quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Micronarrativa (48) A rapariga do arco

Frantisek Dtrikol, Broken Arc, 1927

Ela segura o arco como se este a pudesse libertar do desamparo em que se deixou cair. De joelhos, ergue o rosto para semear a dúvida em quem a observa. O corpo, nu e preso à roda frágil da vida, disfarça-se surpreso na sombra que projecta, como um fantasma ancestral, na planície da parede.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Arqueologias do espírito 19

Eugène Atget, Eclipse, 1911

Antes de ser a ocultação de um astro, o eclipse foi sinal enviado pelos astros. Abriu no coração dos homens o caminho que leva das coisas manifestas às ocultas. Se algo que se conhece, ainda que seja por um conhecimento distante, embora tecido na convivência dos dias, pode esconder-se, então é provável que muitas sejam as coisas encobertas aos olhos humanos. Uma demanda sem fim começou então. Não em busca do que se vê, mas do invisível, daquilo que, continuamente, é objecto e sujeito de um eterno eclipse.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Pintura e haikus (22)

Max Ernst, Árbol solitario y árboles conyugales, 1940

Verdes e amarelos
na solidão da paisagem.
Sonhos no silêncio.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Meditação Breve (150) Lugares de transição

Carl Friedrich Lessing, Chapel on the Edge of the Wood, 1839

Um longo exercício de auto-suficiência conjugado com uma desatenção contumaz levou a que se esquecesse que o espaço se estrutura segundo qualidades que o diferenciam e lhe dão um sentido feito de múltiplos sentidos. Enigmáticas são as linhas de fronteira entre dois espaços qualitativamente diferentes. Nelas, erguem-se templos para mediar as transições e permitir que os homens viagem de um para outro espaço salvos de todos os perigos.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

A Sarça Ardente - 67

Manuel Ángeles Ortiz, Albaicín, 1956
Deixo o tempo flutuar e olho
o lento florir da rosa,
a pétala afastando-se
do coração,
à espera que outra a siga

como uma sombra acompanha
o demorado viajante
ao atravessar a vida
sem urgência para chegar ou

partir, sem bagagem
a sombrear-lhe o corpo
sem a perturbação trazida
pelo destilar do movimento
na escarpa do mundo.

Fevereiro de 2021

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Impressões 73. Areias do silêncio

Ernst Haas, White Sands, New Mexico, 1952

A areia enrola-se no silêncio e expande-se como uma onda de brancura na majestade do espaço aberto. Se tocada pela luz, reverbera. São cintilações vindas do passado com mensagens secretas para aqueles olhos que nas coisas ocultas encontram a sabedoria das manifestas.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

A luz do meio-dia

Liv Ullmann ©  Norwegian Film Institute

A primeira vez que a vi pensei tratar-se da rainha da noite, a tortuosa personagem de A Flauta Mágica, de Mozart. A escuridão que a envolvia não apenas adensava o mistério como semeava à sua volta premonições das mais funestas. Tinha-me deixado cativar pela primeira impressão e pelos temores do grupo. Nunca deixamos de ceder ao vozear da multidão. Os dias passaram e na minha alma foi crescendo o desconfortável sentimento de injustiça. Olhei-a com mais atenção. A sensação nocturna parecia ceder perante um soberbo esplendor. Havia nela uma luz intensa e inexplicável. Dentro de mim nasceu o desejo de para sempre ser por ela iluminado. Aproximei-me. Ela olhou-me e murmurou: demasiado tarde, também a luz do meio-dia não é filha da eternidade.
 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

O sal do silêncio (51)

Hans Baumgartner, Mannenbach, Thurgovie, 1952

O corpo dobra-se em silêncio sobre o futuro. Os olhos penetram na obscuridade da lousa e antevêem, em forma de letras e algarismos, uma luz que anuncia a fresta por onde se pode escapar do labirinto negro que a vida traz consigo.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Arqueologias do espírito 18

Johann Anton Castell, Lago di Como, 1841
Foi fora de si que o homem descobriu a serenidade. Envolvido no turbilhão da natureza, temeroso dos perigos que o assaltavam, não havia no coração humano um lugar para a plácida tranquilidade. Tudo nele era fogo e inquietação. Encontrou a serenidade no dia em que, tomado pelo eterno desassossego, estancou o olhar nas águas paradas do grande lago. Nelas reflectia-se o céu, e ele abriu os olhos de espanto. Esqueceu o perigo e desejou que todo o seu ser fosse um enorme e sereno lago, onde nada encapelasse as águas.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

A Sarça Ardente - 66

Jorge Barradas, sem título, 1918
A sílaba que te floresce
na boca ateia-se
no fogo da palavra,
no incêndio da frase,
na sarça ardente,
onde cintila
o orvalho dos teus lábios
para salvação dos meus.

