domingo, 9 de março de 2014

Poemas do Viandante (452)

João Queiroz - Sem título (2007-8)

452. Espero-te no deserto

Espero-te no deserto,
despido de mim.

Sei-te longe mas tão perto,
és um não e um sim.

Velho destino incerto,
não, não terás fim.

sábado, 8 de março de 2014

Obstáculos e portas

John Constable - A boat passing a lock (1824)

Superar um obstáculo não significa o fim dos obstáculos. Abrir uma porta não implica que se tenha chegado ao destino. A viagem não tem fim. Infinitas são as portas e inumeráveis os obstáculos. Ao viandante, apenas cabe continuar o caminho e dar graças pela porta que se abriu ou pelo obstáculo disposto no caminho.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Uma nova inocência

Luc Tuymans - Disenchantment (1990)

O triunfo da ciência moderna e da razão instrumental trouxeram o fim do mundo encantado em que o homem vivera até então. Com esse fim, nasceu a nostalgia do encantamento, o desejo de reencontrar essa unidade perdida entre a natureza e a sobrenaturalidade. Esse passado não é apenas um estranho país. É uma pátria para sempre interdita. O retorno a essa inocência - uma inocência culpada pelo que havia nela de desconhecimento - está-nos vedado. A perda dessa inocência, porém, abriu o caminho para uma nova inocência, aquela que nasce do conhecimento e da dissolução da culpa.

quinta-feira, 6 de março de 2014

O leitor final

Antonio Tápies - O leitor final. A carta (1950)

Perante uma comunicação - uma carta, um livro, etc. - o que significa a expressão "leitor final"? Será o último destinatário? Será aquele que toma a leitura como um fim? Não. Por leitor final devemos entender aquele que ao ler se toma a si como fim. Ler faz parte da viagem, dessa viagem que cada um faz para si mesmo. O enigma que o texto traz consigo não reside no próprio texto mas naquilo que ele desencadeia no próprio leitor, de tal forma que este se descobre como o fim de todas as suas leituras.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Da sonolência temporal

Elizabeth Holsman - Um dia sonolento (1915)

Nos dias de torpor manifesta-se ao espírito uma certa qualidade do tempo que não é visível noutras alturas. É como se o tempo objectivo se tornasse mais lento, e a própria temporalidade se mostrasse cansada. Argumentar-se-á, não sem razão, que essa experiência se deve à nossa disposição psicológica e a uma certa configuração neuronal. Ambas levarão a uma antropomorfização da natureza, projectando a sonolência do homem na própria realidade objectiva. Nada melhor para o comprovar do que a medição exacta dos ciclos do dia e da noite. O que podemos perguntar, contudo, é pelo motivo que, em certas alturas, nos leva a considerar o tempo como lento. Não será a própria realidade e o decurso do tempo a exigir de nós esse tipo de interpretação? Não terá a natureza a necessidade de multiplicar as temporalidades, para melhor se manifestar, desprendendo-se de uma leitura objectivista dada pela medição do relógio?

terça-feira, 4 de março de 2014

Para além do homem

Francis Bacon - Man Kneeling in Grass (1952)

                                         Digno de compaixão é o homem que não ultrapassa o homem (Séneca).                                                                                       
Ser mais que homem é o desejo inscrito no coração da humanidade, como se a ideia de se ser aquilo que se é fosse escandalosa e digna de compaixão. Nesta ânsia de ultrapassagem podemos pensar com Nietzsche o sobre-homem, mas também podemos pensar o não homem, a não humanidade. Esta não significa obrigatoriamente uma inumanidade entendida como barbárie e ferocidade animal, mas algo que seja incomensurável com o homem. Por exemplo, Deus que permanece inefável para o discurso humano.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Haikai do Viandante (178)

Paul Klee - Landscape with yellow birds (1923)

um raio de sol
e uma revoada de pássaros
chama a primavera

domingo, 2 de março de 2014

Do finito e do infinito

Jacinta Gil Roncalés - Busca do infinito (1991)

A marca mais manifesta da nossa finitude é a natureza insaciável do desejo humano. Essa insaciabilidade, porém, não nos mostra apenas a nossa limitação e finitude. Torna manifesto, ao sentimento e à razão, o infinito, como se a insaciabilidade de que padece a nossa faculdade de desejar fosse o reflexo - melhor, o negativo fotográfico - do infinito que chama por nós.

sábado, 1 de março de 2014

Poemas do Viandante (451)

Salvador Dali - La ilusión diurna: La sombra del gran piano acercandose (1931)

451. Chove. Chove no silêncio

Chove. Chove no silêncio
deste dia de Março.

