segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Metamorfoses

JCM - Colour Dreams (Vila Nova da Barquinha) (2007)

Quantas vezes as metamorfoses do céu são símbolo daquilo que se passa no espírito do homem. Um olhar ingénuo, dir-nos-á que os fenómenos luminosos que o céu reflecte em nada estão relacionados com o que se passa no espírito do indivíduo. Esse, porém, é um olhar ingénuo que esquece que todos os fenómenos ópticos são relacionais e que o indivíduo está implicado nessa relação. E essa implicação não se relaciona apenas com o processo de formação das cores, mas também com aquilo que o levou a dirigir o olhar para um certo lugar e de uma certa forma. As metamorfoses do céu só chamam a atenção de alguém porque esse alguém encontra nelas o espelho das suas próprias metamorfoses. Também elas são símbolo.

domingo, 14 de setembro de 2014

Do símbolo (II)

JCM - Raiz e utopia (cemitério de guerra alemão na Normandia) (2007)

Ontem escreveu-se aqui que o símbolo "rasga uma clareira onde a realidade se realiza". Essa, porém, é apenas uma das potências operantes no símbolo, a capacidade de abrir um mundo. Tem também o poder contrário, o de perfazer ou acabar mundos da vida. A característica central do símbolo é a sua ambiguidade. Ele é o que abre, mas também o que encerra e torna acabado aquilo que foi começado e se manifestou no mundo.

sábado, 13 de setembro de 2014

Do símbolo

JCM - Raiz e utopia (a cruz) (2008)

Os símbolos não possuem apenas uma dimensão semântica. Melhor dizendo, os símbolos possuem uma dimensão semântica de tal forma densa que, ela mesmo, é um princípio de realidade. Não é a realidade que dá origem ao símbolo. Pelo contrário, é o próprio símbolo que rasga uma clareira onde a realidade se realiza, isto é, se torna real. Os símbolos são presenças no mundo daquilo a que poderíamos chamar sobre-realidade.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Do mestre e do discípulo

Francisco de Goya - Obsequio á el maestro

Não está o discípulo acima do mestre, mas o discípulo bem formado será como o mestre (Lucas 6:40).

Há duas maneiras de conceber a sabedoria. A modernidade, ao concentrar a ideia de sabedoria no conhecimento proveniente das ciências empíricas, concebe a sabedoria como cumulativa. O discípulo tem por objectivo ultrapassar o mestre. As sociedades não modernas, porém, viviam segundo uma matriz completamente diferente. Há uma sabedoria primordial que corre o risco, através do acto de transmissão, de se degradar e perder. Por isso, o mestre, se o for efectivamente, transporta essa sabedoria consigo, e o seu magistério será tanto mais completo quanto ele souber transmitir aquilo que recebeu. Nem mais nem menos. E o discípulo o máximo a que pode aspirar é emular o mestre e tornar-se, como ele, em mestre. No cristianismo, o mestre supremo, o detentor da sabedoria primordial, é o próprio Cristo, o modelo proposto a todos os discípulos, isto é, a todos os homens, e no qual todos os homens se devem tornar.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (474)

JCM - Black & White Dreams (2014)

474. nunca do amor ou da vida ou da morte

nunca do amor ou da vida ou da morte
sabemos o que baste

o coração logo se enreda na penumbra
inclinado pelo desejo

e aquilo que o feroz olhar então abarca
é uma sombra outonal

o rasto de uma promessa incendiada
a ânsia que devora

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O abandono da ilusão

Pierre Puvis de Chevannes - O pobre pescador (1881)

Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. (Lucas, 6:20)

Numa sociedade como a nossa, movida pela dinâmica da riqueza e da pobreza materiais, perdeu-se há muito a capacidade de compreender a pobreza - a pobreza evangélica - como despojamento. Pobre, neste sentido, não é aquele que vive na indigência, mas aquele que compreendeu que os bens materiais são uma ilusão e que optou pela frugalidade e o abandono da ilusão. Ser pobre significa abandonar toda e qualquer ilusão. E essa é a condição da plenitude, daquilo que Lucas nomeia como Reino de Deus.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Haikai do Viandante (203)

JCM - My foolish world (2007)

vermelho e negro
cobrem de folhas a terra
a vida e o desejo

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Bóia de salvação

JCM - Raiz e Utopia (bóia de salvação) (2014)