Fevereiro de 2021

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Micronarrativa (47) Descoberta

Richard Avedon, Carmen, Coat by Cardin, 1957
Ela caminhava despreocupada. De súbito, o passeio, que lhe parecera infinito, terminava e teria de caminhar pela estrada. Foi então que, levada por um súbito impulso, deu um salto. Espantou-se por não cair. O corpo desligou-se da submissão à gravidade e ela ascendeu lentamente e compreendeu que, como uma ave, pairava sobre a cidade. Sabia, agora, quem era.
 

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Diálogos morais 56. Vir à existência

Tina Modotti, Carnavale, 1926
- Gostava de saber quem foi o idiota que inventou isto.
- É verdade, um idiota.
- Todos os anos a mesma coisa.
- Uma vezes vestem-nos disto, outras daquilo, mas é sempre o mesmo.
- Desfilar, desfilar, para que os papalvos se riam.
- Uns alarves, a rirem-se de boca atafulhada.
- E nós a desfilar, faça sol ou chuva.
- Bem, se não fosse o Carnaval nem tínhamos vindo à existência.
- Se viemos para isto, melhor fora que não tivéssemos vindo.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Impressões 72. Exercícios de habituação

René Bertholo, Pintura, 1959

As paisagens antes de serem paisagens são um amontoada heteróclito de cores. Os olhos chocam com elas e estremecem. Tudo parece indefinido, um estado do mundo antes de ser mundo. Com o tempo, o olhar aprende o seu caminho e descobre fronteiras e figuras, lagos e florestas, a rocha dura e a casa a que alguém chamou lar. As paisagens são exercício de habituação. Instituídos os hábitos do olhar, descobre-se o mundo onde antes só havia o acaso das cores. 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Histórias sem nexo 23. O clã

Fernand Léger, Los acróbatas del circo, 1918

Cláudia, Clélia, Claudomiro e Clóvis, o clã dos clipes e dos cliques, o clã que clamou com o cláxon. Um clamor clongoroso. Clemência, clemência, só cleptómanos e cleptocratas. No clube, o clérigo, clemente, clonou o cloreto de cloro. O clã clandestino claudicou no clarão da clarabóia. Clop.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A Sarça Ardente - 65

Fernando Lerín, Sin título, 1985
Um prelúdio no clarão do amanhecer.
Os olhos inclinam-se para longe,
esperam a chegada do Outono
com os seus deuses de folhas mortas.

Vagaroso, soletro as letras do alfabeto,
componho palavras para as escrever
em farrapos de papel que deixarei
levedar na transparência do dia.

Dobrado sobre a véspera do que virá,
oiço o fluir dos murmúrios da rua,
o rastejar do desejo na sombra
do fogo vindo da várzea do vento.

Janeiro de 2021

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Haikai urbano (66)

Júlio Pomar, Ruínas do Carmo, 1956
Ruínas do Carmo,
luz perdida na cidade.
Vozes de Lisboa.
 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

O sal do silêncio (50)

Alfred Eisenstaedt, Mother and child in Hiroshima, Japan, 1945
Há silêncios tão salgados que empestam os ares com o aroma do enxofre. Nascem rutilantes da luz do inferno, crescem em campos de destruição e pairam na atmosfera como uma ameaça de morte e um véu de translúcida tristeza. 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

A pergunta

Ingmar Bergman - Gunnar Fischer, do filme Morangos Selvagens, 1957

O que vês? – Ouvi a pergunta, enquanto os olhos caíam sobre o espelho que ela levantava diante de mim. Olhei. E ouvi de novo: o que vês? Perturbado, não sabia o que responder. A pergunta trazia consigo um imperativo, exigia-me uma resposta. Balbuciei algumas palavras, mas ela não as compreendeu e retornou: O que vês? Sim, por certo via-me a mim, mas pela primeira vez eu via outra coisa, além de mim, algo que eu era, mas não o sabia. O espelho exigia de mim palavras que não tinha e, confesso-o, não sabia que resposta dar. Levantei os olhos para ela e perguntei: Quem és tu para me interrogar assim? Posso ser a tua filha, ou a tua mãe, ou a tua primeira mulher, ou a tua morte. O que te interessa saber quem sou? O que vês

domingo, 31 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (49)

Bill Perlmutter, Along the Banks of the Main, Germany, 1955
As árvores despidas ao longo do rio ou a ponte como um fantasma vindo do passado são exercícios que anunciam o Inverno. A neve cai, desce em flocos leves como o lume e poisa no chão, a tudo cobrindo da mais branca brancura. Então, os homens passeiam devagar, levando o silêncio no coração e a graça do espanto perdida no fundo dos olhos.

sábado, 30 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 64

Pier Luigi Lavagnino, Collina, 1954
Fogo sobre as falésias, um cântico
de pedra no rumor
da montanha.

