domingo, 16 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (112)

James Juszczyk - Brief (1974)

No céu um arco-íris.
As cores suspensas cantam
um mundo feliz.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (390)

Vincent Van Gogh - Almiar en un día de lluvia (1890)

390. Não há rio que justifique tanta água

Não há rio que justifique tanta água
nem tristeza que acolha tamanha dor.
Tudo se dissolve nestes dias,
a vida como ela foi,
a esperança que a ilusão trazia,
a casa onde a estirpe foi sonhada.

No futuro, tudo será melhor, dizem.
Mas da minha janela só vejo folhas caídas
e nenhuma primavera as trará de volta.
Só vejo luzes amarelas
que iluminam a amargura que escorre do céu
e alaga ruas soturnas e vielas fechadas.

Encosto-me à vidraça e olho a água que cai
e tudo em mim se esvai,
escorre lentamente para o chão,
deixa uma mancha de sombra azul
no lugar branco e calcinado
onde um dia sobre a tua poisei a minha mão.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Uma economia do dom

Tiziano - La venida del Espíritu Santo (1545)

L'un possède le don de parler avec sagesse ; l'autre, avec science. Un autre, le don de la foi ; un autre, le don de guérison ; un autre, le don des miracles ; un autre, le don de prophétie ; un autre, le don de parles diverses langues ; un autre, le don de les interpréter. Or, c'est un seul et même Esprit qui opère toutes ces choses : Haec autem omnia operatur unus atque idem Spiritus. (Jean-Joseph Gaume (1865) Traité du Saint Esprit)

Esta tradição viva da Igreja Católica de atribuir o conjunto das capacidades e potências presentes nos indivíduos, sob a denominação de dons, ao Espírito Santo sublinha uma coisa que, nos dias de hoje, se tornou quase incompreensível. Nenhum mérito nos pertence pela posse dessas qualidades. Elas foram-nos doadas, como sublinha a própria palavra dom. Pode haver em nós algum mérito na manutenção e desenvolvimento desses dons, mas a sua posse ou a sua falta não deixam de constituir para o indivíduo um mistério, um verdadeiro mistério do Espírito Santo, para usar os termos da tradição cristã. 

Este carácter misterioso presente na herança ou nos dons recebidos tem três consequências. Uma primeira coloca-nos no nosso lugar. Por mais dotado que eu seja, isso nada tem a ver com um mérito pessoal do qual possa orgulhar-me. Uma segunda consequência sublinha que os dons, não sendo mérito meu, apelam para a sua realização segundo uma perspectiva de serviço aos outros. Por fim, o dom, por não ser origináriamente meu, implica o dever de o desenvolver e de o consumar na realização do bem que ele contém. O dom traz consigo o imperativo da sua realização, da realização do Espírito doador que nunca deixa de estar presente em cada um dos dons com que presenteia os indivíduos. 

Nesta economia do dom, para usar uma expressão que remete para Marcel Mauss, percebe-se que somos parte de uma cadeia de reciprocidades, a qual estrutura a comunidade humana enquanto tal. E aqui podemos pensar mais fundadamente no mistério do Espírito Santo como o mistério da instauração das comunidades humanas, nas quais ele toma corpo e carne através dos dons distribuídos gratuitamente.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (111)

Piet Mondrian - Árvores em flor (1912)

Estranha floresta,
de árvores brancas em flor,
sem folhas nem giesta.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Arte e contemplação

Jesús de Perceval - Adán (1930)

Le rôle de Adam, (...), est de regarder la création, de la voir, de la reconnaître et de lui donner ainsi une existence nouvelle et spirituelle. Il imite et reproduit l'action créatrice de Dieu en répétant, dans le silence de son intelligence, la parole qui a donné la vie à toutes les choses vivantes. (Thomas Merton, Le Nouvel Homme, pp.65.)