Uma água de primavera
desce sobre o mundo

e desenha no teu rosto
a luz duma sombra.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Para lá da esperança e do medo

Lawrence Alma-Tadema - Between Hope and Fear (1876)

A expectativa domina a vida dos homens. A necessidade vital de prever o que vai acontecer acaba por dividir o homem entre o medo e a esperança, as formas negativa e positiva de expectativa. A viagem, porém, só começa quando se abandona qualquer expectativa, quando se deixa de lado tanto o medo como a esperança. Nessa hora, começa a aceitação. Aceitar, porém, é a mais difícil das aventuras.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Ascensão e pausa

Johannes Itten - Ascensão e Pausa (1919)

Como pensar a vida sobre a Terra? Se esta é a nossa condição, ela não é a finalidade para a qual o desejo dos homens, de uma maneira ou de outra, se dirige. Ascender, elevar-se, subir a escarpada montanha, eis aquilo que move o mais secreto dos segredos do homem. A pausa na ascensão é o tributo que há que pagar à gravidade, esse desejo que a Terra tem de nela prender os seus filhos.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Acção de graças

Markus Luepertz - Acção de graças (2001)

Talvez o mais importante na viagem que cabe a cada ser humano seja a acção de graças. Esta não é meramente um exercício religioso, onde o fiel, perante a divindade, reconhece a graça recebida e a sua omnipotência. A acção de graças é um acto social de reconhecimento daquilo que em nós é devedor do outro, seja este outro um ser humano, um animal ou a natureza em geral. E o que haverá em nós que não seja devedor do outro? Na acção de graças confluem a generosidade da graça e o reconhecimento. Nessa confluência está o alicerce de toda a comunidade autêntica.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Haikai do Viandante (177)

Esteban Vicente - Ao longe (1970)

obscuras paisagens
erguem-se sobre os meus olhos
ferozes imagens

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Elemento fogo

Gustavo Torner - Átomos - Os Quatro Elementos - Fogo (1986)

Ao atingir a perfeição, tudo incandesce, a terra, a água, o ar. No princípio e no fim está o fogo. Crepita nas lareiras, braveia na floresta, sopra no fundo das galáxias. No escuro da noite, quando o coração se exalta e o espírito se ilumina, é o fogo que desce e se torna vida.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Elemento ar

Gustavo Torner - Átomos - Os Quatro Elementos - Ar (1986)

Descobre-se no sopro, canta no vento, viaja incógnito sobre terra e água. Tão subtil que parece o símbolo da ciência, a promessa de um voo, o desígnio de um profeta que, tomado pela vertigem, anuncia um mundo de fogo e desolação.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Elemento água

Gustavo Torner - Átomos - Os Quatro Elementos - Água (1986)

Presa à terra e toda ela ânsia de mobilidade, metamorfose, figura que ao perder-se se transfigura. No seio, a leveza do ar e o desejo do fogo, a vida que se incendeia. No frio, é pedra e gelo, anúncio de morte. Água, o mistério dos mistérios. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Elemento terra

Gustavo Torner - Átomos - Os Quatro Elementos - Terra (1986)

Dos quatro elementos, a terra é o mais pesado. Traz com ele o segredo da gravidade e enraíza os homens no lugar a que chamam pátria ou lar. E no entanto está prestes a liquefazer-se, pois é pó, poeira arrastada pelo vento. E sob o sopro do vendaval, as casas entregam-se à ruína e os impérios desfazem-se.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Como as árvores

Liubov Popova - Árvores (1911-12)

Árvores, raízes na terra, ramos erguidos aos céus. Se há alguma coisa que estamos a perder é a percepção da árvore como símbolo da condição humana. Também o homem pertence à terra, é nela que tem as suas raízes, mas é ao alto, aos céus, que deve aspirar. No entanto, o peso da gravidade dobra-lhe a cerviz e, impotente, o olhar perde-se no pó. Será ainda capaz de voltar a olhar para uma árvore e deixar-se instruir por ela?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Haikai do Viandante (176)

Carmen Dominguez - Cuando la luz confesó

um mistério habita
no sagrado ser da luz
voa e logo grita

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Na orla do bosque

Camille Pissarro - Lisière d'un bois (1879)

