sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (700)

Agnes Martin - La rosa (1964)

700. a rosa não é uma rosa

a rosa não é uma rosa
mas um paradoxo
de folhas
no rio da razão
floresce sem florescer
rumina sem rumor
no calor do campo
no amor da roseira

(23/12/2016)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Micronarrativa (8) Anjos

Jean Dieuzaide, Turquie, toit d'une maison. Terrasse de Kayadibi,1954

Quando menos se espera, damos com anjos a espreitarem-nos dos mais inesperados lugares. Uma fresta, uma porta entreaberta, uma janela a ninguém acessível. Voltamo-nos, rapidamente, e lá estão eles com os seus olhos espantados e o coração em ânsia.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Pintura e haikus (5)

Pierre-Albert Marquet, Cielo encapotado en Hendaya, 1926

Um jogo de cores
separa céu, mar e terra.
Fantasia e mistério.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Meditação Breve (91) Passado

André Kertész, Place Gambetta, Paris, 1929

Uma velha praça, um carro que se desvanece, o transeunte protegido pelo guarda-chuva, os candeeiros da iluminação pública alinhados como numa parada militar. É tão perfeito o passado que o coração, ao avistá-lo, chega a doer.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Impressões 15. Abandono

Will Ellis, Abandoned NYC

O abandono é uma casa que acolhe a voz de muitas dores o pulsar do sangue levado pelo desalento da vida.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (699)

Agnes Martin, Flor al viento, 1963

699. flores flutuam

flores flutuam
ao vento
refluem contra
o muro do poema
deixam cair
perfumes de pólen
no sal da servidão

(23/12/2016)

sábado, 5 de janeiro de 2019

Haikai urbano (42)

Ara Güler, Paar in Zeyrek, 1960

Caída dos céus,
desliza sobre a cidade.
Neve, branca neve.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O livro da vida

Florian Schmidt, Turn The Page

Sim, ela enlouqueceu. Temo, pode crer, que a situação seja irreversível. Um dia, sentou-se e abriu um livro que eu nunca vira. Era o livro da sua vida, exclamou alegre. Então, começou a ler e a virar as páginas. Na segunda, exclamou: que estranho! Na terceira, o assombro aumento na sua face. Quando virou a quarta, havia já um ricto de temor na testa. Depois, começou a virá-las cada vez mais rapidamente e dizia: não, não pode ser. Gritava, chegou a arrancar alguma folhas e a rasgá-las Então, já em completo desespero, atirou-me o livro. Eu abri-o e em todas as páginas estava escrito a mesma coisa. Era essa a sua vida.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Impressões 14. Apocalipse

Riccardo Schweizer, Apocalipse, 1957

O Apocalipse não é uma consumação de um fim definitivo do mundo, mas a revelação da possibilidade de um começo. Todo o Apocalipse traz em seu seio um Génesis.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Micronarrativa (7) Geisha

Thomas Hoepker, A geisha in traditional oiran dress in a 17th century tea house. Kyoto, 1977

Sentada, ela espera a hora de se elevar. A luz toca-a e ilumina-a para que o segredo a envolva e, para os olhos ávidos, se torne opaca. A sombra espera-a para a conduzir à casa da noite.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (698)

Agnes Martin, Esta lluvia, 1960

698. chuvas de dezembro

chuvas de dezembro
envoltas
no desvão da dor
caem no terraço
do olvido
e abrem os dedos
da solidão
na fronteira da fantasia

(23/12/2016)

domingo, 30 de dezembro de 2018

Micronarrativa (6) A carta

Alexey Titarenko, Old woman, St. Petersburg, Russia, 1999

Estou tão cansada que nem forças tenho para desdobrar o papel e ler a carta. O que poderá ela dizer que eu não saiba já. As palavras que escreveste pesam como chumbo e o meu corpo cansado mais do que para a tua memória inclina-se para a terra.

sábado, 29 de dezembro de 2018

No bosque

Carlos Morago, Arboleda, 1998

Um bosque é o suficiente para alimentar o romantismo que nos habita. Desesperado, talvez por um desgosto de amor ou por um desastre financeiro, ter-se-ia suicidado entre as árvores. O local não deixa de ser convidativo aos grandes gestos, mas a verdade é bem diferente. Não se lhe conheciam paixões ou interesses. Entrou no bosque, é certo, mas o seu corpo nunca foi encontrado. A versão mais razoável é a que conta um amigo que o acompanhou. Chegado à clareira, ao anoitecer, disse-lhe. É aqui que vou ficar. Logo o corpo começou a sofrer uma estranha metamorfose. Quando a luz da manhã chegou, ele era aquela árvore que ali vê. A mais alta e imponente de todas. O resto são fantasias.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Pintura e haikus (4)

Arnold Böcklin, Château en ruine, 1847

Murmúrios de luz
sobre montes e ruínas.
Sombras do crepúsculo.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Impressões 13. Passam

Sergio Larrain - Magnum Photos, Bolívia, Potosi, 1957

Passam e trazem com elas a morada do silêncio, um olhar de inquirição, uma sombra sobre o corpo. Passam e são o dia e a noite, o princípio de esperança e o fundo desespero. Passam e acordam na memória o rasto de uma nuvem esquecida.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (697)

Frantisek Kupka - Discos de Newton (1911-12)

697. discos de newton

discos de newton
sombreiam o som
do arco-íris
soltam solstícios
na casa
do sol
esculpem
lápides de luz
ao soltarem-se da sombra

