quarta-feira, 27 de março de 2013

A hora que se aproxima

Salvador Dali - A persistência da memória (1931)

Naquele tempo, um dos Doze, chamado Judas Iscariotes, foi ter com os sumos sacerdotes e disse-lhes: «Quanto me dareis, se eu vo-lo entregar?» Eles garantiram-lhe trinta moedas de prata. E, a partir de então, Judas procurava uma oportunidade para entregar Jesus. No primeiro dia da festa dos Ázimos, os discípulos foram ter com Jesus e perguntaram-lhe: «Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?» Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» Os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara e prepararam a Páscoa. Ao cair da tarde, sentou-se à mesa com os Doze. Enquanto comiam, disse: «Em verdade vos digo: Um de vós me há-de entregar.» Profundamente entristecidos, começaram a perguntar-lhe, cada um por sua vez: «Porventura serei eu, Senhor?» Ele respondeu: «O que mete comigo a mão no prato, esse me entregará. O Filho do Homem segue o seu caminho, como está escrito acerca dele; mas ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue. Seria melhor para esse homem não ter nascido!» Judas, o traidor, tomou a palavra e perguntou: «Porventura serei eu, Mestre?» «Tu o disseste» respondeu Jesus. (Mateus 26,14-25) [Comentário de Catarina de Sena aqui]

Em parte, o conteúdo do texto de Mateus foi já comentado aqui e aqui. Não se retornará à questão colocada pelo acto de Judas. Comentar-se-á apenas o estranho versículo 18: Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» A estranheza do versículo deriva da conexão entre “um certo homem” e aquilo que lhe deve ser dito.

As perguntas que surgem são óbvias. Quem será esse tal homem, que o texto apresenta de forma tão indeterminada? A importância desta figura invisível não advém apenas do facto de ser na casa dele que Cristo quer celebrar a Páscoa com os discípulos, embora o facto de ser aí precisamente e não noutro lugar não seja coisa despicienda. Esse alguém parece ter uma capacidade de compreensão do mistério crístico muito acima dos próprios discípulos, pois entende a expressão “o meu tempo está próximo”, a qual funciona como uma verdadeira senha que o leva a abrir a porta para  que seja aí realizada a Última Ceia. Quem é homem? O que sabe ele para que entenda a senha? Que relação tem ele, que não é um dos discípulos, com o próprio Cristo?

Kαιρος μου εγγυς εστιν, esta é a expressão grega do texto recebido que pode ser traduzida por a minha hora aproxima-se. É preciso distinguir entre kairos e cronos. Ambos podem ser traduzidos por tempo. Contudo, cronos remete para um tempo cosmológico que os calendários tentar fixar e dar sentido. Já kairos é o tempo existencial, e a expressão designa a hora certa ou própria de um determinado acontecer. Isto significa que aquela hora que se aproxima não se inscreve tanto na cronologia do cosmos ou da própria história humana, mas é da dimensão da irrupção de um acontecer decisivo que aguarda a hora oportuna.

Quando se diz que esse acontecer que pertence ao kairos não se inscreve na história humana, diz-se algo de muito parcial, diz-se que ele não pertence ao normal decurso dos acontecimentos sociais. Esse acontecer, todavia, acaba por se tornar inaugural dessa mesma história, pois desenha – e a história do Ocidente é a sua comprovação – um antes e um depois, ao qual toda uma civilização acabará por reportar os acontecimentos históricos.

Retorne-se à questão – que parece absolutamente decisiva – sobre a identidade daquele homem a quem os discípulos levaram o recado do mestre. A palavra grega presente no texto é δεῖνα. Ora este termo é usado quando não se especifica quem é a pessoa de quem se fala. Podemos dizer que é um espaço vazio à espera de ser preenchido por alguém com uma dada biografia. Reformule-se a questão: a quem levaram, na cidade, os discípulos  o recado do mestre, a quem foi apresentada a senha? Esse espaço biográfico vazio parece estar vago para ser preenchido com o nome de cada um de nós.

