quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Haikai do Viandante (247)

Giorgio Morandi - Paisagem (1913)

paisagem sem nome
um rasto de eternidade
mundo sem idade

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Estar na margem

Vincent Van Gogh - Na margem do Oise em Anvers (1890)

Estar na margem significa não estar no centro do acontecer. A condição marginal é contudo fundamental para que se possa contemplar o que acontece. Não se pense, porém, que a visão periférica é o fim último. Da periferia ao centro, há todo um caminho a fazer. Não para que o marginal se torne o centro de acção, mas para que se descubra a ilusão que há na separação entre a margem o leito do rio.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Receber e transmitir

Salvador Dali - Anjo (1950)

O quadro de Dali sintetiza a natureza dos anjos. No seu gesto descortina-se tanto aquele que acolhe e protege, como o que entrega uma mensagem, o mensageiro. Para além de tudo aquilo que se possa pensar sobre as narrativas angélicas e o seu lugar nas religiões monoteístas, há algo que importa reter. O anjo é um modelo, um modelo para os homens. Estes, olhando o modelo, devem aprender o acolhimento e a mensagem, devem aprender a receber e a transmitir.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O espírito e a espada

Esteban Vicente - Séries Alison - Harmonia (1976)

Não cuideis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas a espada. (Mat. 10: 34)

A grande ilusão da vida espiritual é a harmonia. Quantas vezes as pessoas julgam que a vida espiritual tem como missão proporcionar-lhe uma existência bem ordenada, perfeita, onde o desacordo consigo e com o mundo desapareça, uma vida de paz, ordem, coerência e conformidade consigo mesmo. A vida espiritual, porém, não veio trazer a paz mas a guerra. Veio trazer a desordem, o desacordo, a desconformidade consigo e a incoerência. A vida espiritual não é uma sessão de auto-ajuda, mas a viagem por uma paisagem em guerra. Quem quiser adentrar-se no caminho do espírito tem de aprender a manejar a espada.

domingo, 6 de setembro de 2015

Haikai do Viandante (246)

Gerardo Rueda - Contrapunto (1971)

um mundo vazio
contraponto e harmonia
coração sombrio

sábado, 5 de setembro de 2015

A voz

José Bellosillo - Adentrándome (1992)

Quando acordou, não compreendeu de imediato a razão por que despertara. Ouviu uma voz. A sua nitidez sonora não correspondia à clareza das palavras. Eram sons que nunca tinha escutado. Parecia chamá-lo, mas não era o seu nome que ouvia. Levantou-se, saiu de casa e seguiu a voz. Caminhou, afastou-se da cidade. Parou perante a parede de neblina. O sussurro vinha de lá. Penetrou na névoa, uma angústia atravessava-lhe o coração, a voz sussurrava. O dia clareou, mas a névoa cerrou-se e a voz recrudesceu em intensidade. Estava próxima, muito próxima. Tropeçou novamente e viu um vulto. Chamou-o. O vulto voltou-se – ele estremeceu perante a sua própria imagem – e a sombra exclamou: até que enfim, eu sou a tua voz, o nome do teu nome. 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Poemas do Viandante (520)

Albert Bierstadt - Bosques outonais (1886)

520. espero-vos em setembro

espero-vos em setembro
bosques outonais

vinde com a vossa mão
trazer-me a sombra

vinde suaves e perfeitos
sob a luz do céu

vinde cobertos de folhas
cantar-me o silêncio

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

O clamor da terra

Marc Chagall - Caim e Abel (1911)

E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. (Gen. 4:10)

A voz do sangue - essa voz que, simbolicamente, iniciou o clamor com o sangue de Abel - não parou de clamar sobre a terra. Caim e Abel originaram infinitos gerações e, a cada instante, o sangue de um novo Abel escorre das mãos de um novo Caim. O clamor das vítimas é tão grande que, parece, terra e céus deixaram de o escutar. Nestes dias de trevas, deveríamos meditar longamente o versículo do Génesis. E não se trata apenas de dar atenção à afirmação a voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. A pergunta é bem mais difícil de suportar. Que fizeste?

