sábado, 31 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (738)

Darío Villalba, Árbol Bergman I (1976)
738. a primeira árvore

a primeira árvore
um fogo
no ritmo dos ramos
nos ninhos
esquecidos
por pássaros de poeira
no incêndio do inverno

(29/12/2016)

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O sal do silêncio (25)

Philip Jones Griffith, Group of school children with their teacher waiting to board a bus. Liverpool,  1952
O silêncio que cresce nos rostos e transpira para o mundo traz uma mensagem feita de rugas, sorrisos tolhidos nos lábios, olhares abertos para o invisível. Não há luz que o ilumine nem trevas que o obscureça. É um silêncio habitado por larvas inquietas que nele encontram o sossego do seu casulo.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Impressões 39. Encarnação

Todd Webb, Broadway at Wall Street, New York, 1959
Sob a luz sonâmbula do candeeiro, sombras ganham carne e figura, um corpo, que logo se esconde na fantasia ociosa das roupas. É uma dança de uma tribo antiquíssima que então se vê, um rodopiar com pontos de fuga, o exercício sagrado da encarnação.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Pintura e haikus (12)

Michel Larionov, Calle con farolas, 1910
Dédalos de luz
brilham secretos na noite.
Rua fria e lívida.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

A espera

Edward Hopper, Summertime, 1943
Tinha-se apaixonado loucamente por um desconhecido, num daqueles dias de Verão em que tudo parece possível. Ele disse-lhe o nome, Godot, e que o esperasse à porta de casa. De chapéu na cabeça para enfrentar o sol, ela assim fez. As horas passaram, sem que o amado chegasse. Ela, porém, não desistiu. Passaram semanas, meses. O Verão declinou e o Outono deu lugar ao Inverno. O seu amor era de tal maneira grande que não arredou pé. Traziam-lhe comida e agasalhos, ela porém só tinha olhos para o fim da rua. As grandes chuvas não a intimidaram. Aquela era agora a sua vida. Quando Godot chegou, ela não era mais que uma fria estátua de pedra, coberta pelos grandes nevões de Fevereiro.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (737)

Tal-Coat, Vuelo, 1973
737. uma ave de tinta

uma ave de tinta
negra
voa no vigor
da brancura
no céu de azoto
no cordel cardado
pelas nuvens de novembro

(29/12/2016)

domingo, 25 de agosto de 2019

Diálogos morais 19. Os gémeos suicidas

Rodney Smith, Twins Leaning Outward, 1997
- Será muito fundo?
- Não me parece.
- Talvez seja arriscado mergulhar aqui.
- Sim, é um risco. Nada nos garante que não nos salvemos.
- Se eu morrer, como poderei ter a certeza que também tu morreste.
- Devolvo-te a pergunta.
- É um enigma irresolúvel. Saltas?
- Claro que sim, mas tenho um problema. O fato foi tão caro.
- Eu também salto, mas por nada deste mundo quero estragar o chapéu.
- Poderíamos tirá-los, fato e chapéu.
- Impossível, como, sem eles, saberíamos que somos nós?
- Tens razão. Aliás, o mar não me parece nada fundo.

sábado, 24 de agosto de 2019

Diálogos morais 18. Não

Dorothea Lange, Consumer relations, San Francisco, 1952
- Vamos mais depressa, anda.
- Não.
- Dá-me a mão.
- Não.
- Queres perder-te?
- Não.
- Queres ir ao colo?
- Não.
- Gostas da mamã?
- Não.
- A mamã é má?
- Não.
- Só sabes dizer não?
- Não.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Meditação Breve (108) O peso do passado

Gertrude Käsebie, Indian Chief, c. 1901
Sempre que se olha pausada e longamente para o futuro, o que dá profundidade e exactidão ao olhar é o peso que o passado deposita nele. Sem uma tradição, os olhos perdem-se na superfície móbil da existência e são incapazes de perscrutar o amanhã.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O sal do silêncio (24)