Para além da misteriosa figura histórica do dono da casa onde a Páscoa será comida, é a cada homem que o Mestre anuncia – e a anuncia a cada instante – que a Sua hora se aproxima. A cada momento é apresentada a senha – a minha hora aproxima-se – a cada homem. Esta senha solicita uma determinada resposta: abrir-lhe a casa (essa metáfora do nosso próprio ser) para que o mistério seja consumado no mais fundo e no mais secreto de cada um. Podemos negar, fugir, até trair, mas a hora que se aproxima é também a nossa hora.

terça-feira, 26 de março de 2013

Negação e traição

Discípulo Anónimo de Saraceni - La negación de San Pedro

Naquele tempo, estando Jesus à mesa com os discípulos, sentiu-Se intimamente perturbado e declarou: «Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há-de entregar!» Os discípulos olhavam uns para os outros, sem saberem a quem se referia. Um dos discípulos, aquele que Jesus amava, estava à mesa reclinado no seu peito. Simão Pedro fez-lhe sinal para que lhe perguntasse a quem se referia. Então ele, apoiando-se naturalmente sobre o peito de Jesus, perguntou: «Senhor, quem é?» Jesus respondeu: «É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado.» E molhando o bocado de pão, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. E, logo após o bocado, entrou nele Satanás. Jesus disse-lhe, então: «O que tens a fazer fá-lo depressa.» Nenhum dos que estavam com Ele à mesa entendeu, porém, com que fim lho dissera. Alguns pensavam que, como Judas tinha a bolsa, Jesus lhe tinha dito: 'Compra o que precisamos para a Festa', ou que desse alguma coisa aos pobres. Tendo tomado o bocado de pão, saiu logo. Fazia-se noite. Depois de Judas ter saído, Jesus disse: «Agora é que se revela a glória do Filho do Homem e assim se revela nele a glória de Deus. E, se Deus revela nele a sua glória, também o próprio Deus revelará a glória do Filho do Homem, e há-de revelá-la muito em breve.» «Filhinhos, já pouco tempo vou estar convosco. Haveis de me procurar, e, assim como Eu disse aos judeus: 'Para onde Eu for vós não podereis ir', também agora o digo a vós. Disse-lhe Simão Pedro: «Senhor, para onde vais?» Jesus respondeu-lhe: «Para onde Eu vou, tu não me podes seguir por agora; hás-de seguir-me mais tarde.» Disse-lhe Pedro: «Senhor, porque não posso seguir-te agora? Eu daria a vida por ti!» Replicou Jesus: «Darias a vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: não cantará o galo, antes de me teres negado três vezes!» (João 13,21-33.36-38) [Comentário de Francisco de Sales aqui]

Poder-se-ia fazer o elenco das figuras negativas perante Cristo. A primeira figura do negativo seria a do não reconhecimento, a segunda a da indiferença, a terceira a da negação e a quarta a da traição. Nos textos evangélicos a primeira figura, e por vezes a segunda, assomam sob o modelo do fariseu ou do doutor da lei. São negatividades exteriores, digamos assim. As duas últimas figuras são exemplificadas por discípulos, Pedro e Judas, e remetem claramente para uma negatividade interior.

Um dos caminhos de interpretação do texto proposto para hoje seria o de moralizar e propor uma avaliação ética da negação e da traição. Isso, porém, seria reduzir o cristianismo a um mero caminho moral de vida, reduzindo a figura de Cristo a um mestre da moral, a uma espécie de Sócrates judaico, que teria trocado a argumentação lógica pelo paradoxo das parábolas. De certa forma, foi isso o que o protestantismo acabou por fazer. O cristianismo, contudo, dirige-se a uma transformação existencial, a uma conversão ontológica. Esta conversão está muito para além do bem e do mal, para além da dimensão moral.

O que está em causa é a conversão da pessoa ao Cristo que há em si, o abandono do eu empírico, da máscara social que sempre ressoa sob a palavra pessoa. Assim compreendido o cristianismo, a questão da negação de Pedro ou da traição de Judas ganha uma outra significação e – não negando a historicidade do acontecimento – confronta-nos a nós mesmos naquilo que há de mais fundo e misterioso no nosso ser.

Negar é o que acontece connosco quando aquilo que nos é exigido ameaça o nosso eu empírico, põe em causa a verdadeira mascarada com que nos apresentamos na vida social e perante nós mesmos. No processo de negação há, de facto, reconhecimento, mas esse reconhecimento é negado por motivos de segurança do eu empírico, essa ilusão sempre ávida de segurança e de certificação da sua existência. Trair, por seu turno, significará vender aquilo que há de mais essencial em nós. O aspecto comercial da traição, embora importante, não é o mais significativo. O mais importante é que a traição conduz à morte do Cristo que há em nós, à morte daquele que é o caminho de libertação e de emancipação de cada um. Aquele que trai o Cristo, a fonte de Vida que tem em si, morrerá, isto é, ficará confinado à sua dimensão empírica, à ilusão de si mesmo, ficará preso à máscara que criou.