A floresta ergue-se num manto
de verde e sombra
onde poisam os pássaros do Sul.

Uma palavra escapa-me dos lábios
e ecoa no vazio do vale,
na sonâmbula claridade do céu.

Janeiro de 2021

 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Meditação Breve (149) A morte

Carl Friedrich Lessing, Cloister Cemetery in the Snow, 1833
Um manto de neve cobre a morte. O que viam os antigos que já não vemos hoje? A neve ainda a vemos, a morte, porém, tornou-se invisível, mesmo se ela não pára e a sua colheita está longe de a deixar na falência. Como, estando tão presente, se conseguiu subtrair aos nossos olhos?

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Micronarrativa (46) Meditação

Micha Bar Am, Father Neophitus, St. Katharina Monastery, Sinai, 1967

Talvez o cigarro seja um símbolo da condição humana, pensou o velho monge exausto. Enquanto arde sob o império do desejo, continuou, o fumo, como o espírito, eleva-se aos céus e deambula errante pelas alturas. Acabado o cigarro, é deixado no sarcófago do cinzeiro, sem que o espírito se recorde do lugar de onde partiu.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (48)

Lord Snowdon, Svetlana Berisova, 1957
No instante em que a bailarina atingiu o ponto mais elevado, antes que a gravidade lhe roubasse o desejo de ser ave e a devolvesse a terra, a música parou. A sala ficou suspensa e o tempo formou um casulo intemporal onde o corpo daquela mulher-pássaro permaneceu estático, pura imobilidade, movimento tocado pelo sal da eternidade.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 17

Gioacchino La Pira, Veduta di Capri al chiaro di luna

As águas retêm o murmúrio e deixam que o grande manto do silêncio cubra o mundo. Então, a Lua desce do seu pedestal etéreo e aproxima-se da Terra. A sua luz funde-se no silêncio. Quem, escondido e incógnito, observa o mistério não sabe se está perante um silêncio luminoso ou uma luz silenciosa, apenas abre o coração para que seja tocado pelo que acontece e os sinais desçam no seu ser, o revolvam e inscrevam nele o poder de caminhar sobre as águas e de discernir aquilo que é daquilo que não é e nunca será. 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 63

Maxfield Parrish, Winter Sunrise, 1949
O frio trazido pelas aves
da madrugada
cai sobre o rumor dos campos.

A luz anuncia-se e solene
cobre os cumes
abertos ao mistério do dia.

Na volúpia do acordar
abro os braços
e ato-os ao êxtase da aurora.

Janeiro de 2021

domingo, 24 de janeiro de 2021

Impressões 71. A longa espera

Alfred Stieglitz, The Street, Fifth Avenue, 1900-1901

A longa espera é um exercício destinado à provação da paciência. O dia gélido, a neve pelo chão, o céu de chumbo. A cidade parece entregue à dura dolência do sono. Nas ruas, apenas sonâmbulos caminham sem destino, sem saber onde estão, sem um desejo que lhes anime as vontades. Em fila, homens e animais esperam e essa espera é todo o seu ser e todo o seu mundo.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Haikai urbano (65)

Marcel Dieulafoy, Basílica da Estrela, anterior a 1913

As torres da Estrela
erguem-se aos céus de Lisboa.
Coração tão trémulo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Diálogos morais 55. Sobre a cidade

Alfred Eisenstaedt, View of Los Angeles by night from the hills above city, 1936

- Não admira que se percam.
- É verdade. O excesso de luz cega-os.
- A noite é tempo para descansar.
- Eles já não sabem o que é isso.
- Andam por ali levados por um movimento sem fim.
- O coração fica tolhido.
- Pior, a vontade perverte-se e está sempre a suceder o pior.
- Estás a ver aquela rapariga, ali à direita.
- Parece exausta e o que pensa não é o melhor.
- Vais tu ou vou eu?
- Ambos, pois um já não tem poder para a salvar.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (47)

Johann Wilhelm Cordes, Nach dem Sturm, 1855
Depois da tempestade vem o silêncio com o seu sal dourado para salgar o mar e libertar os estranhos monstros que o tempo aprisionara na recôndita caverna escondida no fundo oceano.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 62

Claude Monet, Road to Louveciennes, Melting Snow, Sunset, 1870
O silêncio vem no alvoroço
do crepúsculo, nos ramos
das tílias,
na luminosa humidade
da relva a sangrar pela cidade.

Anjos de cetim pisam sombras,
se a tarde se inclina
para a mudez
nacarada das tuas mãos
erguidas na imensidão do poente.

Janeiro de 2021