Talvez a aprendizagem mais difícil a fazer seja a de que não há bóia de salvação que permita ao homem salvar aquilo que ele anseia salvar. E esta inexistência não se deve à avareza da natureza ou a um particular descuido da divindade. Não há porque aquilo que o homem sonha salvar é nada, uma inexistência, a quimera a que, em desespero, se agarra.

domingo, 7 de setembro de 2014

Um sinal de eternidade

JCM - Still-life (2014)

No conceito de still-life (natureza morta) é essencial pensar não o modo estético de composição de um certo objecto artístico mas aquilo que se revela através de uma natureza morta, a suspensão do movimento e a abolição da temporalidade. Uma natureza morta está longe, então, de ser uma manifestação daquilo que está morto, do inanimado. É antes um sinal do que está para lá do tempo e, por isso, não se deixa captar pela armadilha física da cinemática. Uma natureza morta, ao fixar definitivamente uma hora, dirige o seu dedo indicador para a eternidade.

sábado, 6 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (473)

JCM - Mitologias (ó mar salgado...) (2014)

473. deixa que o mar te chegue pela janela

deixa que o mar te chegue pela janela
e traga uma onda de luz

espera que no sal da água venham
os restos de uma caravela

senta-te no frio rumorejo da areia
e conta as aves que passam

e se no céu uma nuvem ensombrar a luz
confia na palavra que te incendeia

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Vencer a escuridão

JCM - Black & White Dreams (2014)

Raramente o homem compreende que está envolto pela escuridão mais tenebrosa. Na verdade, a viagem espiritual não é outra coisa senão a luta contra essas trevas, o exercício de abrir pequenos rasgões na cortina pelos quais a luz possa penetrar e iluminar - por pouco que seja, e é sempre tão pouco - o homem na sua falível humanidade. ´Que fazer? Vencer a escuridão.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A ascese do jardineiro

JCM - Heimat I. TN (2007)

As analogias trazem sempre um perigo. Por exemplo, podemos dizer: a vida do espírito é como um jardim. O perigo reside em perceber a vida espiritual como algo organizado e cosmético, como são os jardins aos olhos daqueles que fruem deles. A verdade da analogia, porém, reside noutro lado. Todo o jardim é uma viagem dura e trabalhosa em que a tendência para o caos e a força do espontâneo são substituídos por um mundo organizado e ordenado a um fim. E sempre que a força natural e a espontaneidade caótica se manifestam, o que preserva e faz perseverar o jardim na sua condição é a ascese do jardineiro, cortando aqui, podando acolá, limpando mais à frente, regando o que clama água. A vida espiritual a que o viandante - quem quer que ele seja - é chamado não é outra senão a da ascese do jardineiro.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Castanheiros em flor

JCM - Mitologias (castanheiros em flor) (2007)

São efémeras as florações, mas trazem nelas a promessa de um novo florir. Uma ilusão seria pensar que cada novo florescimento é a pura repetição do anterior, num ciclo de eterno retorno do mesmo. Também o viandante, na viagem que é a vida, floresce uma e outra vez. Mas, como o castanheiro em flor, a cada novo florir ele dá um passo em frente no caminho para o segredo que transporta consigo.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (472)

Ricardo Asensio - Atardecer (1968)

472. o fumo espesso da tarde inclina-se

o fumo espesso da tarde inclina-se
ao sopro do vento

e tudo se cobre de sombras
e silêncios de água

das janelas avisto ainda um resto
da tua infância

mas a noite desce já pela colina
e chama por mim

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Um texto indecifrado

JCM - Time on space. Baleal (2007)

Estranhas caligrafias deixa o tempo na rocha. Alfabetos por decifrar enviam-nos notícias do mundo, talvez alguma indicação sobre o sentido da viagem. Não, não é aos geólogos que estes textos se dirigem, mas aquele que, na sua ignorância, sabe que um texto indecifrado, o da sua vida, se esconde ali.

domingo, 31 de agosto de 2014

Usar grades

JCM - Mitologias (uma casa portuguesa) (2014)

Os homens usam grades não por medo do que possa vir de fora e tomar de assalto o interior do seu próprio ser. Pelo contrário, o uso de grades reflecte o medo de sair de si, de se abrir à experiência do mundo, o temor de, ao sair de si, retorne feito outro. O medo da alteridade leva o homem a gradear a sua vida, não compreendendo que a sua própria identidade e a verdade desta implicam sempre a abertura ao outro.

sábado, 30 de agosto de 2014

Da pintura abstracta

Lee Krasner - Abstract #2 (1946-1948)

