentimento ou da paixão. Negra é a noite escura da alma ou a iluminação divina que cai sobre o homem. Na terra caminhamos de noite em noite, arrastamos toda uma paleta de pretos, como se a nossa ausência de luz pudesse ter cambiantes, e as noites se diferenciassem. Somos como Édipo em Colona, caminhos cegos. Não é preciso matar o pai e casar com a mãe, basta nascer para cair na escuridão.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

O obstáculo

Arpad Szenes - El Obstáculo (1935)

Quantas vezes olhamos para os obstáculos que se deparam no caminho como a emanação de forças externas que, contra a nossa vontade, nos coagem e nos limitam. Não seria, porém, de nos questionarmos acerca da origem dessas forças? Serão elas, de facto, provenientes do inimigo externo ou esse inimigo não é uma projecção do nosso inimigo interno? Não é uma certa predisposição do espírito que nos leva direitos ao obstáculo? A experiência do obstáculo é, antes de mais, a experiência dos nossos limites e da nossa finitude espácio-temporal, mas é, também, a experiência das nossas ilusões e dos nossos desejos e imaturidade. Os obstáculos são um retrato da vida espiritual, mas ainda um convite a aprender a lidar com ela. O obstáculo tem, desta forma, uma natureza equívoca: retrato  dos limites da vida espiritual e desafio a quebrar esses limites, a ultrapassá-los, a conviver com eles como se else não fossem obstáculos, mas propulsores do Viandante no caminho.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Haikai do Viandante (69)

Van Gogh - A Pair of Shoes (1886)

Caminho perdido
e se o cansaço vem
na terra me abrigo.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Manifestações do sagrado

Jackson Pollock - Sem título (1939-40)

Observamos a realidade sempre de uma forma sintética. Os elementos heteróclitos que a compõem são-nos dados como se fizessem parte de um todo e possuíssem entre si uma ligação. Mas, ao mesmo tempo, temos a percepção da multiplicidade de elementos heteróclitos, como se, no instante em que o espírito sintetiza e nos oferece uma totalidade, ele se entregasse a um acto de vandalismo e cortasse o todo em milhentos fragmentos. É com este jogo da análise e da síntese, do todo e da parte, do ser e do ente que o espírito constrói as descrições daquilo a que chamamos real. Mas não será tudo isso ainda fruto de um impulso biológico para a sobrevivência e uma construção social aprendida a partir da mais precoce infância? Parece-me tudo isso demasiado animal e demasiado social, isto é, demasiado humano, para ter alguma relação com a realidade em si e com a verdade. Quando se fala em teofanias, milagres e manifestações diversas do sagrado, temos a tendência para perceber essas irrupções como suspensão da ordem da natureza, uma contradição com as leis  das ciência naturais e com a própria natureza. Não estará, contudo, a questão mal colocada? Não serão essas manifestações uma suspensão da nossa descrição do mundo, irrupções que, como uma metáfora poderosa que altera o sentido do texto, desconstroem a habitual imagem do mundo? Nas manifestações do totalmente outro, para usar a designação de Otto para sagrado, não será a ordem da natureza que é posta em causa, mas os processos bios-sociais com que nos adaptamos ao mundo e nos habituamos a ele, tornando-o habitável pelo hábito de uma descrição consolidada dos estados de coisas. Mas uma descrição consolidada não significa verdadeira, significa apenas funcional social e biologicamente. As teofanias rasgam esse véu e obrigam a reescrever o texto com que interpretamos o mundo, até se tornarem numa espécie de metáforas mortas que já nada de inédito propõem.

domingo, 29 de abril de 2012

Haikai do Viandante (68)

Van Gogh - Flower beds in Holland (1883)

Os campos de flores
são livros onde as crianças
aprendem as cores.

sábado, 28 de abril de 2012

Poemas do Viandante (264)

Cézanne - Chateau Noir

264. CÉZANNE, CHATEAU NOIR

negro castelo
o teu coração
breve morada
de pedra e cal

nele perdi a luz
um ramo de violetas
e a esperança
de dizer não

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Aprender o despojamento

Wassily Kandinsky - Ciudad Árabe (1905)

