sexta-feira, 20 de maio de 2016

Uma botânica do espírito

Alexandre de Riquer - La Botànica (1900)

Não seria de todo desapropriado falar de uma botânica do espírito. Uma vida espiritual significativa implica o florescimento e a frutificação de ideias e atitudes que interferem com o mundo e a própria forma como o homem vive a vida que recebe. Também a viagem espiritual precisa de uma taxonomia, de uma anatomia e de uma fisiologia. Se o vento corre onde quer, aquele que está sob o império do vento precisa, mesmo que apenas num ou noutro momento, de classificar o que lhe acontece, perceber a estrutura da sua vida espiritual e de compreender a sua função. Esta botânica do espírito, porém, tem uma natureza muito especial. A sua validade não é universal, mas singular. Radicalmente, singular.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Na sombra da bandeira

Lorenzo Viani  - All'ombra della bandiera (1911)

A verdadeira vida começa onde acaba a pulsão que conduz os seres humanos a refugiarem-se na sombra de uma bandeira, de qualquer bandeira. Não se trata de uma fuga para a subjectividade, mas de encontrar a vida do espírito. Este não tem bandeiras, nem causas, nem objectivos a realizar.  É pura liberdade e sopra onde lhe apraz. Quando alguém se coloca na sombra da bandeira está morto, pois o que ondula é a bandeira, a causa humana, demasiado humana, que sopra através dela. O que aí sopra é a morte da liberdade.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Poemas do Viandante (545)

Jackson Pollock - Ritmo de Outono (1950)

545. o ritmo desregrado

o ritmo desregrado
da solidão
abre-se
numa régua
a regra com que
meço
no outono
o arco da terra
ao dizer não

terça-feira, 17 de maio de 2016

Do discurso profético

Ernst Barlach - Prophet Writing (1919)

Entende-se demasiado rapidamente por profecia uma antecipação do futuro, uma acção que torna presente a expectativa do que virá. Seria então um salto no tempo. Dever-se-á, porém, desconfiar desta propensão para viajar, ainda que por inspiração, no tempo. O essencial do discurso profético não está no que há-de vir mas naquilo que, aqui e agora, já é. Profetizar aquilo que é significa romper com a ilusão que, como um véu, nos desvia o olhar da realidade para o desejo que habita em toda a expectativa.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Da prudência e do cálculo

Stipo Pranyko - A chave da despensa (1987)

Ter a despensa cheia é uma expressão que denota estar-se, de certa maneira, preparado para o que der e vier, para as incidências da vida. O auge da prudência está no fechamento à chave, não vá o cálculo ser destruído por algum amigo do alheio. Na verdade, porém, nunca estamos preparados para aquilo que é, efectivamente, importante na vida. Não há despensa cheia, por mais aferrolhada que seja, que nos proteja das grandes tormentas que - como desgraça ou como um sinal de graça - se abatem sobre cada um. Quantas vezes a vida tem mais prazer em proteger a cigarra do que a formiga.

domingo, 15 de maio de 2016

A árvore vermelha

Piet Mondrian - Red Tree

Sento-me sob a árvore vermelha e sonho uma paisagem azul. Desenho os contornos do céu e do mar. Também a terra chega ao meu sonho tingida de azul e sílex. É o mundo onde terei vivido antes de ter chegado aqui. Deste posso dar conta de olhos abertos. A terra é castanha, o mar avinhado e o céu quase negro. O outro, aquele onde terei vivido, só o posso sonhar. E assim, todos os dias, venho para debaixo da árvore, adormeço, enquanto a seiva vermelha escorre sobre mim. Tudo se torna claro no meu sonho: um mar azul, o céu tão puro de anil, a terra pintada de cobalto. Pego então num seixo e rasgo a tela. Acordo. Uma folha azul desprende-se dos ramos, enquanto das minhas mãos escorre, para as raízes da árvore, um fio de sangue.

sábado, 14 de maio de 2016

Poemas do Viandante (544)

Thomas Cole - Expulsión. Luna y luz de fuego (1828)

544. o fogo: água

o fogo: água
gélida e fria
corre nas veias
e sangra
ensanguentado
                vertigem veloz
e
sedento
fulgura no
incenso da invernia

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Idade de ouro

André Louis Derain - L'âge d'or (Paradis terrestre, la chasse) (1939)

A temporalização do mito da idade de ouro assume uma dupla perspectiva. Para os não-modernos, a idade de ouro reside no passado e, para o homem, ela é uma reminiscência. Para os modernos, a idade de ouro está no futuro, no que há-de vir. É uma expectativa. O que faz, porém, a pregnância do mito da idade de ouro, ou de qualquer outro, é a sua não ligação ao tempo. O mito não remete nem para o passado nem para o futuro, mas para a vida interior e espiritual do homem. Não há idade de ouro fora de si-mesmo, fora da coincidência de si consigo mesmo. Aí, o mito toma a figura da promessa e da aliança.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Poemas do Viandante (543)

Philip Guston - Outono (1950)

543. outono rimo-o com

outono rimo-o com
abandono
e na folha que
se desfolha
na cerejeira vejo
a mão do dono
aberta
para o ramo
onde s’amarra
o touro d’outono

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Nenhuma casa

Filippo de Pisis - Paisagem alpina com casa (1927)

Olho a casa de longe, e tudo é pura memória, esteira que a partida abre sobre o mar rumoroso da montanha. O ar frio gela-me os pulmões, mas caminho. Não posso voltar atrás. Não tenho para onde voltar. A casa, aquela onde nasci, tornou-se-me estranha. Ainda ontem eu chamava-lhe, bem alto, a minha casa. A noite, porém, desceu sobre ela. De manhã, o velho corvo estava morto. A casa tremeu sob o ranger da mobília. Sombras corriam pelos quartos. Uma voz, tão escura e tão rouca, nunca a ouvira, soou imperativa: pensas que esta é a tua casa? Vai-te! O corvo está morto e nenhuma casa é a tua casa. Não voltarei.