Na economia da natureza, o papel central do homem é absolutamente espiritual. Esse papel está centrado numa atitude contemplativa. O homem, Adão, é aquele que olha, que vê, que contempla a criação, o mundo. É nesta atitude contemplativa que esse mesmo mundo ganha sentido, ganha uma existência nova e espiritual, uma existência que ultrapassa a mera materialidade com que o conjunto das coisas se dão aos sentidos e à imaginação animal. Contudo, a contemplação possui, ela própria, uma dinâmica, que a torna bem diferente de uma atitude puramente passiva. Contemplar é uma forma de mimesis, de imitação da palavra originária que chamou as coisas ao conjunto da existência. Compreende-se, então, que contemplar é uma forma de arte e que esta só é criadora porque imita, mima, a palavra originária cuja vibração trouxe do nada ao ser o conjunto de tudo aquilo que existe. Uma arte que não seja fundada na contemplação, nessa mimesis da palavra originária, não é arte mas pura poluição.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (389)

Agnes Martin - Canción (1962)

389. Uma melodia feita de cores e poeira

Uma melodia feita de cores e poeira,
a canção de coral e água,
todo o mistério de uma vida
recolhido num punhado de areia.

Olho-te e retenho o fôlego.
Espero o delírio de cada inspiração,
e em breves haustos entrego-me
ao sussurro da tarde,
nas tuas mãos tecidas de branco
e anémonas marinhas.

sábado, 8 de dezembro de 2012

O bezerro de ouro

Robert Delaunay - Saint-Séverin n.º 2 (1909)

As igrejas e catedrais góticas, mais que todas as outras, tinham no cerne da sua concepção o mistério que conduz o olhar do homem para cima, para aquilo que há de mais elevado no universo dos valores humanos. Esse estranho e vilipendiado mundo gótico, estruturado nos arcos ogivais, que ao fechar apontavam para o alto e simbolizam o mistério da vida, tinha a virtude de fazer coincidir a elevação com aquilo que era o bem supremo. Hoje os homens expulsaram Deus do alto. Muitas igrejas modernas fazem lembrar centros de conferências ou, em casos mais radicais, locais de espetáculo. A altitude e a elevação foram guardadas para as novas catedrais, as sedes dos grandes bancos, locais da nova-velha religião, lugar onde se oculta o seu santo dos santos. O bezerro de ouro tomou, mais uma vez, o coração dos homens.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (388)

Paul Klee - Open Book (1930)

388. Pego neste livro e desfolho-o

Pego neste livro e desfolho-o,
deixo que as páginas escorreguem,
e espalhem pelo chão um mar de letras,
rios de tinta negra,
o mistério inconsolável do teu coração.

No espasmo que segue a queda,
escuto a dor na quietação da tarde.
Tristeza a arder no peito,
corcel vibrante e desgarrado
que por terra recolhe as sílabas
com que desenha o livro da tua perdição.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (110)

Agnes Martin - Azul cadente (1963)

Paisagem anil
riscada sobre papel
lembra o céu de abril.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Efeitos especiais

Albert Bloch - Figures in silver light (study) (1943)

A vida é uma luta contra a opacidade, contra a nossa própria opacidade. Na verdade, se meditarmos um pouco, não há ser mais estranho e mais opaco a nós do aquele que diz eu quando falamos. Essa opacidade nasce, em primeiro lugar, da ilusão de que nada nos é mais conhecido do que nós mesmos, como se pelo facto de sermos sujeitos e objectos de conhecimento ao mesmo tempo facilitasse o acesso a esse objecto. Em segundo lugar, esse mesmo facto, o de sermos sujeito e objecto, é produtor de opacidade e de escuridão. Dividimo-nos e tornamo-nos estranhos a nós próprios. Por fim, o acto de dizer eu parece assegurar uma certeza certificada de que sabemos o que estamos a dizer, uma certeza que sabemos quem é esse eu. Ora, o eu é um lugar vazio - o pronome pessoal na primeira pessoa - que qualquer um ocupa quando toma a palavra e, ao calar-se, deixa vazio. Na realidade, não passamos de figuras banhadas por uma luz prateada. Somos opacos a nós mesmos, mas a tonalidade luminosa cria-nos a ilusão da transparência. Mas isso não passa de efeitos especiais.