Aprender o despojamento. Esse exercício de abstenção de tudo o que é inútil, de tudo o que distrai da viagem, de tudo o que não passa de mera presunção de importância de um ego fustigado pelo temor da sua real inexistência. Chegar ao essencial e nele permanecer, despir-se dessas velhas vestes que o tempo e o modo acumularam sobre nós. Coleccionamos ocupações, preocupações, afazeres. Coleccionamos gostos, gestos idiossincráticos, múltiplos e infinitos desejos. Aprender o despojamento é olhar para tudo isso e ver a sua realidade evanescente, é descobrir na evanescência a sua verdade e a verdade de uma vida vivida na dependência de tudo isso. Por vezes, pensamos que essas coisas são o que nos prende à vida. De facto, são elas que nos levam à morte.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Abrir-se para o absoluto

Henri Matisse - Open Window (1905)

Pensava hoje em Kierkegaard, na sua angústia perante o Absoluto. Esse excesso pode parecer atraente, mas será que a posição de um ser finito como o homem face ao Absoluto deve ser a angústia? A palavra que me ocorre transporta-me para longe desse estado mórbido do espírito. Abertura. Perante a solicitação do Absoluto o ser finito deve abrir-se à solicitação, tomá-la como convite e não como intimação ou sequer mera injunção. Sim, na angústia o homem teme e treme, mas ao abrir-se para a realidade e para o mundo, para o aqui e o agora, ele entra em comunhão com o Absoluto, que se revela na particularidade das coisas finitas. O Absoluto não está além, mas aqui, nesta hora. Abrir a janela e descobrir o dia. A noite é apenas a projecção do medo de abertura, a angústia um sintoma de cisão e de separação.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Poemas do Viandante (263)

Francis Picabia - Amanecer en la bruma, Montiguy (1905)

263. PICABIA, AMANECER EM LA BRUMA, MONTIGUY

a ordem da manhã
véu de lacre
sobre a terra
restos de orvalho
e folhas caídas
à espera do musgo
o teu corpo pousado
na fímbria do mundo
e aberto para a pálida luz
da madrugada

terça-feira, 24 de abril de 2012

O sensual e o sagrado

Amadeo de Souza Cardoso - Janelas (1916)

Os olhos são um lugar de troca entre dois mundos, o mundo de lá de fora e o  mundo interior que, através do olhar, se projecta e exterioriza. Troca significa dar algo e receber alguma coisa. O que se recebe através dos olhos? Imagens. O que se dá através do olhar? A projecção de um sentido, a espiritualização das materialidades. Imagens recebidas e sentido projectado. Onde está a materialidade do mundo externo ou a do observador? Dissipou-se, desmaterializou-se, tornou-se puro espírito. Os olhos são lugares de espiritualização do mundo, neles e por eles os mundos externo e interno tornam-se num único mundo espiritual. Os olhos, contudo, são uma sinédoque, onde a parte é tomada pelo todo. Os sentidos não são simples janelas para a materialidade do mundo exterior, mas locais de rarefacção da matéria e de espiritualização do mundo. Cada sensação é já a expressão da presença do espírito. O prazer das sensações é um prazer espiritual e a própria sensualidade é uma forma de espiritualidade. Daí que ela possa ser sacralizada, como acontece em várias tradições. Mais interessante que reprimir a sensualidade, será a perceber o que há de sagrado em cada sensação, aprender a deixar que ele se manifeste na pujança dessa sacralidade e como expressão pura do espírito. Não é no olhar que o amor se manifesta?

