sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Paisagem espiritual

João Hogan - sem título (1972)

Imagina-se, demasiadas vezes, a vida do espírito em analogia com paisagens florescentes, como se ela fosse um passeio sentimental destinado a almas doces e delicadas. Quantas vezes, porém, a paisagem espiritual é despida, crua, rugosa, como se toda a vida tivesse sido evacuada e apenas restasse um frio petrificado sob o vento, sob esse vento que corre onde quer.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (526)

Artur Bual - sem título (1986)

526. De súbito, cavalos

De súbito, cavalos
irrompem na tela.
E a sua sombra
negra galopa
na planície verde
banhada pelo fogo
dos teus olhos.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A tua casa

Álvaro Lapa - s/título (s/d)

O que resta das antigas memórias, das grandes casas, das avenidas largas, do fluxo das pessoas perdidas pela cidade? Passados tantos anos, filho pródigo, volto para casa, e já não há casa, nem rua, nem pessoas. Olho de longe e vejo a ruína que cresceu no solo e tomou conta do mundo, daquele mundo onde vi a luz pela primeira vez. Sento-me no chão e fecho os olhos. O silêncio rodeia-me, abre sulcos dentro de mim, rasga-me a carne. Um fio de sangue corre da minha boca, para logo coagular. Saboreio-o e oiço o rugir da terra. A cidade, as ruínas que restam, avança sobre mim. Imóvel e silencioso, abro os olhos e espero que caia a primeira pedra. Eis a tua casa, oiço.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (272)

Ando Hiroshige - A Vilage in the Snow (1831-34)

montanhas ao longe
cobrem de inverno a aldeia
neve sobre a terra

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O duelo

Albert Bloch - Duel (1912)

Em tempos, o instituto do duelo servia para lavar a honra. A lei acabou por triunfar sobre a honra. A verdade, porém, é que não eliminou o duelo. Este retirou-se do exterior e fixou-se dentro de cada um. O espírito confronta-se consigo mesmo e desse duelo sairá o caminho que a vida deve seguir.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Conversão do olhar

Marc Chagall - Sobre a cidade

A cidade dos homens, por maior que seja o interesse que se lhe devote, nunca deixa de ser sentida como limitada e limitante. Nela cruza-se a necessidade da natureza e a convenção social, formando uma férrea irmandade que submete cada um. A vida do espírito é um ir para além da necessidade e da convenção. Seja na arte, na religião ou no amor, o homem eleva-se a uma outra dimensão, onde as leis da natureza e as regras da sociabilidade perdem significação habitual e ganham um novo sentido ao serem olhadas de cima e do exterior. A vida do espírito é uma conversão do olhar.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Da liberdade

Francisco Iturrino - Potros en el campo (1912-14)

Inúmeras vezes se simboliza a liberdade dos homens através da analogia com os animais em plena natureza. Este é um equívoco fundamental. A natureza e a vida dos animais é comandada pela necessidade, pela mais estrita necessidade. A liberdade começa quando, movido pelo espírito, o homem se afasta da manada e limita, tanto quanto pode, a necessidade.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (525)

Henri Le Sidaner - Le Quai (1898)

525. Nas águas

Nas águas
ergue-se 
o silêncio
feito de névoa
e de noites
perdidas
pelo cais.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Do semear e do colher

Kazimir Malevich - A Colheita (1910-11)

Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus. (Eclesiastes 3:1)

Há um tempo para semear e outro para colher, é verdade. O que a vida do espírito, contudo, mostra é que esse tempo não está determinado. Debaixo dos céus, qualquer momento é tempo de sementeira e qualquer momento é hora de colheita, pois o semear e o colher não são já determinados pelos ritmos naturais, mas, como frutos desse vento que sopra onde quer, irrompem de súbito, provenientes de uma outra ordem que não a da necessidade natural e dos ritmos ancestrais da certeza.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (271)

Rockwell Kent - Admiralty Inlet (1922)

neves na montanha
e um rio que corre invernoso
tempo de partir

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Sombras de domingo

Henri Le Sidaner - Dimanche (1898)