Estar na orla do bosque é permanecer na fronteira, nessa linha imaginária que separa dois mundos. Ali o viandante hesita, talvez tomado pelo pânico, talvez forçado pela tradição do cálculo. O que ganha e o que perde? O medo ou a interrogação retêm-no nesse lugar ensombrado. Terão mais força os velhos hábitos ou a voz que o chama conduzirá o seu desejo? É na fronteira, nesse espaço irreal, que os homens, indecisos, acabam por dissipar o tempo. Fugir ou adentrar-se no obscuro território que está para além da raia, eis o dilema onde a vida se dissolve.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Ocaso

Jaime Burguillos - Ocaso (1976)

Não é quando o Sol se põe e a noite desce que a viagem termina. O poente é antes o sinal de partida. Ao viandante espera-o a noite escura, a noite onde tudo se dissolve e o velho sentido das coisas é arrastado para o nada donde saiu. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A fonte originária

Valentín Albardíaz - La fuente de doña Inés (1994)

O alfa e o ómega, o princípio e o fim. Não traçarão eles um caminho linear que de um levará ao outro? No princípio não nos será já apontado o fim, ao qual acederemos como mais ou menos rectidão? Mas se tudo isso resultar duma visão distorcida? Se isso acontecer, então o alfa e o ómega serão o mesmo, assim como o princípio e o fim. Podemos chamar fonte, a esse lugar donde tudo parte e aonde tudo deve regressar. O princípio é já a causa final da viagem iniciada. Os dois são a fonte originária donde proviemos e que nos aguarda.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

O turista e o peregrino

José Bellosillo - Adentrándome (1992)

Há duas formas de fazer o caminho que se abre ao chegarmos à vida. Podemos ir de estação em estação, percorrendo múltiplos e diversos caminhos como se, apesar da diferença, fossem o mesmo. Podemos, todavia, fazer o caminho sem sequer sairmos do local que nos cabe, penetrando-o mais e mais, percebendo a sua espessura, compreendendo-o na diferenciação que constitui a sua identidade. No primeiro caso, escolhe-se a via do turista. No segundo, a do peregrino.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Poemas do Viandante (450)

Francisco Soto Mesa - 3.98.1 (1998)

450. O súbito entrelaçar

O súbito entrelaçar
dessas mãos vazias.

O pássaro esquecido
na sombra do medo.

São flores incendiadas
no chão da floresta.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

De sombra em sombra

Lucio Fontana - Ambiente spaziale (Labirinto bianco) (1968)

Criar a penumbra para que a luz possa vir. Os homens são frágeis e não está na sua condição suportar demasiada luz. Por isso, é necessário que ela chegue até nós intermediada por uma e outra cortina. De sombra em sombra, o homem trilha o infinito caminho para a luz.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A viagem angustiada

Giorgio de Chirico - A viagem angustiada (1913)

Certas correntes de pensamento viram na angústia uma experiência pela qual se tomava consciência do ser, daquilo que é. Mas não será precisamente o contrário? Não será já a experiência viva do ser e da sua infinitude que gera uma consciência angustiada? Na angústia, a consciência confronta-se com o perigo da perda, com a atracção pelas ilusões que nos oferecem a possibilidade de trocarmos o ser pela aparência. Na angústia, revela-se assim o medo da nossa incapacidade de persistir no ser, o temor pelo não-ser.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Haikai do Viandante (175)

Albert Rafols Casamada - Blanco (1960)

as brancas paisagens
são sombras de velhas árvores
ramos e folhagem

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Entrar no bosque

Piet Mondrian - Bosque (1912)

Entrar no bosque é deixar o mundo da vida activa. Não se trata de uma viagem turística ou de uma mera transição entre reinos. O bosque espera aquele que, solitário e esquecido dos interesses humanos, procura a palavra que na eternidade chamou por ele. Ao entrar, o silêncio toma conta do seu coração e todo o seu ser é, nessa hora, um puro acto de escuta.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Na ira dos elementos

Antonio Muñoz Degrain - O Tejo. Chuva

Nos dias como o de hoje, onde a natureza parece revoltada e, na sua raiva, ameaça a frágil disposição dos objectos humanos, a relação do homem com a terra parece emergir naquilo que tem de mais fundamental. O homem sente-se pertença daquilo que o ameaça e escuta na ira dos elementos o seu próprio grito.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Poemas do Viandante (449)

Caspar David Friedrich - Evening (1824)

449. Em cada palavra dita

Em cada palavra dita
quando o dia cai,

em cada palavra escrita
no fulgor da noite,

há um temor que se avista:
Vem e logo vai.