Paul-Emile Pajot y Gilbert Pajot, A Concarneau, va- et- vient des bateaux de pêche
Feitos da matéria dos sonhos, os barcos deslizam nas águas. Vão e vêm, empurrados pelo vento, sonhados por sonhadores dedicados, que se entregam ao sono durante o dia, para que os pescadores não desesperem retidos em terra, sem que um sonho lhes mova a embarcação.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (736)

Manuel Viola - Ardiendo (1973)
738. um fogo no pórtico

um  fogo no pórtico
a sombra
ergue-se
na erva do estio
e adormece
na água da aurora
no silvar das cigarras

(29/12/2016)

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Transfiguração

Giovanni Segantini, A messa prima, 1884-85
Era o mais popular dos sacerdotes que a paróquia já tivera. Todas as manhãs, bem antes da primeira missa, subia as escadas da Igreja e abria-a. Aos pobres, dava o que tinha. Vivia com pouco, apesar do muito que lhe davam. Aos ricos, ajudava-os a suportar o fardo do egoísmo, abrindo caminhos insuspeitados nos seus corações. Não havia quem não gostasse dele. Num domingo, porém, não o viram subir as escadas. A porta da Igreja, chegada a hora da missa, estava fechada. O tempo passava. Procuraram-no em casa. Não estava. Forçaram a porta do templo. Por trás do altar, ele pendia, sotaina a escorrer sangue, de uma cruz tosca. O rosto era o dele, mas nunca se parecera tanto com Cristo como naquela hora.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Micronarrativa (24) Aprendizagem

Stephan D. Colhoun, Laughing woman with a cup, around 1955
Não conteve o riso e explodiu numa gargalhada. Não sei o que mais me feriu, se o riso ostensivo, se o seio que, com o ímpeto, se desvelou. O som dessa explosão ecoou durante muitos anos dentro de mim. Talvez fosse apenas a voz da sabedoria que descia sobre mim. Naqueles dias, ainda não sabia quão ridículo é todo o amor.

domingo, 18 de agosto de 2019

Haikai do Viandante (377)

George Pierre Seurat, A Gray Day at the Grande Jatte, 1888
Cinzas matinais
caem nas águas do rio.
Voa o Verão.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Impressões 38. Memórias ancestrais

Martin Munkacsi, The Rent-Barracks, Budapest, c.1923
Por vezes, somos transportados para a infância. Como num sonho onde se é levado para o paraíso, damos os mãos e fazemos uma roda. Ao rodopiarmos cada vez mais rapidamente, uma música desprende-se das esferas celestes e escutamos velhas canções nascidas há muitos séculos. Sabemos cantá-las, pois em cada um de nós vive a memória ancestral da humanidade.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (735)

Mordecai Ardon - Anywhere (1971)
735. o odor do outono

o odor do outono
desfaz-se em
folhas mortas
cobertas
de paixões
e pavores
extenuadas
pelo ramalhar
do plátano ao poente

(29/12/2016)

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Haikai urbano (49)

Alfred Stieglitz, Reflections, Night–New York, 1896
Sombras do passado
caem no silêncio da noite.
Secreta cidade.

domingo, 11 de agosto de 2019

A desaparecida

Edvard Munch, Summer Night´s Dream (The Voice), 1893
Caminhava devagar nas noites de Verão. O calor impelia-a para a rua. Só assim, dando um passeio, o temor se aquietava. Era o que dizia. Talvez não passasse de uma mera justificação. Se o não fizesse, acrescentava, a noite seria atormentada por um sonho, onde uma voz desconhecida, vinda da escuridão, chamava por ela. Mal o Verão começava, ela, temerosa, dava o seu passeio, que suspendia no primeiro dia do Outono. Estes passeios terão demorado uma década. Começaram pelos quinze anos e continuaram até ao seu desaparecimento. Numa noite quente de lua nova, saiu como habitualmente. A certa altura, todos na aldeia o confirmam, ouviu-se uma voz estranha chamar por ela. Não tornou a aparecer.

sábado, 10 de agosto de 2019

Meditação Breve (107) Conferências

Albert Bloch, Conference, 1951
Esses lugares sórdidos onde se manifesta o que se esconde por detrás das máscaras sociais. Mundos de onde a verdade foi excluída, a justiça expulsa, a beleza afastada e o bem escorraçado. Ali, nenhuma luz penetra, apenas o odor sulfuroso onde as trevas preparam o inferno que desaba sobre os homens.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Meditação Breve (106) A flauta de Eva

Henri Rousseau, La Encantadora de serpiente, 1907
Como tudo seria diferente se Eva fosse uma encantadora de serpentes. Em vez de se deixar encantar por elas, tocaria a sua flauta, todas se lhe renderiam e as suas pretensões seriam subjugadas no fluxo infinito das notas musicais. Em vez de expulsos do paraíso, os homens viveriam ali resguardados pela flauta de Eva. 