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Vestígio de sombra

René Magritte - Les Épaves de l'Ombre (1926)

Quanto nas nossas acções haverá de vestígio de sombra? A sombra é um exercício de equilíbrio difícil, um jogo entre a obscuridade e a chama ardente. Ela é o compromisso entre a luz e as trevas, entre o apelo luminoso à pura transparência dos nossos actos e a obscuridade tenebrosa que serpenteia no nosso íntimo. Muitas vezes senti, em consequência de uma dada acção pública, a qual nada tinha de socialmente censurável, um sentimento de desconforto, como se uma impureza a maculasse. Talvez isso acontecesse quando era muito novo e o espírito fosse mais sensível. Esse incómodo, apesar da natureza socialmente adequada da acção, era o sintoma do carácter sombrio do agir humano, de em cada acto misturar a luz que me transcende e as trevas que me habitam. Para alguém estruturalmente contemplativo, a acção, pura que seja, nunca deixa de ser vista como um trazer de luz e trevas ao mundo, com um vestígio de sombra.

domingo, 22 de abril de 2012

O horror ao vazio

Edward Hopper - Sun in an Empty Room (1963)

Um dos temas mais recorrentes da psicopatologia social - chamemos-lhe assim - é o do horror ao vazio. As pessoas temem acima de tudo esse estar vazio e preenchem-se com mil afazeres e inúmeros pensamentos e sentimentos. Não serão, porém, esses afazeres, pensamentos e sentimentos mais vazios que o vazio? O vazio é a condição essencial para que algo possa vir e permanecer. Mas para que esse algo possa vir é preciso persistir no esvaziamento de si, é preciso aprender a estar vazio sem que o horror tome conta de nós e nos precipite para as múltiplas ilusões que se nos oferecem. O horror ao vazio vem do medo de enfrentar a nossa condição, de permanecer em silêncio perante ela e de a aceitar naquilo que ela tem de arriscado. Tornar-se vazio é a preparação para o grande encontro, é a abertura para aquilo que nos ultrapassa possa chegar até nós e nos interpelar. O vazio é a clareira onde o ser se manifesta com a sua luz. O horror ao vazio é o medo da luz.

sábado, 21 de abril de 2012

A transparência dos corpos

Pierre Bonnard - Le Paradis Terrestre (1916-1920)

A ideia de um paraíso terrestre poderá ter chegado aos homens através da experiência do seu corpo, da carnalidade do seu corpo. No mito bíblico isso torna-se evidente pela transição da nudez para a necessidade sentida de ocultação dos genitais. Estamos ainda antes da sentença de expulsão proferida pelo Juiz Supremo, mas esta sentença é apenas a confirmação de algo que já tinha ocorrido: Adão e Eva já estavam fora do paraíso. O que está em jogo é a experiência da opacidade da carne. A cobertura dos genitais simboliza essa opacidade e marca a consciência de uma tensão entre a transparência e a opacidade. Por desnudado que esteja, um corpo é opaco, a luz não penetra nele. Se o ilumina, é ainda e só na sua dimensão exterior. A nudez inconsciente anterior à falta de Eva simboliza um ideal de transparência da carne. Esta apresenta-se aí como aquilo através do qual se vê. Mais do que um corpo belo e perfeito na sua materialidade, os homens sonham um corpo transparente, através do qual a luz possa fluir. A beleza e a perfeição de um corpo residiria, desse modo, nessa transparência, o que significa a invisibilidade do corpo. Belos são os corpos que se vêem como se não se vissem. O castigo divino é, em última análise, o tornar visível da carne. O fascínio que esta exerce, por isso, é ambíguo. Ela atrai para si o espírito - como acontece no desejo sexual - mas atrai-o com a promessa de se tornar transparente. O que os amantes aspiram no amor é à fusão, que não é outra coisa senão o desejo de transição do corpo opaco ao corpo transparente, a transição para a invisibilidade corporal. 

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Haikai do Viandante (67)

Van Gogh - Painter on His Way to Work

Sigo pela estrada
o meu destino; sou sombra
e luz desvairada.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A canção da carne

Max Ernst - La chanson de la chair

Talvez o enigma da carne resida na sua íntima conexão com o tempo. É através dela que entramos no reino da temporalidade. Por exemplo, a experiência da rotação entre dia e noite ou a revolução das estações com o seu eterno retorno ainda não representam por si a experiência do tempo. A experiência directa do tempo nasce da progressiva consciência das metamorfoses da carne. São estas transformações que arrastam o espírito e o prendem no fascínio temporal. Trata-se de um verdadeira queda. A intemporalidade espiritual é arrastada pela carne para a finitude e a mutação. Mas não seria mais sensato falar de corpo em vez de carne? Não. Apesar do corpo, do meu corpo, ser carnal é possível separar um do outro. Pelo corpo, experimento o espaço e o limite da minha figura; pela, carne percebo o tempo e, como disse, a finitude. É através dela que tenho acesso ao fluxo da vida. É este fluxo, onde o espírito caiu, que é uma elegia, a verdadeira canção da carne.