O viandante interroga-se muitas vezes sobre o papel da pintura abstracta no desenvolvimento espiritual da humanidade. Não é uma interrogação sobre pintura ou sequer sobre estética. Trata-se antes de uma questão ontológica. Que potências ocultas essa pintura desoculta e traz à luz do dia? Só uma visão ingénua da pintura poderia afirmar que aquilo que está num quadro nada tem a ver com a realidade. A libertação desses planos do real têm que finalidade? A mera expressão de um caos que se libertou da ordem para que o cosmos se dissolva ou é a solicitação para que o espírito apreenda essa desordem originária e encontre um caminho para configurar uma nova ordem?

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (471)

JCM - Chemin qui ne mènent nulle part III (2014)

471. não sei de que beleza falar

não sei de que beleza falar
nestes dias de seca

esgotei o musgo e o veludo
de cada palavra

entreguei à cobiça do tempo
o que era sublime

resta-me as mãos vazias e um rio
afluente do silêncio

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (202)

JCM - Time on space (Baleal) (2007)

secreta passagem
na dura pedra esculpida
desejo e voragem

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Signo sinal 5. Sinais de luta

JCM - Time on space. Baleal (2007)

Se a alma dos homens fosse visível como uma rocha, também nela avistaríamos múltiplos sulcos, impressões deixadas pelo tempo e pelas diversas experiências que a vida traz consigo. Nem sempre esses sulcos atravessarão planícies férteis ou vales amenos. Muitas vezes rasgam as encostas mais escarpadas. São então sinais de uma dura luta contra o que é fácil e cómodo. São rugas deixadas pelo crescimento da vida do espírito.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (470)

JCM - Speculum III (2014)

470. embriagado volta o sonho

embriagado volta o sonho
na fímbria da manhã

um velho cais traçado a carvão
pela mão do deus

e na água sonâmbula 
um olhar sombrio

o teu coração marejado de luz
e súbitas lágrimas

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Da distribuição da dádiva

JCM - Raiz e Utopia (os trabalhos e os dias) (2014)

O viandante não tem sítio onde guardar aquilo que colhe, pois guardar o que recebe é dissipar a dádiva. Tudo o que transporta consigo é dádiva gratuita, dádiva que pede para ser distribuída, uma e outra vez, como se quanto mais distribuísse mais houvesse para distribuir. Aquele que retém o recebido acumula não o bem mas a dívida, que será tanto maior quanto mais a dádiva for retida.

domingo, 24 de agosto de 2014

Abrir o portão

JCM - Chemins qui ne mènent nulle part II. Vidago (2014)

O mistério da vida está todo contido nesse cadeado que fecha o portão que nos permite aceder à ponte e, por ela, à outra margem. Se a vida é uma viagem, esta não é mais do que a travessia de uma para outra margem. De aqui para além. O difícil, contudo, está em descobrir o segredo que permite abrir o portão que veda a passagem.

sábado, 23 de agosto de 2014

A luz e as trevas

JCM - Mitologias (Sonho numa noite de Verão) (2014)

O tema da luz assedia a imaginação do homem de tal maneira que nunca estará esgotado. Sempre novas configurações do tema virão adicionar-se às anteriores, projectando novos clarões sobre as densas trevas. Seja a luz natural da razão que a modernidade e o iluminismo incensaram ou a luz sobrenatural vinda de não se sabe que primórdios, a verdade é que a luz parece ter apenas um parco poder, o de abrir uma clareira nas escarpas da escuridão. E isso tem sido o suficiente para o infinito trabalho da imaginação sobre a eterna luta entre a luz e as trevas. 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (469)

Ilse Bing - Chairs with Leaves, Luxembourg Gardens, Paris (1952)

469. o silêncio preenchido

o silêncio preenchido
de folhas mortas

a luz vítrea magoada
pela tua ausência

o banco abandonado
na memória

assim declinam os dias
na clareira do verão

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A sombra que nos acolhe

JCM - Ruínas. Cabo Espichel (2014)

A sombra que nos acolhe não é apenas um lugar onde nos protegemos dos excessos do calor. A sombra é, ao mesmo tempo, a nossa condição e o observatório de onde olhamos a realidade. Como seres humanos, não somos nem trevas absolutas nem a pura luz, mas essa mescla que é a sombra. E é dela - dessa sombra - que perscrutamos o horizonte para delinear cada etapa da viagem que nos cabe.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (201)