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Da vida verdadeira

Maurice de Vlaminck - A aldeia

Um dos grandes mitos das sociedades urbanas é o da vida na aldeia. Uma comunidade pequena, poucas exigências sociais, uma vida simples, preenchem o imaginário daqueles que vivem em comunidades complexas. E tudo isto é imaginado como uma vida mais verdadeira e mais autêntica. Na verdade, contudo, a vida na aldeia pode ser tão falsa e tão inautêntica como na maior das metrópoles actuais. A verdade e a autenticidade da existência não depende do tamanho da comunidade onde se está inserido, mas do compromisso com a voz que, em cada um, o chama e, se for escutada, o guia, independente de ser um aldeão ou um citadino.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Da adoração

Antonio Bisquert - Adoración (1975)

Pode-se pensar que a adoração é uma alienação, dada a sua aparência passional. Isso é uma possibilidade e será certamente verdade para muitas práticas de adoração. Ela, porém, pode ser vista como um mistério, no qual a coisa adorada emerge do apagamento do adorador.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Chegar à fonte

Giovanni Segantini - Mulher na fonte (1895-96)

No intrincado jogo de metáforas e símbolos que a experiência da humanidade foi produzindo, a fonte tem um lugar de relevo. O lugar de onde brota a água presta-se à construção de uma simbólica que nos remete para a fonte da vida, para a fonte do espírito. Chegar, porém, à fonte não é chegar à origem. A fonte é o lugar onde algo se manifesta, emerge no ser e se deixa ver na sua presença. Chegar à fonte não é o fim da viagem. É um recomeço. A fonte é apenas a porta de entrada.

domingo, 30 de agosto de 2015

A aridez da pedra

JCM - Mitologias (o triunfo da vida). Serra de Aire (2007)

Subitamente, na aridez desolada da pedra a vida emerge triunfante. O que aprendemos nós com isso? Talvez a pedra não seja tão árida. Talvez a aridez não se tão petrificante. Aprendemos que a vida do espírito não é outra coisa senão extrair da aridez e da petrificação da existência a vida plena e, cuidando-a, fazê-la triunfar sobre a desolação da morte.

sábado, 29 de agosto de 2015

Da frugalidade e da abundância

Ferdinand Hart Noibbrig - Abundância (1895)

A vida material domina as preocupações dos homens, e domina-as na busca da abundância, de uma infinita viagem de acumulação, que nunca se completa e nunca se sente satisfeita. A vida do espírito, contudo, nasce da frugalidade, do abandono, da satisfação com o acontecer. A vida espiritual não alimenta mercados nem ateia a imaginação dos coleccionadores. Ela é pobre. Foi assim que foi simbolizada no presépio em Belém.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Haikai do Viandante (245)

Asher Brown Durand - A Pastoral Scene (1858)

cenas pastoris
sob um céu primordial
canções juvenis

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Alegoria e realidade

André Masson - Alegoria (1935)

Na definição tradicional de alegoria, pensada como processo retórico ou poético, diz-se que ela é a representação de uma realidade abstracta por intermédio de uma realidade concreta. Se abandonarmos os campos da retórica e da poética e entrarmos no campo da ontologia haverá a possibilidade de pensar, a partir da alegoria, que toda a realidade concreta, incluindo os seres humanos, não é mais do que uma alegoria de uma outra realidade menos concreta, a qual por sua vez seria ainda a alegoria de uma outra ainda menos concreta do que a anterior, num processo infinito, no qual o real se vai despindo da sua materialidade e se vai tornando cada vez mais puro e espiritual. 