Sonetos do Viandante (20)

Vincent Van Gogh - Senda del bosque (1887)

20. São frívolos os tempos que a vida

São frívolos os tempos que a vida
Trouxe para vivermos, são invernos
De que não haverá fim, primaveras
Abortadas no seio da madrugada.

Desçamos ao sagrado esquecimento,
Ocultemos de nós os dias felizes.
Que o bom anjo da noite por ti vele
E traga o veludo das estrelas,

A promessa do sono que teremos,
O silêncio que ao mundo me subtrai.
Tempo transfigurado, terra avara,

Nele perdi a infância, essa casa
Onde a luz, pura e frágil, não se apaga,
Bosque de sombra e puro amanhecer.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Acção e contemplação

Pablo Picasso - Contemplación (1904)

Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde vivia Lázaro, que Ele tinha ressuscitado dos mortos. Ofereceram-lhe lá um jantar. Marta servia e Lázaro era um dos que estavam com Ele à mesa. Então, Maria ungiu os pés de Jesus com uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço, e enxugou-lhos com os seus cabelos. A casa encheu-se com a fragrância do perfume. Nessa altura disse um dos discípulos, Judas Iscariotes, aquele que havia de o entregar: «Porque é que não se vendeu este perfume por trezentos denários, para os dar aos pobres?» Ele, porém, disse isto, não porque se preocupasse com os pobres, mas porque era ladrão e, como tinha a bolsa do dinheiro, tirava o que nela se deitava. Então, Jesus disse: «Deixa que ela o tenha guardado para o dia da minha sepultura! De facto, os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim não me tendes sempre.» Um grande número de judeus, ao saber que Ele estava ali, vieram, não só por causa de Jesus, mas também para verem Lázaro, que Ele tinha ressuscitado dos mortos. Os sumos sacerdotes decidiram dar a morte também a Lázaro, porque muitos judeus, por causa dele, os abandonavam e passavam a crer em Jesus. (João 12,1-11) [Comentário de João Paulo II aqui]

De facto, os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim não me tendes sempre. O texto de João expõe a ordenação dos modos de vida. A preocupação com os pobres simboliza a vida activa, o compromisso com os outros, a dinâmica da dádiva e do cuidado, mas também o estar envolvido na interacção social, fazer parte desse jogo. A actividade de Maria é o símbolo da contemplação, onde a o foco da atenção se desloca do outro para o Outro que reside no fundo de cada um. A hierarquia, por surpreendente que seja para o homem moderno, é muito clara. A contemplação – essa inútil actividade do espírito, segundo a lógica activista de Judas Iscariotes ou da ideologia contemporânea – vem em primeiro lugar e tem primazia relativamente à dinâmica de intervenção social.

Uma interpretação sociológica do texto, fundada no sentido literal, faria de Cristo o profeta da eterna pobreza. Não que a história tenha infirmado a literalidade das suas palavras. Na verdade, em nenhum momento da história a pobreza deixou de assediar os seres humanos. Vale a pena, por isso, determo-nos na palavra grega usada, πτωχοὺς, e compreender o seu campo semântico. Por certo, significa mendigo, pedinte, pobre. Contudo, o vocábulo grego remete para uma descrição fenomenológico dessa mendicância. Esta é figurada por uma posição de retraimento, de alguém que se agacha e encolhe de medo. O pobre (πτωχοὺς) é uma figura da interacção social, o que deixa de imediato subentendido que é esta interacção que o produz e o coloca na representação descrita.

Pobres sempre os tendes, não é apenas uma constatação de facto, mas um aviso. A questão essencial não se encontra no entrar no jogo da interacção social (vender o perfume e dar o dinheiro aos pobres), pois isso seria reproduzir os pobres, entrar no mesmo jogo que produz a pobreza e faz com que alguns – talvez muitos – homens se apresentem diminuídos perante os outros. Mais importante é o encontro com a Verdade, o encontro consigo mesmo na contemplação do Cristo, daquele que nem sempre temos perante nós. E é só este encontro com a Verdade que permite salvar a acção do jogo mundano produtor de pobreza. Esta tanto pode ser a do mendigo que se agacha e humilha perante o homem rico, como a pobreza de cada um de nós perante a multiplicidade das coisas do mundo que nos atraem e nos obrigam a agachar e encolher perante elas ou a sua ausência.

