quarta-feira, 7 de março de 2012

Haikai do Viandante (53)


Velho paraíso,
guardo-te entre as coisas
de que mais preciso.

terça-feira, 6 de março de 2012

Haikai do Viandante (52)


das ondas suspenso,
nem barco nem caravela,
na morte me penso.

domingo, 4 de março de 2012

Poemas do Viandante (247)

Monet - Veneza

247. MONET, VENEZA

a cidade 
um incêndio
restos de argila
e calcário
cenário de papel 
e seda a arder 
na voragem
da água

Haikai do Viandante (51)


Um traço sombrio,
árvores, folhas, promessas
de luz e um rio.

sábado, 3 de março de 2012

Poemas do Viandante (246)

Cézanne - Gardanne

246. CÉZANNE, GARDANNE

havia um segredo
no segredo
daquelas casas
uma palavra por dizer
a flor bravia
e solitária
com que partias
se me vinhas ver

sexta-feira, 2 de março de 2012

Poemas do Viandante (245)

Renoir, Boating on the Seine

245. RENOIR, BOATING ON THE SEINE

caminho pela margem
e nas águas sei
a cor dos teus olhos
ao abrirem-se para os meus

barco incendiado
a tarde chega
invade o rio 
ilumina-te 
com o cálice de luz

tudo em ti treme
mãos ansiosas
coração inquieto
a boca incerta
na vastidão das horas

quinta-feira, 1 de março de 2012

Haikai do Viandante (50)


o fim da jornada
começa quando o dia nasce
pela madrugada

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (49)


a noite sublime
sob o império do luar
esmaga e oprime

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Da dor e do espírito

Se o corpo cede, o espírito, solidário, torna-se frágil e impotente. Sob o efeito de uma virose, as dores do corpo invadem a consciência, ocupam todo o horizonte e tudo se torna nebuloso. Como pensar claro e distinto? Como afundar-se no esquecimento de si? A dor, pequena que seja, é sempre um exercício de narcisismo, um ver-se contínuo ao espelho, agora um espelho deformado que devolve uma imagem lamentável e lamentosa de si mesmo. Talvez um contínuo exercício da dor permita a alguns esquecê-la e deixar o espírito livre da submissão às desventuras da carne. Mas quão longe se teria de ir no caminho para conseguir tal independência espiritual? Talvez a dor não seja o caminho para a libertação do espírito, talvez a dor seja ainda um exercício de submissão do espírito ao império material do corpo.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (48)


árvores despidas,
inverno que traz o homem
frio e de mãos caídas.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Épocas de dissipação

Há épocas de pura dissipação. O espírito vagueia incapaz de tomar um rumo, e o corpo fica prisioneiro desse espírito débil e inconstante. Tudo se dissolve e nada de produtivo, seja em que âmbito for, é gerado. O espírito parece perdido no espelho, num exercício de narcisismo sem fim. Depois, mais uma vez, há que voltar para a pobreza essencial, para o vazio de si, e esperar que uma graça devolva espírito e corpo à vida. Esse exercício de humildade, muitas vezes, só parece possível por um longo período de humilhação, no qual nos comprazemos nas pequenas ilusões que capturam a consciência e aniquilam a atenção ao essencial.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Poemas do Viandante (244)



244. CINZAS PÓ E LAMA

de onde veio esta ânsia
desejo animal
de vida à vida
acrescer
numa angústia de infinito
num saber sem saber
e esperar
o corpo
pó no pó da terra
e a vida no horizonte
onde os vivos
não vivem
são apenas cinzas pó e lama

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (47)


ao entardecer
o barco pára e espera
o sol vai morrer

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Poemas do Viandante (243)




243. TIRÉSIAS

que trazes tu agora
na tua cegueira?
ah esses mistérios
e a sombra que a vida
sobre eles derrama
o olhar vazio
a palavra sábia
no terror das trevas

o dardo atirado
aos olhos de édipo
o infeliz senhor
a rainha morta
o cruel destino
dos filhos traçado
pela dor e o sangue

tanta luz contigo
trazes e derramas
sobre a vida frágil
e inquieta dos homens

que escondes agora?
que dor sabes tu
vive no horizonte?
que hora que dia
sobre nós cairá
a sabedoria
nascida na luz
terrível e opaca
de tão cruel olhar?