Quando chega a Primavera, volto sempre ao mesmo sonho. Deito-me, nas noites de sábado, e o sono vem rapidamente. Depois, depois, não sei como acontece. Estou escondido no bosque, a cidade ao fundo, e vejo desfilar grupos de jovens mulheres. Vêm e vão serenas. Falam baixo, apenas um murmúrio. Esforço-me por as ouvir, mas nunca o consigo. Falam sobre mim, tenho a certeza. Fingem, porém, ignorar-me. Olho-as, olho-as sempre demoradamente. Por fim, escolho uma, nunca a mesma. Escolho aquela a quem vou pedir em casamento. Tomo a decisão e corro para ela. Quando a estou a alcançar, ela sorri-me, como se esperasse por mim. Estende-me a mão e desaparece. Acordo, a luz da manhã entra-me pela janela. É domingo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

A espera

Marcus Stone  - Waiting (1921)

A espera pode ser uma etapa crucial na viagem. Nem toda a espera, porém, tem em si esse poder de se tornar um elemento central na vida do espírito. Quando a espera é tida como instrumental, um tempo que antecede qualquer realização a vir, nesse momento ela é um obstáculo. É preciso que o viandante aprenda a deter-se na espera e não esperar dela outra coisa senão o que ela é, pois na pura espera já está tudo o que se há-de encontrar.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (524)

Georgia O'Keeffe - Abstracción, rosa blanca n. 2 (1927)

524. Uma onda?

Uma onda?
Um deserto?
Apenas a rosa
branca e lívida
que se abre
para o longe
aqui tão perto.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Sonho e realidade

Max Beckmann - Rêve de París, Colette, Eiffel Tower (1931)

Na história da humanidade o sonho sempre desafiou a argúcia interpretativa dos homens. Antevisão do futuro ou sintoma de conflitos passados, o sonho foi e é motivo para uma recusa do presente. E no entanto ele é uma poderosa manifestação da presença do espírito, de um espírito que se liberta da coacção da lógica formal e dos constrangimentos espácio-temporais. Nessa libertação emerge uma outra realidade, aquela que as estruturas lógicas do entendimento e as formas da sensibilidade ocultam e sonegam na vida quotidiana.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Das redes de comunicação

Ernst Haas - Communication, Nevada (1962)

Vivemos na era das redes e da comunicação. O fascínio de comunicar com o longínquo raramente deixar perceber a dimensão global do processo. E o outro lado do processo é o evitar que o longínquo se torne o próximo. As redes comunicacionais, ao mesmo tempo que estabelecem conexões, estruturam distâncias e aniquilam formas de comunhão. As redes, ao intensificarem a comunicação, aniquilam o espírito que só a comunhão pode fazer nascer.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Nuvens

Edward Weston - Clouds (1936)

As nuvens possuem a particularidade de unir nelas um conjunto de contrários. Umas sugerem um ambiente pesado; outras, a leveza. Umas tornam o horizonte escuro; outras trazem com elas a claridade. Umas são sentidas como ameaçadoras; outras, benfazejas. O que nunca pensamos é que elas são a imagem, a nossa imagem, que o céu nos devolve. Ao olharmos as nuvens, através das metáforas usadas no jogo pueril da sua classificação, é a nós mesmos que encontramos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (270)

Henri Edmond Cross - Arbres au bord de la mer (1906-7)

água azul e céu
guardam as velhas árvores
silêncio no mar

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Um problema de compreensão

Paul Ackerman - Dis-mois, compreds-tu quelque chose

A preocupação com a compreensão do mundo, com aquilo que se passa fora de nós, funda-se na crença ingénua de que o objecto da compreensão é transparente e acessível em si mesmo. A compreensão do mundo, porém, assenta na compreensão de nós mesmos. Aquilo que compreendemos no mundo exterior não é apenas mediado pela nossa auto-compreensão. É uma projecção dessa mesma auto-compreensão. Aquilo que eu vejo no mundo diz mais sobre mim do que sobre o mundo.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O cair da noite