Ilse Bing - Kloster Reichenau am Bodensee (1929)

o velho telhado
cobre aquele segredo
nunca antes lembrado

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O espelho e a face

JCM - Speculum I (2014)

Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança. Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido. (Paulo, I Cor 13: 11-12)

Quem sou eu? Esta interrogação não é apenas o sinal de uma busca de identidade. É o sintoma de uma confusão. Aquilo que sei de mim resulta apenas do que vejo num espelho. Esta visão confusa não é um mero problema epistemológico, mas um indicador do grau de maturidade. A analogia trazida por Paulo remete explicitamente para isso. Vejo-me ainda como se vêem as crianças. A viagem do viandante é aquela que o conduz desta visão em espelho - toda a especulação é assim vista como um estado infantil da existência - para uma visão face a face. A viagem é uma transição da menoridade para a maturidade, a qual é esse momento em que me vejo tal como sou visto, em que me vejo face a face e descubro a minha própria verdade.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O próximo passo

JCM - Símbolos (2014)

Por vezes, o viandante encontra no caminho estranhos símbolos. Não indicam uma direcção, nem trazem consigo uma verdade indisputável. Apenas desencadeiam a meditação. E isso é o bastante. Estimulada pelo símbolo encontrado, a meditação autonomiza-se de tudo o que lhe é exterior. É nessa estranha clareira que o viandante decide o próximo passo.

domingo, 17 de agosto de 2014

Na densa névoa

JCM - Mitologias (o dia de  retorno de D. Sebastião) (2008)

Subir a escarpada montanha e adentrar-se na densa névoa, rasgar um caminho - o seu caminho - na pedra inóspita e velada pelos céus. Esta é a viagem do viandante. Move-o o puro caminhar, pois em cada passo há uma luz que se abre e o orienta - como se, estando ela ali, o chamasse de longe - na densa névoa que é a vida dos homens na Terra.

sábado, 16 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (468)

Ellen Auerbach - Under my umbrella (1949)

468. a mão suspende-se

a mão suspende-se
sobre a pele
e na sombra
tece-se a paisagem
onde ateado
o fogo alumia
o fim da viagem

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Lugar nenhum

JCM - Chemins qui ne mènent nulle part (2008)

Nunca meditamos suficientemente o verso de Rilke. Caminhos que levam a parte alguma são ainda caminhos? Não deverá qualquer caminho levar-nos a um lugar determinado, a um destino prévio e já constituído? O que significa então esse nenhum lado? Significa a indeterminação, em primeiro lugar. Significa, depois, que esse lugar para onde se caminha não existe, ele apenas poderá emergir do próprio caminhar. Na vida do espírito não são os lugares que determinam caminhos para ligação entre eles. É o caminhar que abre o caminho e o lugar. É a viagem que aflora a clareira e a determina, para logo a abandonar. O viandante caminha pois não pertence a qualquer lugar.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (200)

Francesco Ferruccio Leiss - Ricordo di una serata nebbiosa (1955)

a luz desvanece-se
no frio segredo da noite
prodígio acontece

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Da ambiguidade do ritual

JCM - Raiz e Utopia (Ritual) (2014)

O ritual, como tudo o que é essencial na vida dos homens, possui uma ambiguidade constitutiva. O ritual é o processo pelo qual a vida social, religiosa, cultural, etc. transita do caos para ordem. É uma fonte de vitalidade e uma forma do homem lidar com o que há de desmedido e de transcendente. Transporta, porém, consigo uma grande ameaça. A ritualização da existência, se desligada do espírito que lhe deu existência, torna-se uma fonte de morte. Ritualizada e vazia, a vida perde o sentido.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

A presença do eterno

JCM - Ruínas, Évora (2008)

Esses lugares abandonados pela vida a que chamamos ruínas são sinais dispersos pelo mundo. Sinalizam o passar do tempo e a precariedade de tudo o que é feito pelo homem. Mas a sua insistência em persistir ultrapassa toda a medida humana e aponta para o que há de mais incompreensível para a nossa experiência. Ruínas, mais do que o restolho que a vida abandonou, são a presença do eterno naquilo que é tecido de tempo.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O sonho como ensaio

JCM - Colour dreams (2014)