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Do burlesco

Thomas Hart Benton - Burlesco (1922)

Deixemos o burlesco enquanto género literário de lado. Não precisamos dele para nos rirmos e apreendermos o risível, o ridículo e o caricato. Basta olhar para nós próprios, para os nossos projectos vitais, e, nobres ou comuns, dignos de tragédia ou objecto de comédia, temos todas as razões para nos rirmos, para nos rirmos continuamente, numa gargalhada sem fim.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Um luar nas trevas

Felix Vallotton - Luar (1895)

Muitas vezes a razão é vista através da metáfora da luz solar, pensando-se, através de uma analogia, que assim como a luz do Sol ilumina a Terra, também a razão ilumina a realidade e permite ao homem compreendê-la. Se a nossa espécie não fosse tão narcísica, tomaria como termo de comparação para a sua razão a luz da Lua e não a do Sol. Isso estaria mais de acordo com os resultados e as decepções que a razão, ao longo da história dos homens, trouxe consigo. A luz da razão pode ser bela, mas não passa de um luar que, com dificuldade, fende as trevas exteriores.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Ficar e partir

Umberto Boccioni - Estados de Alma I - os que partem (1911)

Na vida social dos homens há uma grande diferença entre os que ficam e os que partem. Ficar ou partir são formas diferentes de projectar a vida e podem mesmo constituir um traço de carácter. Na vida do espírito, contudo, é indiferente ficar ou partir, pois há que aprender a ficar como se tivesse partido, e aprender a partir como se tivesse ficado.

domingo, 23 de agosto de 2015

Caminhos áridos

Remedios Varo - Caminho árido (1962)

Na vida do espírito, seja qual for a área onde se desenvolva a vida espiritual (religião, arte, ciência, filosofia), os caminhos áridos, marcados pela impotência criativa, são centrais na viagem. A aridez devolve o espírito à sua humildade, mostra-lhe a sua finitude, mostra-o dentro dos limites que são os seus. Estes exercícios forçados de humildade são, porém, momentos preciosos. Preparam uma nova etapa de criação e de atenção ao que é essencial, de capacidade para escutar a voz que chama.

sábado, 22 de agosto de 2015

Poemas do Viandante (519)

Roberto Domingo - O Moinho

519. ó branco e velho moinho

ó branco e velho moinho
rasga-me a memória

ergue-te sobre os campos
suspende o tempo

e conta-me p'lo caminho
a velha história

envolta em negros mantos
presa num lamento

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O filho pródigo

Ivonne Sánchez Barea - A família (1999)

A família não é apenas um lugar de acolhimento. Ela representa um lugar de ligação. Ligação entre os seus membros - os laços de família - e a ligação com o passado, com o fundo obscuro da humanidade. Tanto os laços actuais como a ligação ao passado foram vistos como sagrados, como tendo uma dimensão espiritual. Essa dimensão espiritual precisa de alguma coisa que a realce e que a vivifique. Ora viagem espiritual do homem traz consigo uma estranha exigência: a da ruptura com a família, a de que nos tornemos filhos pródigos. A aventura do filho pródigo não é apenas a da dissipação. É a do estranhamento e o da aquisição de um novo ponto de vista sobre a família. Ao retornar da sua viagem, o filho pródigo eleva a família de uma dimensão biológica, social e afectiva a uma dimensão espiritual.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Espíritos mundanos

George Grosz - Arbeiter (Trabalhadores) (1912-13)

Houve um momento na história do mundo onde a figura do trabalhador foi tomada como a essência espiritual desse mundo. O mundo, porém, mudou e a essência espiritual do novo mundo desmaterializou-se, tornou-se mais subtil e indecifrável. Apesar das diferenças entre as diversas essências dos múltiplos mundos da história humana, há uma coisa que as une: são todas elas uma ilusão onde o Espírito se aliena e se perde de si mesmo. O importante não é que nos adequemos ao espírito deste mundo, mas que não nos deixemos contaminar por ele, descobrindo o caminho onde o Espírito é como o vento, sopra onde quer.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Haikai do Viandante (244)

Andrés Cortés Aguilar - El Guadalquivir a su paso por Sevilla

nas margens do rio
escuto o rumor das águas
sob um céu sombrio

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Caminhar sobre as águas

Georges Braque - Porto na Normandia (1909)