(22/12/2016)

domingo, 23 de dezembro de 2018

Presenças

Bartolomé Esteban Murillo, El regreso del hijo pródigo, 1668

No seu núcleo mais misterioso - e por isso mesmo mais espiritual - o nascimento do Menino Jesus não será outra coisa se não o regresso do filho pródigo. Os textos das tradições sagradas possuem uma espécie de circularidade, na qual um mesmo sentido é dito de maneiras diversas, remetendo as narrativas umas para as outras, como se lutassem para que um sentido decisivo, embora obscuro, não se perca. Seja no nascimento, seja no regresso, estamos sempre confrontados com a chegada do que não se espera, com o inusitado de uma presença que anula o absurdo da ausência. No nascimento do Menino, é o filho pródigo que se torna presente. No regresso do filho pródigo é o Menino que se afasta da sua ausência.

sábado, 22 de dezembro de 2018

A rainha da noite

Milton Greene, Marilyn Monroe, 1953

Todas as histórias que se contam sobre a sua morte são apócrifas. Servem para serenar a razão e tranquilizar os súbditos. Eu vi como tudo aconteceu. Como sempre, ela estava vestida de negro. Naquela noite, ao contrário do hábito, não deambulou entre os presentes, nem dançou. Sentou-se no chão descalça. A parede de vidro deixava perceber a noite cerrada sem lua nem estrelas. O que se via do seu corpo era luminoso. Fiquei fascinado. Não era o único. O fascínio, porém, logo deu lugar ao sobressalto quando ela começou a perder o brilho. Depois, sobreveio a comoção. Corremos para ela. Não estava morta nem viva. Tinha-se apagado, literalmente.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Haikai urbano (41)

The New York Times Photo Archives, 43rd Street and Broadway. New York, 1937

As neves de Inverno
rasgam rumores nas ruas.
Vultos em silêncio.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Dezoito anos

Kurt Hielscher, Parsberg castle, Germany, 1931

Era filha única e a mais bela rapariga da região, se não mesmo do país. Pretendentes? Não lhe faltavam, mas foram todos rejeitados. Nunca se soube se a rejeição nascia dela ou da intransigência do pai. Correm as duas versões. No dia em que fez dezoito anos fechou-se na torre, na da direita. Nunca mais de lá saiu. Uma criada servia-a. Passava os dias à janela. Quando o pai morreu, nada se alterou a não ser que, passados dois anos, parece ter-lhe nascido uma criança, uma rapariga. Como? Não se sabe. Desde a morte do pai que nenhum homem foi visto no castelo. A criança? Olhe para a janela da outra torre. Está lá desde que fez dezoito anos, precisamente no dia da morte da mãe.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Impressões 12. Quimeras

Izis, Place de la Concorde, Paris, c. 1958

Arcos de água e luz, quimeras que ligam uma à outra margem da escuridão.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (696)

Julião Sarmento - Sismo (1984)

696. um sismo cisma

um sismo cisma
sentado no cimo
da cabeça de richter
vem trémulo
e tremente
e temente
trazendo
no terror da terra
na luz do aluvião
o dedo de deus

(22/12/2016)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Micronarrativa (5) O branco e o negro

Chris Killip, Cookie in the Snow, Seacoal Beach, Lynemouth, Northumberland, UK, 1991

Exausto, o homem inclina-se perante o vento. Os pés pisam pesados a palidez da neve e o coração, tocado pelo pulsar do sangue, floresce em pensamentos negros ateados pela brancura da paisagem. 

domingo, 16 de dezembro de 2018

Pintura e haikus (3)

Karl Briullov, A Mother Waking Up from Her Child´s Crying, 1831

Um choro na noite
e a mãe logo estremece.
Temor e terror.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Meditação Breve (90) Apontar

Ernst Haas, View from Notre Dame, Paris, 1955

Apontar para algo é destacá-lo de um horizonte indefinido, torná-lo singular e, mais que tudo, trazê-lo à vida. O acto de apontar não é uma mera sinalização, mas uma acção criadora que traz ao mundo de quem observa a novidade de um novo ser.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Micronarrativa (4) Compaixão

Tereza Zelenkova, The Unseen, 2015

Não é desejo de ficarem incógnitas, nem cumprimento de imperativo religioso. Apenas, compaixão. A sua beleza é tão cintilante que não há quem possa olhar-lhes o rosto e não seja de imediato levado pela morte.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (695)

Joan Hernández Pijoan, Núvol rosa, 1991

166.  de nuvem a núvol

de nuvem a núvol
assim chego
a la plaça de catalunya
e canto
em catalão
un cel càlid
ennuvolat
de nuvens núbeis
e novelos de rosas

(22/12/2016)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Impressões 11. Mundos

John Martins, Soap Bubles, sd

Bolas de sabão são reminiscências de mundos que um criador, através do sopro, cria para logo os deixar dissolver  no oceano incompreensível da eternidade.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Micronarrativa (3) Liberdade

Joaquin Sorolla, Otra Margarita, 1892

Guardada por dois polícias, ela encolhe-se no banco e olha desconfiada, como se, no fundo do seu espírito, soubesse que a sua prisão não era o fim da liberdade, mas apenas o começo.

sábado, 8 de dezembro de 2018

Pintura e haikus (2)

Hans Vredeman de Vries, Arquitectura fantástica com personagens, 1568

Colunas de pedra
e sombrias canções de amor.
Sonhos de Verão.