Giovanni Segantini - Landscape with Horses and Peasant Boy

O rapaz fez entrar os cavalos num pequeno lago para que matassem a sede. Olhou as águas e viu o reflexo dos animais. O sol ainda iluminava o campo, embora uma sombra avançasse rapidamente, galgando a floresta em perseguição do astro que, debilitado, se retirava para além do horizonte, como se um medo antigo o movesse. O rapaz estremeceu. Este jogo entre a luz e a sombra levou-o a procurar, nas águas, o seu reflexo. Via a imagem dos cavalos. Da sua não havia rasto. Perplexo, olhou o horizonte em busca do Sol. Do seu corpo começou a soltar-se um véu pesado e negro, um manto que caiu sobre a terra. Os cavalos diluíram-se, o campo desaparecera, a água secara no pequeno lago. Onde ele chegava, a noite caía.

domingo, 31 de janeiro de 2016

Poemas do Viandante (523)

Giacomo Balla - Abstract Speed - The Car has Passed (1913)

523. Veloz, um carro

Veloz, um carro
passou.
E ao passar,
o céu da manhã
ergueu-se
em ondas de azul
sobre o verde
da floresta.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Uma brecha

Hermen Anglada-Camarasa - Interior de Teatro (1898)

O teatro funciona como um espelho da vida social. Como esta, o teatro é uma representação. A vida do espírito, porém, é a insurgência contra a representação. Tudo nela está direccionado para romper com o representar, para que aquilo que é efectivo e real se torne presente. No lugar da representação, a vida do espírito abre uma brecha para a presença.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (269)

Caspar David Friedrich - Cape Arkona at Sunrise (1803)

esta luz dourada
anuncia o amanhecer
fogo no horizonte

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Olhar de cima

Eric Vali - Himalaias

Para que serve uma vida se ela não for a superação de si? Erguer-se acima da pura animalidade. Não se trata de subir na escala social, pois o social é ainda e apenas essa animalidade confortada pela presença especular dos outros animais. Trata-se de subir a montanha, a mais difícil das montanhas, aquela que permite olhar de cima para as ilusões que nos prendem ao animal timorato e vaidoso que somos. A cada um o seu Himalaia.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Do espírito da guerra

Umberto Boccioni - Carga de Lanceiros (1914-15)

Nunca se pensa suficientemente a guerra. Recusamo-nos a ver nela uma manifestação do espírito. Na verdade, porém, a guerra é uma poderosa eclosão do espírito, aquela onde a ligação com a morte se manifesta na sua crueza. Toda a vida espiritual é, na sua essência, um exercício de aprender a morrer e a estar morto, como dizia Platão acerca da filosofia. Isto não legitima a guerra e a morte que ela traz consigo. A guerra manifesta poderosamente a vida espiritual, é certo, mas numa perspectiva patológica. Quando a massa dos homens se recusa aprender a morrer que a vida do espírito traz consigo, essa necessidade reprimida é transferida massivamente para o conflito bélico e incendeia o mundo.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Poemas do Viandante (522)

Benvenuto Benvenuti - Alba in padule (1926)

522. A noite abre-se para

A noite abre-se para
o dia irromper
sobre as águas
do pântano
que paradas
acolhem 
as primeira sombras
trazidas pela ave
que canta
na madrugada.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Aprender a anoitecer

Vincent Van Gogh - Anoitecer (1889)

Aprender a anoitecer. O viandante traz em si demasiada luz e a viagem não é mais que um aprender a fazer noite em si mesmo. Aquele que aprendeu a anoitecer esqueceu-se de si e, abandonando-se ao vento que sopra onde quer, extinguiu a sua luz, para que uma outra Luz possa brilhar nas trevas.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Sete da manhã

Edward Hopper - Sete da manhã (1948)