Poemas do Viandante (262)

Manet- On the Beach

262- MANET, ON THE BEACH

a vinha nunca vindimada
coberta de sombras
veleiros e espuma

uma memória 
de corsários
sobre a pálida areia

e no rasto das ondas
o vai-vem de um amor
guardado numa história

terça-feira, 17 de abril de 2012

O ar da montanha


Demasiado puro o ar da montanha. Esquecido, quantas vezes o viandante passa ao lado do que é essencial. Essa lateralização da vida nem se deve aos deveres que a existência impõe, mas às expectativas que nascem no espírito, essas pequenas e grandes tiranias do desejo. Vivemos numa cultura que incensa o desejo e perdemos a sabedoria de olhar para o que desejamos, de olhar para a nossa faculdade de desejar. Contrariamente ao que o espírito deste tempo supõe e impõe, raramente o desejo nos atira para a montanha, para o ar puro e o céu azul. Numa época onde a única diferenciação que se conhece é a social, não se aprende a distinguir entre desejos, a hierarquizá-los, a eliminar muitos para que se possam cultivar alguns, aqueles que exigem a pureza de espírito, a nobreza de alma, a coragem da abdicação. Mas só o espírito puro e a alma nobre suportam, sob o céu azul, o ar puro e rarefeito da montanha.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Haikai do Viandante (66)

Van Gogh - Starry Night Over the Rhone

sombras, trevas, breu:
na água nocturna reflectem-se
estrelas e céu.

Guerra santa

Jackson Pollock - War (1947)

Esse conflito que nos dilacera, abre o peito e rasga a carne, essa guerra santa entre o desejo de tudo nos apropriarmos e o mandamento de tudo entregar, é a essência da própria vida sobre a Terra. Em cada um, defrontam-se - numa guerra sem fim - duas injunções, dois imperativos, como se ele fosse possuidor de duas vontades; ou não será melhor dizer: como se ele fosse possuído por duas vontades? Não se pense que um imperativo vem de dentro de nós e outro nos é exterior. Pura ilusão dualista. Essas duas injunções são irmãs, irmãs inimigas que combatem pelo domínio da nossa vida. Se uma é inscrição do biológico e a outra do espírito, isso não significa que uma nos seja própria e outra estranha. O conflito que nos dilacera traz consigo uma teleologia, uma finalidade: a paz. O que a guerra interna nos ensina é a exigência de uma pacificação. A sabedoria está em encontrar o caminho não para a derrota de uma das irmãs inimigas, mas uma via de reconciliação e de reconhecimento dos direitos das partes em confronto. 

domingo, 15 de abril de 2012

A voz do deserto

Giorgio de Chirico - The Red Tower

Ouvir a voz do deserto. O medo da solidão ofusca o desafio que o deserto lança a cada um. Não me refiro ao deserto geográfico, a essa paisagem de areia, sol e desolação, mas ao deserto interior, ao desenho de um espaço onde nos confrontemos com a Verdade ou, dito de outra maneira, onde a Verdade nos confronte, nos ponha em causa e desmascare a nossa ficção. Quando o deserto vem ter connosco, rasga o corpo e cresce na alma, sentimos uma angústia tão estranha que acabamos por fugir, fechar o espaço assim aberto e repousar na pura bavardage quotidiana, na efectiva alienação. Salvos daquilo que nos interpela, entregamo-nos ao fluir da nossa irrelevância. Prazeres e dores são estações da nossa cobardia perante o deserto - a praça vazia da nossa alma - e a voz que nele fala.