domingo, 17 de fevereiro de 2013

Poder e tentação

Ivan N. Kramsko - Cristo no Deserto (1872)

Naquele tempo, Jesus, cheio do Espírito Santo, retirou-se do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde esteve durante quarenta dias, e era tentado pelo diabo. Não comeu nada durante esses dias e, quando eles terminaram, sentiu fome. Disse-lhe o diabo: «Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se transforme em pão.» Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: Nem só de pão vive o homem.» Levando-o a um lugar alto, o diabo mostrou-lhe, num instante, todos os reinos do universo e disse-lhe: «Dar-te-ei todo este poderio e a sua glória, porque me foi entregue e dou-o a quem me aprouver. Se te prostrares diante de mim, tudo será teu.» Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto.» Em seguida, conduziu-o a Jerusalém, colocou-o sobre o pináculo do templo e disse-lhe: «Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, pois está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, a fim de que eles te guardem; e também: Hão-de levar-te nas suas mãos, com receio de que firas o teu pé nalguma pedra.» Disse-lhe Jesus: «Não tentarás ao Senhor, teu Deus.» Tendo esgotado toda a espécie de tentação, o diabo retirou-se de junto dele, até um certo tempo. (Lucas 4,1-13) [Comentário de Rafael Arnaiz Baron aqui]

A meditação sobre as tentações de Cristo no deserto não pode ser desligada do seu contexto. Este é o de um exercício ascético de purificação e autodomínio. Olhadas deste ponto de vista, e tendo em conta o carácter das tentações descritas, elas mostram o perigo que este domínio de si representa. Esse perigo é o da vontade de poder. O poder sobre a natureza, o poder político e social e o poder metafísico sobre o mundo espiritual e divino. Esta vontade de poder pode ser pensada em ligação com a ideia de errância e de falhar o alvo existencial (ver aqui). Seria o aspecto mais tenebroso dessa errância e dessa falência.

O texto de Lucas é uma crítica ao anseio da dominação fundado numa autodominação. O desejo do poder é visto como uma tentação fundada no poder sobre si mesmo. O que Cristo veio mostrar é que a ascese espiritual não é, não deve ser, uma via para a constituição de um poderio sobre o real. Ao associar a tentação à questão do poder, o texto de Lucas sublinha um aspecto que passa muitas vezes despercebido. O carácter negativo do próprio poder, a sua origem tenebrosa. Ele é uma coisa que tenta o homem, a tentação mostra-o como aquilo que infringe a norma essencial que deve reger a existência dos homens.

O cristianismo rejeita desde a sua origem o mito prometaico, o desejo de dominação sobre o real. Essa rejeição, todavia, não visa, como pretende a leitura nietzschiana do cristianismo, a afirmação de uma vontade de poder dos que são fracos e débeis para dominarem os fortes e poderosos, os transbordantes de vida. Se se quer apresentar um texto que refute a interpretação nietzschiana este é um deles. O que é mostrado é que toda a vontade de poder é uma patologia da própria vontade, o sintoma de uma doença existencial, o sinal de que se perdeu o alvo.

A ascese, o sacrifício, a resistência aos desejos e necessidades fazem sentido, mas não como exercício propedêutico a uma dominação. Eles são um princípio de instauração de uma outra relação do self com aquilo que o rodeia, uma forma de perder as ilusões e de se abrir à verdade, à sua e à dos outros, à verdade também desse totalmente Outro, que não se deixa envolver pelas maquinações de um ego errante e incapaz de encontrar um horizonte, que se perverte no desejo de tudo poder. Ir para o deserto é o caminho para descobrir essa norma essencial, a norma que nos diz que devemos abandonar todas as pretensões ilusórias acerca da glória do nosso pequeno eu empírico.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Convocar os errantes

Oskar Kokoschka - Cavaleiro Errante (1915)

Naquele tempo, Jesus viu um cobrador de impostos, chamado Levi, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: «Segue-me.» E ele, deixando tudo, levantou-se e seguiu-o. Levi ofereceu-lhe, em sua casa, um grande banquete; e encontravam-se com eles, à mesa, grande número de cobradores de impostos e de outras pessoas. Os fariseus e os doutores da Lei murmuravam, dizendo aos discípulos: «Porque comeis e bebeis com os cobradores de impostos e com os pecadores?» Jesus tomou a palavra e disse-lhes: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os pecadores.» (Lucas 5,27-32) [Comentário de Rafael Arnaiz Baron aqui]

A leitura do texto de Lucas deixa pairar uma suspeita sobre aqueles que se apresentam como justos. O primeiro sinal dessa suspeita está com quem Cristo e os seus discípulos fazem comunidade. Os murmuradores sentiam-se excluídos e viam incluídos nela aqueles a quem desprezavam. O segundo sinal está nas próprias palavras de Cristo que diz que vem chamar não os justos, mas os pecadores.