Nas palavras de Cristo não há qualquer ilusão sobre a sociedade e o activismo cego. Também não há qualquer negação da acção, mas há uma clara indicação tanto da hierarquia entre contemplação e acção como do papel da contemplação na limitação dos riscos de reprodução da injustiça que toda a acção parece conter em si mesma.

domingo, 24 de março de 2013

Da natureza do servir

Aubrey Vincent Beardsley - The Kiss of Judas, illustration for The Pall Mall Magazine (1893)

«No entanto, vede: a mão daquele que me vai entregar está comigo à mesa! O Filho do Homem segue o seu caminho, como está determinado; mas ai daquele por meio de quem vai ser entregue!» Começaram a perguntar uns aos outros qual deles iria fazer semelhante coisa. Levantou-se entre eles uma discussão sobre qual deles devia ser considerado o maior. Jesus disse-lhes: «Os reis das nações imperam sobre elas e os que nelas exercem a autoridade são chamados benfeitores. Convosco, não deve ser assim; o que for maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve. Pois, quem é maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora, Eu estou no meio de vós como aquele que serve. (Lucas 22,21-27) [Comentário de Cirilo de Alexandria aqui] [Nota: o texto do evangelho de Lucas de hoje tem uma dimensão incomportável para o comentário num blogue. Escolheu-se apenas uma pequena passagem para comentário. Consultar o texto de Lucas completo aqui (deverá ser necessário pesquisar, depois, na data correspondente)]

Este excerto pode ser lido no cruzamento de duas temáticas. A primeira cruza traição e missão. A segunda meditação centra-se no problema da autoridade. A transição entre os dois temas é obscura. Perante o anúncio de que um dos discípulos iria praticar a traição, surgiu a questão de qual deles seria o traidor. De imediato, porém, o texto resvala para uma outra questão: qual deveria ser considerado o maior. Neste texto de Lucas descobre-se, de imediato, que aqueles discípulos escolhidos são humanos, demasiado humanos. Não parecem ser pessoas especialmente espirituais, mas homens comuns que podem trair e que, movidos pela vaidade, se questionam pelo seu lugar e pela sua preeminência. Talvez este apontamento sociológico dos discípulos permita ligar os dois temas em causa.

O Filho do Homem deverá realizar a sua missão, cumprir o seu serviço, efectivar a sua destinação. Que esta missão, para que seja consumada, dependa de um acto de traição não é das menores perplexidades que se encontram nos textos evangélicos. Contudo, a traição inscreve de imediato aquela missão no espaço humano, embora não lhe retire o carácter providencial que ela encerra. Uma estranha dialéctica está aqui inscrita: a traição tem por fim evitar a consumação da missão, mas é ela que desencadeia a sua efectiva realização. Ora, como se poderá avaliar o acto de traição? Do ponto de vista objectivo, ele permitiu que a missão se realizasse. Do ponto de vista subjectivo, não deixa de ser um serviço vil. A missão de Cristo não se realizou devido ao acto de traição mas com e apesar dele. Independentemente das consequências, há formas de servir que são absolutamente vis (ai daquele por meio de quem (o Filho do Homem) vai ser entregue!)

O segundo tema do texto de Lucas é o da autoridade. Contrariamente à autoridade política, que reside no poder e na dominação, a autoridade representada pela figura de Cristo reside no serviço. Maior é aquele que serve os outros, não o que os domina e coage. Servir significa então um exercício de libertação. Será tanto maior, terá tanto mais autoridade, quanto maior for a disponibilidade para servir. No cerne da autoridade (o ser maior) está então o servir. É neste conceito que se encontra a ligação com a traição, a qual também é um serviço.

Servir é o essencial, mas nem todas as formas de servir são dignas de valor. O texto traz assim a necessidade de perscrutar as razões por que nos dispomos a servir os outros. Esse perscrutar é também um caminho de purificação. Os homens são frágeis, vaidosos e dissimulados. Por isso, a sua forma de servir pode ser muita idêntica à daquele cujo serviço foi trair. O texto confronta-nos com o núcleo central das razões que nos conduzem a determinadas opções, e confronta-nos na sua máxima dureza. Serves por que razão? Não será o teu serviço um acto de traição?

Haikai do Viandante (133)

George Inness - Twilight (1860)

Pura luz da noite,
chegas frágil e cansada:
refúgio e açoite.