São sete da manhã. Vejo-o no relógio esquecido na montra. Está ainda tudo fechado. As lojas, as casas, mesmo o dia ainda continua coberto pelo véu da noite. São sete da manhã e ainda não descobri onde estou ou para onde vou. Oiço os meus passos no silêncio. Ao longe passam carros, gente que tem um destino, um lugar que os espera. Volto à montra e olho o relógio. Como há pouco, como há duas ou há três horas, continuam a ser sete da manhã. No vidro, vejo o meu reflexo. A barba por fazer, o cabelo em desalinho, a camisa aberta, as calças rasgadas. Afasto-me horrorizado. Dou uns passos para o lado, para fugir ao reflexo do vidro e olho de viés. Lá está a minha imagem. Presa no vidro, presa nas sete da manhã.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (268)

Salvador Dali - Cala Nans adornada de cipreses (1921)

os velhos ciprestes
sombreiam as águas do mar
neptuno adormece

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 15

Josep Cusachs i Cusachs - Desnudo femenino

15. Deixo os meus dedos

Deixo os meus dedos
correr em teu corpo.
Deixo os meus olhos
morrer em tua pele.
E tudo o que quero
arde nesse ventre,
arde na tua boca
onde sopra o vento.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ídolos e idolatrias

Concetto Pozatti - ...e il popolo fa un vitel d'oro di getto e lo adora (1963)

Um dos traços característicos dos nossos dias é a enorme propensão para a idolatria, para a transformação de qualquer coisa num bezerro de ouro, ao qual se presta, com sofreguidão e histeria, tributo e adoração. Esta propensão é acentuada por um renascimento do politeísmo. A multidão não se contenta com um ídolo. Ela precisa, na sua angústia e desespero, de uma manada de bezerros de ouro. A vida espiritual, contudo, é a diluição dos ídolos e o abandono de qualquer idolatria, a começar pela idolatria de si mesmo, o mais venerado dos bezerros de ouro. 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Rituais de Fevereiro

Joaquín Vancells i Vieta - Fevereiro, paisagem (1891)

Espero, espero que Fevereiro chegue. Ainda haverá frio. Sim, frio e chuva, as árvores despidas. Poderei fazer uma cama de folhas húmidas e deitar-me. O frio que fará! A humidade entrará na minha carne, nos meus ossos, e eu serei fria e húmida como o Inverno. Espero. Sim, quando chegar Fevereiro, entrarei na floresta. Despir-me-ei e nua esperarei a vinda, a vinda... Fará frio e os animais olhar-me-ão com medo. Uma folha cairá sobre mim, quando a luz da tarde começar a declinar. Estremeço, se penso na noite que há-de vir. Estremeço e sinto já a lua a descer sobre o meu corpo indefeso e penetrar-me célula a célula. Estremeço, na luz fria e húmida em que me tornarei. Fevereiro chegará.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Perder a figura

Albert Gleizes - Transfiguração (1943)

Se se pensar a vida espiritual como transfiguração, não basta pensar esta como uma mudança de figura, como a aquisição de novas configurações. É preciso pensá-la na sua radicalidade semântica, como um ir para além de qualquer figura, como um perder a figura. A vida do espírito é um caminho para além de toda e qualquer figuração.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Como uma orquestra

Paul Ackerman - A Orquestra

Da ideia moderna de orquestra pode-se retirar uma poderosa analogia da vida espiritual. Na verdade, olhada desta perspectiva, a vida pode ser encarada como um contínuo ensaio de orquestra, onde um maestro desconhecido tenta conjugar os vários naipes de instrumentos, os poderes do corpo, os anseios da alma e as faculdades do espírito, para que o indivíduo, na sua singularidade, se descubra como pura harmonia.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (267)

Camille Pissarro - Morning, Sunshine Effect Winter (1895)

manhãs de inverno
chegam numa luz difusa
neve frio brancura

sábado, 16 de janeiro de 2016

Esperam por nós

Lyonel Feininger - Barcos (1917)