Fariseus e doutores da lei representam uma piedade formal, de onde a tensão da vida parece estar excluída. Eles são justos perante a lei. Mas se a lei for apenas um escudo em que se protegem para não se confrontarem com a própria existência? A vida exige mais que a mera conformação com a lei, exige a turbulência que é suscitada pelo campo experiencial que é colocado à disposição do homem pelo simples facto de estar vivo, de ter sido posto aí.

Se Cristo não parece interessado nos justos, por quem se interesse ele? Por quem veio Ele chamar? A tradução portuguesa, baseada na latina, perde aquilo que está em jogo. De tão utilizada, a palavra pecador perdeu praticamente o sentido original das expressões aramaica e grega. Nestas línguas, as expressões usadas remetem para a ideia de errar ou não atingir um alvo. Antes de uma conotação moral, estamos perante uma descrição existencial. O Cristo veio falar para aqueles que falham na vida o alvo proposto. E é ao falhar esse alvo existencial que se perdem. Neste momento, errar ganha a sua dimensão real, a dimensão da errância, da vagabundagem e do nomadismo existenciais. Significa uma perda de oriente e, em última análise, um perda de si mesmo.

Mas que sentido terá esse arrependimento a que os que falham o alvo, os errantes, são convocados? O que está em causa não é, em primeiro lugar, uma questão moral, mas, fundamentalmente, uma questão existencial. Arrependimento remete para a metanóia, para a mudança da mente, do espírito. Significa elevar-se a um outro ponto de vista, a partir do qual se possa não falhar o alvo, se possa pôr fim à errância do espírito, abri-lo ao alvo que ele próprio é. Não basta a conformação à justiça configurada na lei. É preciso mergulhar no trágico da existência e nele encontrar o alvo que a vida propõe.

Sonetos do Viandante (14)

Egon Schiele - Mulher com meias pretas (1913)

14. Esse teu ser de rosa desbravada

Esse teu ser de rosa desbravada,
Esse teu querer branco e silencioso,
Essa tua mão de seda iluminada,
Essa tua luz no dia breve e ocioso.

Tudo isso guardo na memória,
Horas longas, sombrias, horas perdidas,
Onde perder-me era fim, vitória,
Prazer secreto, ânsias desmedidas.

Infindável engano que aos mortais
Sempre traz o seu fruto envenenado.
Na fímbria da tua pele, os meus dedos

São sinal, são desejo de mais e mais
Querer esse teu ser embriagado,
Perdido na fria luz dos meus segredos.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Do ritual à presença

José María Molina Ciges - Presencia (1977)

Naquele tempo, os discípulos de João Baptista foram ter com Ele e perguntaram-Lhe: «Porque é que nós e os fariseus jejuamos e os teus discípulos não jejuam?» Jesus respondeu-lhes: «Porventura podem os convidados para as núpcias estar tristes, enquanto o esposo está com eles? Porém, hão-de vir dias em que lhes será tirado o esposo e, então, hão-de jejuar.» (Mateus, 9,14-15) [Comentário de Gregório Magno aqui]

Um dos traços mais interessantes destas narrativas reside no seu carácter desritualizante. Gestos, acções e palavras não são propostos como processos formais de cumprir um ritual mas como resposta a um problema ou a uma inquietação dos homens. Perante o rito tornado gesto puramente exterior, no qual a tensão da vida foi esquecida ou mesmo suprimida, surge sempre uma posição radicalmente atenta ao momento, ao acontecimento naquilo que ele tem de inédito e de situado no espaço e no tempo. Com isso surpreende-se o evento originário que conduziu à institucionalização ritual de certas práticas tidas como religiosas.

A privação de alimentos, o jejum, como realização de um determinado preceito é destituído de qualquer sentido, caso não exista efectivamente uma razão vital a solicitá-lo. O texto de Mateus abre para um duplo sentido da experiência do jejum. A privação é vista como situação existencial e como caminho. 