Os sonhos sempre causaram perplexidade aos homens. Viram neles uma antevisão do futuro (a natureza profética dos sonhos) ou o sintoma de um trauma do passado (a psicanálise freudiana). Esta relação do sonho com a temporalidade acaba por esconder uma outra não menos importante, a relação com o espaço físico. O sonho é a experiência onde os homens ensaiam uma suspensão das leis da natureza, vivendo através deles aquilo que não é permitido pelas leis físicas que governam os corpos. A pergunta que nos deveria ocorrer seria não sobre o que irá acontecer no futuro ou sobre aquilo que aconteceu no passado e está oculto no inconsciente. A pergunta decisiva sobre o sonho deverá ser antes esta: por que razão temos necessidade de ensaiar oniricamente uma vida fora dos constrangimentos impostos pelas leis da natureza?

domingo, 10 de agosto de 2014

Da necessidade de mitologias

JCM - Mitologias (animais totémicos)  (2014)

A vida dos homens é uma longa colecção de mitologias, um exercício contínuo de mitificações, uma produção ininterrupta de mitos. Com a experiência trazida pela modernidade e pelo iluminismo sabemos que entre o mitificar e o mistificar o passo é curto, demasiado curto. Assim informados, por que razão insistimos no trabalho do mito? Não seria mais curial entregar tudo à guarda da ciência empírica? Isso seria verdade se não pressentíssemos que uma outra verdade exige um outro acesso. A nossa disposição para as mitologias reflecte não o amor dos homens às ilusões e às quimeras, mas o seu fundo compromisso com a verdade, com uma outra verdade que escapa à ciência e nos chama de longe.

sábado, 9 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (199)

JCM - Raiz e Utopia (o eterno retorno) (2014)

este mar secreto
abre-se de onda em onda
um sonho desperto

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O desejo e a moral

Edward Burne Jones - A manhã da Ressurreição (1882)

Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. (Mateus 16:24)

Funda-se o Cristianismo em preceitos morais? Não, eles não são o fundamento da religião que tomou conta da Europa e de uma parte apreciável do mundo. Onde se funda então o Cristianismo? Funda-se no desejo, como refere Mateus: Se alguém quiser vir comigo... Os preceitos morais inscrevem-se num lugar segundo e são inúteis se a faculdade de desejar não estiver mobilizada. Apesar de secundários, esses preceitos são condição necessária. Dois preceitos são indicados por Mateus. A renúncia a si mesmo e o tomar a sua cruz. Através deles o desejo é canalizado - enquanto amor - para o caminho a seguir. E todo o Cristianismo não é outra coisa senão isto.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Pensamento humano

JCM - Auto-retrato VII (2014)

Tu és para mim um estorvo, porque os teus pensamento não são os de Deus, mas os dos homens. (Mateus 16:23)

Que bagagens deve o viandante deixar para trás para que a viagem possa prosseguir? Em primeiro lugar, antes de toda a outra mercadoria, deve abandonar os seus próprios pensamentos, as suas considerações sobre si, sobre o mundo ou sobre a própria viagem que é chamado a fazer. Tornar-se pobre em espírito não é outra coisa senão deixar para trás esses pensamentos, que são humanos, demasiado humanos. Isto é, limitados, finitos, retrato do egoísmo próprio. Só assim um outro pensamento se poderá manifestar.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (467)

Ferdinand Hodler - Desnudo tumbado con flor (1888)

467. a flor luminosa solta-se

a flor luminosa solta-se
o tempo a perdeu

mas levada pelo vento
poisa na tua mão

e tudo se transfigura
na noite de breu

lua e trevas são agora
sol no coração

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Cegos e guias de cegos

JCM - Distopia (o olho do panóptico) (2014)

Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala. (Mateus 15:14)

É no contexto de uma discussão sobre o que é a tradição que surge esta resposta. Por que razão se diz que se está perante cegos e guias de cegos? Porque a tradição espiritual é reduzida à observância ritualista sem relação com a vida verdadeira. É a ausência de contacto com a vida do espírito que torna os homens cegos. E aqueles que os guiam são ainda cegos, talvez mais cegos, pois vendo não vêem a vida. Cuidam apenas de um sistema de observação - que hoje diríamos distópico - que permite controlar a observação exterior das regras rituais sem tocar naquilo que vivifica o homem, e lhe dá a possibilidade de passar da cegueira à visão.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Por que duvidaste?

