quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Poemas do Viandante (402)

Ivonne Sánchez Barea - Cienaga verde (1999)

402. Traços de luz sobre a terra

Traços de luz sobre a terra,
o coaxar nos pântanos,
as promessas matinais
que a vida se esquece de cumprir.

Não vale a pena
pegar no velho rosário e orar.
Os dias ainda são pequenos,
e tudo o que tínhamos a dizer
deslizou silencioso
para a pátria do esquecimento.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Caminhos entrelaçados

Virginia Lasheras - Caminos entrelazados (1993)

A viagem, à primeira vista, parece um acto solitário. Um viandante sente o apelo à procura de si, à busca da verdade, e toma, em solidão, o caminho. Com o decorrer do tempo, quer a viagem se faça por senda direita, quer o viajante se perca em labirintos, descobre-se que toda a viagem é um entrelaçamento de caminhos, dos caminhos vários que cabem ao viandante percorrer, mas também um entrelaçamento com os caminhos de outros viandantes que, também eles, sentiram um solitário apelo à viagem. Torna-se assim a viagem num exercício de comunidade, na construção de uma comunhão entre indivíduos que procuram, um exercício de solidões discretamente partilhadas.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Haikai do Viandante (123)

Benvenuto Benvenuti - Agosto. Sera (1901)

Árvores rasgadas
pelo império da noite;
da luz, tão cansadas.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Do abandono

Salvador Tuset - Abandono (1946)

A temática do abandono é das mais dialécticas, pois contém nela uma contradição insanável. A dor de ser abandonado e o sentimento de desamparo crescem na medida em que alguém não se abandonou. Quanto mais centrado em si, quanto mais importância se concede a si mesmo, mais o abandono e o desamparo se tornam dolorosos. Mas como poderá ser tocado pelo abandono e pelo desamparo quem já se abandonou e nada espera?

sábado, 26 de janeiro de 2013

Poemas do Viandante (401)

Gregorio Prieto Muñoz - Aranjuez (1918-1919)

401. Sou agora um poeta romântico

Sou agora um poeta romântico.
Chego sempre tarde ao meu tempo,
e o tempo que me cabe nunca é o meu.
Sonho com castelos de pedra dura
e claustros góticos onde caminhei.
Sonho com os dias passados
e a glória que nunca viverei.

Sou agora um poeta romântico
e sento-me na esquina dos dias
à espera de um vislumbre do que passou,
do relâmpago que me traga um outono,
as preces dolorosas que nunca rezei.

Sou agora um poeta romântico
e oiço o concerto de Aranjuez,
o velho palácio onde solitário
o espírito deambula perdido
entre a evocação do passado godo
e os timbres metálicos do futuro 
que, apressado, dilacera o coração.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Poemas do Viandante (400)

Asher Brown Durand - Un arroyo en el bosque (1865)

400. Voltemos a esses dias transfigurados

Voltemos a esses dias transfigurados,
à pureza da água,
ao silêncio dourado no horizonte.

Por vezes, ouve-se um anjo cantar,
o sussuro aceso nas folhas do arvoredo,
o tronco derrubado onde te sentas
e escutas em silêncio o meu silêncio.

Se a noite se aproxima, 
seguimos caminho fora,
os pés na água fria da primavera
e os olhos postos
no santuário perdido no bosque,
onde esperam os últimos peregrinos.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Poemas do Viandante (399)

Pierre Bonnard - O Jardim  (1937)

399. Caminhava entre ervas e flores

Caminhava entre ervas e flores
e esperava o Sol vindo da noite,
a carícia de um olhar,
a promessa que era a vida.

Os sinos calaram-se
e nos campanários zunem varejeiras,
zune o silêncio com que colhia
a breve flor do teu jardim.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Escutar o rumor

Giacomo Balla - Velocidad de automóvil (1912)

Sabemos que esta mitologia (a do progresso) se desmorona. Mas qual será hoje para os indivíduos a tradução subjectiva dessa significação, dessa realidade que é a «expansão» aparentemente «ilimitada» do «poder de controlo»? (Cornelius Castoriadis. A Ascensão da Insignificância)

A pergunta de Castoriadis é colocada em 1996. Hoje em dia não perdeu actualidade, antes pelo contrário. A mitologia do progresso era uma forma de idolatria. O homem, perdido de si e em busca de consolo, fabrica a cada momento ídolos. O fim da idolatria do progresso abre certamente para a insignificância, para a irrelevância, para uma perda de si ainda mais radical. Mas como qualquer destruição de um culto idolátrico, a destruição deste é também uma oportunidade para o homem se confrontar consigo mesmo e aprender a escutar o rumor que o habita e que não é outra coisa se não a voz que o convocou para a existência.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Haikai do Viandante (122)

Modesto Urgell Inglada - Apunte de puesta de sol

Eis o dia cansado,
um mar vermelho que se abre
nos braços da noite.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O templo do Espírito

Paul Gauguin - Y el oro de sus cuerpos (1901)

A espantosa definição paulina do corpo, como «templo do Espírito», opõe-se radicalmente aos esquemas usuais do helenismo. Herdado do pitagorismo, o famoso jogo de palavras sobre o corpo-túmulo (soma/sema) reencontra-se em Platão, impregnado duravelmente toda a mentalidade ocidental, antes e após Cristo. (Christian Belin, Le Corps Pensante - Essai sur la Méditation Chrétienne, p.118)

A visão negativa do corpo, visão tão espalhada na história do Ocidente, é, na sua essência, anticristã e claramente pagã. Mesmo quando é veiculada pela Igreja - e isso acontece muitas e muitas vezes - essa visão não deixa de ser aquilo que é e não deixa de estar em contradição com o próprio cristianismo. Não se trata, no cristianismo originário, de opor o Espírito ao corpo, mas de uma reconciliação entre ambos. A redenção do homem na cruz de Cristo, o tema central do cristianismo, é também a redenção do corpo humano, a ultrapassagem da visão negativa do corpo proveniente de doutrinas como o pitagorismo. A natureza do cristianismo não é a reactividade ao corpo ou à matéria, mas a sua revalorização e salvação. Ora isso implica que o corpo, onde se inclui a sexualidade, deva ser pensado num contexto emancipatório (o que não é sinónimo de libertino) e moderno, pois só assim a definição de Paulo de Tarso continuará, ou tornará, a fazer sentido.