O primeiro jejum é a ausência de Si no próprio homem, é a alienção da verdadeira condição humana, o esquecimento do Verbo que nos institui e constitui, pelo qual somos realmente aquilo que somos. O esposo do texto não é outro senão esse Si, que está para além do nosso eu empírico e da nossa persona social, mas que constitui a nossa mais autêntica realidade. Este primeiro jejum dá-se quando nos privamos da nossa mais funda e autêntica realidade. É uma privação existencial, uma negação ontológica de nós mesmos.

O segundo jejum, o da privação de alimento ou do excesso de coisas, sejam estas materiais ou espirituais, é o caminho de restauração dessa presença real em nós mesmos. É um processo de confronto com a alienação, a redescoberta de um caminho para o que é essencial. Mais do que o carácter penitencial, que não deixa de ter, é o carácter emancipatório e libertador que se torna importante. Libertarmo-nos das nossas ilusões, daquilo que nos aliena, e abrir o caminho para o retorno desse autêntico Si, do esposo da grande festa nupcial. O segundo jejum é uma privação metodológica, um caminho para que a Presença se torne presente.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Haikai do Viandante (126)

Piet Mondrian - Red Tree

Um traço de inverno,
 árvore p'lo céu despida:
água e vento eterno.

Metamorfoses de si

Théodore Chassériau - Paz

'Naquele tempo, o Senhor designou setenta e dois discípulos e enviou-os dois a dois, à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir. Disse-lhes: «A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, portanto, ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe. Ide! Envio-vos como cordeiros para o meio de lobos. Não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias; e não vos detenhais a saudar ninguém pelo caminho. Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: 'A paz esteja nesta casa!' E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará para vós. Ficai nessa casa, comendo e bebendo do que lá houver, pois o trabalhador merece o seu salário. Não andeis de casa em casa. Em qualquer cidade em que entrardes e vos receberem, comei do que vos for servido, curai os doentes que nela houver e dizei-lhes: 'O Reino de Deus já está próximo de vós. (Lucas 10,1-9.) [Comentário de João Paulo II aqui.]

Em A Metamorfose, Franz Kafka tematiza a transformação espiritual negativa. Alguém acorda transformado num gigantesco insecto. Uma transformação do corpo como símbolo da degradação da condição humana, da degradação do espírito. O texto de Lucas também tematiza uma metamorfose, mas esta de natureza completamente oposta. O sinal dessa metamorfose reside nas últimas palavras O Reino de Deus já está próximo de vós. Poder-se-á fazer uma interpretação política, dizendo que uma teocracia se aproxima. Mas o cristianismo representou um ruptura com as expectativas teocráticas da comunidade judaica. Outra linha de interpretação é ler a frase a partir de um ponto de vista escatológico e pensá-la como aproximação do fim do mundo e o advento do Reino de Deus. Mas o tempo fez perder fulgor a essa interpretação.

Se se pensar o Reino de Deus como uma experiência interior de carácter espiritual, tudo ganha um inesperado sentido. O que está em jogo será a transformação de si mesmo à imagem e semelhança de Cristo, o arquétipo ou modelo de homem que o cristianismo trouxe à humanidade. Será a metamorfose do homem animal no homem espiritual. O texto, no início, refere os lugares e sítios onde o Senhor haveria de ir. Isso deixa-nos perceber que há um processo que vai desta intenção inicial e a promessa final da sua chegada. Este processo é o da metamorfose. Mas como poderá o homem fazer esse caminho e onde terá de caminhar?

Terá de caminhar entre lobos. Mas os lobos talvez não sejam os perigos e ciladas que existem na vida natural e social, mas as nossas próprias ilusões, a desordem no nosso ser ou no reino que somos. Caminhar entre lobos não significa declarar-lhes guerra, exarcebá-los e excitá-los. Isso seria pôr no cerne do caminho a dialéctica do conflito. O caminho da metamorfose é o da pacificação de si mesmo, o da aceitação da sua natureza. Que a paz esteja nesta casa significa não apenas a pura ausência de conflito mas a afirmação da serenidade, o sossego de sua casa, a cura do que há de patológico em nós como o cerne do processo de metamorfose. A serenidade da paz é a possibilidade de realizar o arquétipo que habita no fundo do homem, a possibilidade de deixar vir Aquele que é.