Esperam por nós, disse ela e calou-se. Ele olhou-a. Havia naquele olhar perplexidade e perturbação. Hesitou, mas deixou escapar: quem espera por nós? Ela emudeceu e os olhos prenderem-se na areia molhada. Com um dedo, desenhou grandes veleiros e sob eles um mar violento e sombrio. O vento soprou em rajada vinda do norte. Tiveram ambos frios, mas evitaram aquecer-se nos olhos um do outro. Quem espera por nós? Ela desenhou um sol sobre a agitação marítima e uma bandeira no mastro de cada barco. Uma onda de calor desceu sobre eles. Em sussurro, ela exclamou: eles, eles esperam por nós. Se não vieres, perdes-me. Ele deitou-se na areia. Então, ela entrou no mar que desenhara. Um barco esperava-a perto da rebentação.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Sobre as ondas

Edvard Munch - A onda (1921)

Submergir-me completamente na onda, deixar-me ir e vir ao sabor da força das águas, ser não eu mas a água empurrada pelo vento, abandonar-me ao acontecimento no pleno esquecimento de mim. Eram estes pensamentos que o tomavam de assalto quando, sentado na areia, olhava o mar batido pelo sol da tarde. Por vezes, sobressaltava-se. O grasnar de um pássaro, o rumor de um papel arrastado pelo vento. Perante o mar, tudo se tornava tão claro. Estava na fronteira, fascinado, preso a uma voz antiga. Uma gaivota poisou ao seu lado. Olhou-a. Olharam-se. Lentamente, sentiu que ela entrava nos seus olhos. Respirou ofegante. As ondas, o mar, o vento do crepúsculo, tudo se tornara mais nítido. Sentiu um tremor nos braços, uma ondulação no corpo, e olhou. Voava sobre o mar. Ao longe, o sol esperava por ele. Estava salvo.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Fogo de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fogos de artifício

A vida quotidiana é um exercício contínuo de fogos de artifício. Ansioso por provar a sua própria existência, o ego é incapaz de se conter e, sempre que tem um público, entrega-se à produção do mais vivo espectáculo de fogo de artifício. A vida do espírito, contudo, começa no momento em que se decide pôr de lado o fogo de artifício e se inicia a procura do fogo que arde sem se ver.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 14

Pablo Picasso - A bela holandesa (1905)

14. Assim tão despida

Assim tão despida,
tão exposta ao vento,
esperas a mão
que te abra o corpo
ao furor secreto
de um sentimento.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O infinito da vida

Frantisek Kupka - O princípio da vida

Sim, todos sabemos que a vida - a vida biológica - tem um princípio, um começo. Se pensarmos, todavia, a vida tal como ela se revela no homem, facilmente somos seduzidos pela ideia de que ela, a vida, não tem princípio nem fim. E é esta sedução pelo infinito da vida que se torna símbolo e é deste símbolo que toda a vida espiritual, nas suas múltiplas dimensões, é exegese e realização.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Idas e vindas

Paul Gauguin - Idas e vindas (1887)

A viagem espiritual é composta de muitas idas e vindas. Seria uma ilusão pensar que a vinda marca um retorno ao mesmo. A vinda contém em si a ida e aquilo que o viandante, ao voltar, encontra - em si mesmo e no lugar a que retorna -  não é o mesmo que tinha à partida. É sempre um outro que retorna e o lugar também é já outro. Por vezes, diz-se que um dado escritor escreve sempre o mesmo livro, mas isso é um equívoco. Cada vez é um escritor novo que o escreve. Foi e voltou, mas já não era o mesmo que o escreveu, mesmo que o livro fosse palavra a palavra, letra a letra, semelhante ao anterior. E mesmo uma obra nestas condições seria já uma outra obra. 

domingo, 10 de janeiro de 2016

A promessa da repetição

Oskar Laske - River Landscape (1944)

Heraclito constata que não nos podemos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio, pois estas estão em constante renovação. Esta constatação de uma impossibilidade esconde, porém, uma pergunta mais decisiva: se pudéssemos, deveríamos querer mergulhar duas vezes nas mesmas águas? Será que a vontade quer a repetição ou o inédito? A viagem do espírito - seja qual for o caminho escolhido, a arte, a religião, o pensamento - é sempre marcada por esta questão. Ela é a luta contra o fascínio que a promessa da repetição, apesar de impossível de cumprir, traz consigo.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (266)