Norman Narotzky - All life is there (1984)

E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste? (Mateus 14:31)

Esta pergunta - por que duvidaste? - fica sem resposta. Pedro não disse nada. Este silêncio, porém, é eloquente e dá que pensar. Situa-se no encontro conflitual entre fé e dúvida. Qual o significado do silêncio de Pedro? A finitude da sua humanidade indica que esse conflito é constitutivo do homem. Enquanto ser natural dotado de razão, o homem está cindido entre a crença absoluta e a dúvida. Pedro não respondeu pois a sua natureza era a resposta. Duvidar faz parte da condição humana. Para que apenas a fé mais pura brilhasse, seria necessário que Pedro, sendo humano, fosse mais do que um homem. E foi isto o que, por várias vezes e em diferentes circunstâncias, lhe foi pedido.

domingo, 3 de agosto de 2014

A cura dos enfermos

Pablo Picasso - La malade

E, Jesus, saindo, viu uma grande multidão, e possuído de íntima compaixão para com ela, curou os seus enfermos. (Mateus 14,14)

Duas perplexidades surgem ao leitor perante este texto de Mateus. A primeira leva-o a perguntar: por que razão uma grande multidão leva ao desencadear da compaixão, de uma íntima compaixão? A segunda diz respeito aos enfermos que nela estavam e que foram curados. Quem são eles, esses enfermos? A primeira perplexidade encontra resposta no versículo anterior. Essa grande multidão é composta por aqueles que O seguiram desde as cidades. A compaixão denota a compreensão do esforço - da ascese - que representa seguir o Mestre. Segui-Lo emerge, deste modo, como um processo contra-natura, um exercício que exige sacrifício. Mas quem são os enfermos? São aqueles que, mesmo ao segui-Lo, caem na errância, perdem o alvo. Fazem o caminho mas não sabem o sentido desse caminho. Reproduzem o gesto ritual, mas este é já destituído de verdadeira vida. Por isso é dito que estão doentes. São esses os enfermos que a compaixão leva à cura, isto é, à revelação do sentido do caminho que estão a fazer.

sábado, 2 de agosto de 2014

Folhas mortas

JCM - Folhas mortas (2014)

Exaustas, as folhas entregam-se à morte. Não porque a morte tenha triunfado, mas para que a vida volte de novo e, na exuberância e frescura do verde, se torne símbolo que oriente o viandante no caminho. Sempre que este se depara com folhas mortas é a vida plena e triunfante que espera.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O verdor da vida

JCM - Viriditas (2007)

Terra viriditatem sudat. (Hildegard von Bingen, Symphonia armonie celestium revelationum)

Viriditas pode ser traduzido por verdor, a qualidade daquilo que é verde. O termo designa um dos conceitos centrais da mística de Hildegard von Bingen. Designa a qualidade daquilo que é saudável e, por isso, é verde, fresco. Esta saúde refere-se tanto ao domínio físico como ao espiritual. Pode ser entendida como um equilíbrio, mas um equilíbrio que resulta da escuta da Palavra, como se a vida, no verdor que a mostra como saudável, apenas do Logos pudesse provir.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

A maior das quimeras

Max Ernst - Quimera (1925)

Não há gente mais dada a quimeras do que aquela que se diz realista e apenas interessada na materialidade do mundo. A abertura ao espírito - a vida contemplativa - tem por pressuposto o abandono de toda e qualquer ilusão, seja uma ilusão material, seja uma ilusão dita espiritual. Pois aquele que quiser salvar a sua vida - a maior das quimeras-, perdê-la-á.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Haikai do Viandante (198)

Francis Schanberger - Two Leaves (secret hiding place) (2013)

secreto lugar
onde o teu corpo me espera
na noite ao sonhar

terça-feira, 29 de julho de 2014

Do tempo e da eternidade

JCM - Do tempo e da eternidade (2007)

Água e árvores. A água, claro, é um símbolo da temporalidade, do fluxo do tempo. As árvores, não sendo eternas, podem sem dificuldade simbolizar a eternidade. Se nos deixarmos guiar por esta simbólica talvez possamos penetrar um pouco no mistério da criação daquilo que é temporal. Como as árvores precisam de água para se alimentar, também aquilo que é eterno mergulha as suas raízes no fluxo temporal, alimentando-se do sentido que assim faz nascer.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Do ocaso e da aurora

Jaime Burguillos - Ocaso (1976)

Quando desce a noite, descobrimos a verdade do dia. No ocaso encerra-se a luz. Cercada pela noite, porém, a luz não se desvanece. Respira lentamente e prepara, nas trevas mais densas, o raiar de uma outra e mais decisiva aurora. A viagem continua.