quinta-feira, 10 de março de 2016

Viver no deserto

João Queiroz - sem título (2004)

É nas paisagens inóspitas, de natureza desértica, de onde a presença do homem foi banida, que o viandante encontra o lugar para a sua viagem. A vida do espírito é um abandono constante das rotas conhecidas e a procura de um território virgem para que um novo e singular caminho se possa traçar. Por isso, mesmo na cidade entre os homens, o viandante vive no deserto.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Para lá da contingência

Alfonso Ponce de León - Accidente (1936)

A vida quotidiana está cheia de acidentes. Um acidente é interpretado como um evento fruto do acaso. É marcado pela contingência e não o resultado de uma necessidade imperiosa. A vida do espírito, na sua mais pura liberdade, não tem, todavia, acidentes. Ela não é o reino nem do acaso nem da contingência. Tão pouco da necessidade exterior. Ela é o reino da liberdade. Tudo o que acontece nela é o fruto de uma necessidade interior que se manifesta livremente e constitui um enigma que o viandante terá de resolver, uma desafio a que tem de responder.

terça-feira, 8 de março de 2016

Do sentimento de abandono

Max Klinger - Abandonada

O sentimento de abandono, de se ser atirado para a solidão, ainda é sinal de que se está preso e submetido a uma ordem de desejo do outro. A dor de estar abandonado - uma dor real - é o sinal de que a pessoa ainda não se abandonou a si mesma, ainda espera alguma coisa para além do puro abandono. Quem se sente abandonado ainda não está disponível.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Haikai do Viandante (275)

Paul Cezanne - Chateau Noir (1904-6)

nas paredes negras
oiço o silêncio da tarde
os campos em flor

domingo, 6 de março de 2016

Uma carta

Alfonso Sucasas - Carta a Rosalía (1989)

Escrevi esta carta como se tivesse alguém a quem a enviar. Imagino uns dedos a abri-la, a ânsia a bater no coração antes de os olhos tomarem de assalta as palavras, palavras escritas num azul tão puro, como aquele que o céu deixa ver nos dias de primavera. Ao imaginar, esses dedos e o pulsar do coração sob os seios, enterneço-me. Há tanto tempo que não me enterneço. O meu coração endureceu e eu escrevo a carta para te poder imaginar a lê-la e enternecer-me na melancolia que haveria em ti, se eu te tivesse escrito e se tu abrisses a carta para ler as palavras que te escrevi com o mais puro azul que o céu tinha.

sábado, 5 de março de 2016

Poemas do Viandante (530)

Francisco Sebastián - Entardecer (1987)

530. Entardece

Entardece
neste inverno
incerto,
neste dia
escuro e frio.
Entardecem,
na sombra
dos teus olhos,
os barcos 
que passam 
no rio.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Espero

John Marin - Figuras en una sala de espera (1931)

Espero. Espero entre esta gente que também espera. Conversam por cima do meu silêncio. Invejo-os. Eu nada tenho a dizer. O que me resta é olhar, fingir que não os oiço. O que poderia eu dizer? Em mim tudo é incerteza, opinião inacabada. Começo a formular um juízo e logo me calo. Escrúpulos? Sim, não seria falso. Quem nada sabe, o que pode dizer, como pode julgar? Deixo-me envolver no silêncio que paira sob aquelas vozes, O silêncio cresce dentro de mim, toma forma, oprime-me o peito e solta-se como uma nuvem. Paira no ar e desce lentamente sobre as bocas que falam, e elas tornam-se mais lentas, mais abafadas, mais indecisas. A nuvem adensa-se e as vozes são já uma sombra, quase uma treva, até que a noite as engole e emudecem. Espero e falo no silêncio da minha voz.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Paisagem e realidade

João Hogan - Paisagem (1948-50)

A paisagem é uma das mais poderosas invenções do espírito. Um hábito ancestral leva-nos a crer que as paisagens são objectivas, que se manifestam perante o nosso olhar, e que, dessa objectividade, se prova a sua realidade. Aquilo a que chamamos paisagem, porém, não é mais que uma invenção espiritual, uma realização que o espírito projecta no ecrã do mundo. São irreais então as paisagens? Não, não são, pois resultam de uma realização e é esta que dá toda a realidade ao que chamamos real. 

quarta-feira, 2 de março de 2016

Haikai do Viandante (274)

Piet Mondrian - Along the Amstel (1903)

secreto silêncio
a sombra desceu no rio
árvores de inverno

terça-feira, 1 de março de 2016

Memória e identidade

Fernand Khnopff - Memórias (1889)

A memória, na tradição platónica, tem um papel central na vida espiritual. O que se joga nesta é uma reminiscência a activar sobre sobre o mundo verdadeiro que, antes de entrar no corpo, a alma teria contemplado. Esta relevância da memória faz-se sobre um processo de aniquilação das memórias sensíveis que a vida quotidiana deixa em nós. As memórias temporais são um obstáculo à vida do espírito, como a história do destino da mulher de Lot ensina numa outra tradição. Esta destruição da memória sensível significa, porém, um desfazer da identidade construída, como se a vida espiritual não fosse mais do que um caminho entre essa identidade construída e uma enigmática identidade originária recebida.