Edward Weston - Near Neshanic, New Jersey (1941)

as ervas cresceram
nas terras abandonadas
vento e solidão

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Do valor do caminho

Juan Miró - Ciurana, The Path (1917)

Pensa-se sempre o caminho como aquilo que liga dois pontos, o de partida e o de chegada. Se eliminarmos tanto a partida como a chegada, o caminho, que tinha um mero valor instrumental, toma um valor intrínseco. O caminho vale por si mesmo, pelo facto de ser feito ao caminhar. Independentemente do ponto de onde se partiu e do ponto a que se chegou, se é que se partiu de algum lado e se chegou a outro.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Da ausência e da presença

Hermen Anglada-Camarasa - O palco (1901-02)

O palco é um poderoso símbolo da natureza da vida pública. No palco, os actores representam para uma plateia. Em analogia, também as pessoas, na esfera pública, representam para uma plateia, mais ou menos indefinida. O sentido último deste estar perante os outros é o de transformar aquilo que é uma presença numa representação. Representar significa que o representado não está presente, que se torna ausente. Assim, a vida pública - seja em que grau for - é o processo pelo qual aquele que está presente se torna ausenta. A vida espiritual é o processo contrário: é a viagem que parte da representação e da ausência, que lhe é inerente, para procurar alcançar a pura presença.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Eclipses

Eugène Atget - Eclipse (1911)

Num eclipse, um astro oculta outro. Os eclipses, todavia, não são meros fenómenos astronómicos. Também no homem existem eclipses, quase sempre persistentes. Aí o indivíduo, ansioso da sua subjectividade, acaba por se eclipsar a si mesmo.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (265)

Caspar David Friedrich - Couple Watching the Moon (1824)

sob a luz da lua
ergue-se a velha floresta
olhos noite e sombra

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Da vida como sonho

Arnold Böcklin - A vida é um sonho breve (1888)

A definição metafórica da vida como um sonho breve traz nela a ocultação de uma necessidade que se coloca a todos aqueles a quem esse sonho, ainda que breve, foi dado. Trata-se da necessidade de despertar. Por breve que seja o tempo do sonho, o sonhador recebe também a injunção de despertar do sonho, de abandonar o sono e de chegar ao estado de vigília. A vida espiritual do homem, nas suas múltiplas facetas, não é outra coisa senão esse processo de despertar e de transitar do sono para a vigília. No despertar do espírito, o homem morre, mas morre apenas para aquilo que é um sonho, uma ilusão, ainda por cima breve.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Da tempestade

Léonard Misonne - A Storm Arrive

Também as tempestades fazem o caminho do viandante. Não, não digo que fazem parte do caminho. Digo antes que elas também são o caminho. Fazer parte do caminho seria ainda dizer que se podem evitar, que enfrentá-las ou não está na mais do viajante, no seu arbítrio. Se elas também são o caminho, isso significa que não está nas mãos do viandante vivê-las ou não. Elas impõem-se-lhe, são uma necessidade inexorável, uma disciplina obrigatório num currículo que sendo o seu o ultrapassa infinitamente.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 13

Jean-Baptiste Camille Corot - L´Odalisque romaine (1843)

13. Reclino-me sobre

Reclino-me sobre
o teu corpo nu.
Toco-te a pele
e deixo os meus
olhos perderem-se
no negro vazio
que se abre em ti.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Combate enigmático

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

A viagem espiritual nada tem de diversão turística. Na verdade, ela não passa de um combate, do mais enigmático dos combates. O viandante luta consigo próprio, com a sombra que nasce do seu desejo de ser alguém, de possuir uma identidade, com a aspiração humana ao reconhecimento. Luta, na verdade, contra uma quimera. Uma quimera, contudo, não deixa de ser um rude e inultrapassável inimigo enquanto não for reconhecido como aquilo que é, uma quimera.