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (734)

Hervé Télémaque - Jeu de l'Ombre (1997)
734. um jogo de sombra

um jogo de sombra
sombreia dans
l’ombre sombre
e sombria
do papel
carcomido pelo carvão
ombragé
dans le soleil
que nos éveil
de
setembro em septembre

(28/12/2016)

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Micronarrativa (23) Homicídio

Saul Leiter, Carol Brown in “Harper’s Bazaar”, c.1958
Quando entrou não mais consegui tirar os olhos dela. A sua beleza era tão comovente, o seu encanto tão cativante, que, por mais que o quisesse evitar, o olhar fixava-se naquele rosto. Acabei por matá-la. Não exagero. Lentamente, a imagem dela, aos meus olhos, começou a desfocar-se, a ficar granulada, até que os grãos se separaram uns dos outros. Aquele monte de poeira é o que resta dela.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Haikai do Viandante (376)

William Turner, Tarde de Verão, 1827
Na margem, um cão
ladra aos barcos que passam.
Verão, luz e água.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Impressões 37. Rios eléctricos

Alfred Eisenstaedt, Electricity emitted from machine at MIT, Boston, MA. 1949
Há noites em que sonho rios eléctricos. São rápidos, turbulentos, inquietantes. Habitam-nos peixes de cortiça e piranhas de madeira. Quem neles mergulha volta a terra de baterias carregadas. Quem os observa fica cego, tamanha é luz que deles se desprende. Quem os sonha enlouquece lentamente.

domingo, 4 de agosto de 2019

Diálogos morais 17. Asas

Philippe Halsman, Daytona Beach, Florida, 1946
- Meu Deus, esqueci-me das asas.
- Também eu, mas de Deus não quero...
- A ti não te fazem falta, a queda faz parte da tua natureza.
- Lá por seres um anjo branco, pensas que és melhor do que eu?
- Deixa-te de comparações, vê lá se cais.
- O que tu queres e veres-te livre de mim.
- Cala-te. Se caíres na água talvez te nasçam barbatanas.

sábado, 3 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (733)

Yoriyasu Masuda - Geometría y metafísica en cuadro (1996)
733. geometrias de pelúcia

geometrias de pelúcia
brotam devagar
no vitral trépido
de maio
crescem
no vinho velho
do alfabeto
letras lentas
e já
já moribundas

(28/12/2016)

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

O desdém

Deborah Turbeville, Unseen Versailles - Aurelia Weingarten, 1980
Talvez se tivesse cansado de tudo, ou talvez fosse uma revoltada, é possível, mas tenho uma hipótese mais interessante. Havia nela uma tal altivez que são raros aqueles que podem dizer que conviveram com ela. Fui um desses, mas não pense que sei mais sobre ela do que um mero conhecido. Nunca foi dada a confidências e a afabilidade do convívio não passava de uma muralha com que se defendia - é esta a verdadeira palavra - dos poucos que a rodeavam. Quer saber do que se defendia ela? Do amor, do que haveria de ser? Todos a amávamos, claro, e ela não o suportava. Procurava, na verdade, o desdém, mas nunca o encontrou, a não ser no gesto com que nos abandonou a todos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O sal do silêncio (23)

Johan Hagemeyer, Silence, 1920
Os jardins onde o silêncio nasce escondem-se por detrás da muralha noite. Jardins secretos, onde os anjos esperam uma palavra. Neles, as árvores rumorejam resguardadas da cal do tempo e os seus ramos abrem-se para a eternidade, a nuvem vacilante que se demora no coração dos homens.