Se pensarmos os momentos de suspensão na vida espiritual através da metáfora do aportamento, de lançar âncora no porto, então compreendemos que toda viagem do espírito é uma navegação, um abrir horizontes sobre as águas, que, com a sua fluidez, se constituem como uma outra imagem do espírito não muito diferente da do vento. Toda a viagem espiritual é, desse modo, um caminhar sobre as águas.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Improvisar

Wassily Kandinsky - Improvisation (1909)

Vivemos num mundo de planos e de projectos, no qual as acções requerem um elevado grau de premeditação e de deliberação. Neste sentido, o agir dos homens depende de um raciocínio prático, outra forma de dizer a necessidade de uma racionalização prévia do agir. Isto que é regra na vida mundana pode não se aplicar à vida do espírito. O espírito é como o vento, sopra onde quer. E, se assim é, ao homem resta-lhe a improvisação, a resposta espontânea à solicitação do acontecer.

domingo, 16 de agosto de 2015

Visões outonais

Alson Skinner Clark - Claridade de Outono

Na simbólica das estações do ano, o Outono surge como o tempo do declínio. O grande fulgor, simbolizado pelo Estio, já passou, mas a vida ainda não entrou no frio e negro Inverno, presságio da morte. A vida espiritual, contudo, encontra no Outono uma outra simbolização. A claridade do Outono, de onde desapareceram os efeitos dos ardores primaveris e da efervescência estival, é a mais propícia ao caminho e a que permite ver mais fundo e melhor. Não há visões como as trazidas pelo Outono.

sábado, 15 de agosto de 2015

Poemas do Viandante (518)

Jeanne Carbonetti - Puesta de sol en Turner (1987)

518. um lenço de seda fria

um lenço de seda fria
cai sobre a terra

seda vestida de negro
prende a floresta

num laço de cinza pálida
que a tudo encerra

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Integrar o destruído

Salvador Soria - Integración de lo destruido 91-H (1991)

A vida do espírito não é um caminho que se faça sem processos de destruição. Destroem-se visões do mundo, formas de estar, hábitos essenciais. Não é a destruição que é inimiga da vida espiritual, mas o desperdício. Desperdiçar o que se destrói é pôr de lado um aspecto essencial da viagem. O importante não é evitar a destruição mas saber integrar plenamente em si aquilo que foi destruído.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Agora sou um homem

Francis Bacon - Man Turning on the Light (1973-74)

A velha barata habitava a casa há muitos anos. Era alimentado pela família e acabara por ter um quarto para dormir. Talvez tivesse ali nascido e crescido, e o seu desmedido crescimento tornara-a uma presença inquestionável. O hábito pode tudo. Grete, a filha do casal, dizia aos vizinhos: esta barata repugnante é como se fosse meu irmão. Que nome tem, perguntavam. Ela respondia: Gregor. Gregor Samsa. Um nome melancólico para barata tão grande, respondiam. Tudo isto, ao longo dos anos, fora percebido pelo insecto. O seu cérebro humanizara-se no conforto da casa. Esta noite, porém, o seu sono de barata fora entrecortado por estranhos sonhos e por dores terríveis. Tudo no corpo se lhe tornava insuportável. Na tensão do sofrimento, a barata deu um salto e precipitou-se para o interruptor. O quarto iluminou-se. Toda a cidade foi varrida por um grito pavoroso e ouviu uma voz gigantesca exclamar: meu Deus, piedade, agora sou um homem.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Jardim e utopia

Pierre Bonnard - O grande jardim (1898)

Poder-se-á pensar que a raiz da propensão utópica no mundo ocidental se encontre na República platónica. O livro de Platão, porém, é demasiado abstracto para incendiar a imaginação popular. É no Génesis bíblico que encontramos o fundamento dessa propensão. O Jardim do Éden, esse lar primeiro do homem, não é apenas o modelo de todos os jardins que o engenho do homem ocidental constrói, é o objecto perseguido em cada utopia que ele desenha. Estas utopias, tão diferentes entre si, não são mais do que a aspiração do filho pródigo ao retorno à casa paterna, ao lar originário.