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

De Eros e do Espírito

Van Dick, Eros e Psyche

Tradicionalmente, a paixão erótica é observada como inimiga da experiência espiritual, como um obstáculo ao caminho que cabe aos viandantes. No entanto, é possível que o problema não esteja em Eros, no amor erótico, mas no pathos, no estado de captura e de cativeiro em que os amantes permanecem presos pela paixão, pelo estado de passividade a que ficam sujeitos. Essa passividade é o contrário da livre actividade do espírito, aquele que sopra onde quer. A passividade da paixão impede que os amantes percebam a própria experiência erótica para além da corporalidade e da materialidade dada pela sensibilidade. A generalidade dos que se amam aproximam-se, num primeiro momento, por uma afecção física. Um corpo é tocado por outro corpo, em congruência com os desígnios biológicos da espécie. Raramente, este patamar é ultrapassado. Daí, por exemplo, a moralização da sexualidade feita pelas religiões, concomitante à sua sacralização. No entanto, não é um destino que o amor erótico fique encerrado na dimensão da passividade passional, passe a redundância. Ele pode ser uma via de acesso à experiência espiritual, à quebra da pura imanência dos sujeitos, à experiência da transcendência.

E a experiência contrária? Será possível que aqueles que se atraíram, numa primeira hora, pelo espírito e façam a experiência de uma comunhão espiritual e da transcendência materializem esse seu amor no amor erótico, na experiência dos corpos? Caberia interrogar se esses corpos são corpos idênticos aos daqueles que apenas vivem da atracção física. A perspectiva de quem olha não alterá a natureza daquilo que é olhado? A erotização do espírito poderá ser vista como uma queda, mas também pode ser compreendida como a descida do espírito sobre a carne e um processo de espiritualização desta. Desse ponto de vista, o amor erótico será assumido, à partida, como fazendo parte de uma experiência global dos estados múltiplos do ser, onde o perigo de os amantes ficarem encerrados na paixão e na passividade será muito menor do que no primeiro caso. Tudo, no amor, faria então parte do caminho do espírito. Mais, a própria cisão entre corpo e espírito perderia sentido, não havendo mais que um ser que passa por múltiplos estados existenciais.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Poemas do Viandante (242)


242. NOITE DE INVERNO

a noite de inverno
desliza tranquila
nas rodas do mundo

o grito do corvo
acende o mar
de estrelas no céu

e no frio da casa
ouve-se cantar
o fantasma pálido
de quem já morreu

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (46)


Silêncio no mundo;
e a casa ergue-se inteira
no lago sem fundo. 

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (45)

Swan Moon

a lua cansada,
iluminada p'lo cisne, 
rasga a madrugada.

Faça-se a Vossa Vontade!

Salvador Dali

Faça-se a Vossa Vontade! Aqui enuncia-se a máxima suprema do cristianismo, a mesma que conduziu Cristo à cruz. Há, contudo, um elemento perturbante nessa enunciação. Quanto nessa enunciação exprime a nossa própria vontade ou, melhor, o nosso desejo que a Vontade de Deus corrobore a nossa própria vontade, que seja um amparo e um legitimador do nosso egoísmo? Mesmo quando a enunciação é feita a posteriori, quando algo contrariou tragicamente o nosso desejo, não estamos ainda perante a enunciação de um desejo de apaziguamento da dor? Os seres humanos são seres desejantes e a sua vontade é inclinada radicalmente pela pluralidade dos seus desejos particulares e egoístas. O escândalo do cristianismo não reside na ideia exterior de que o Filho de Deus morreu na cruz pela salvação dos homens. O escândalo do cristianismo está todo nessa proposta de uma radical crucificação da vontade própria, inclusive dessa vontade que, ao tomar voz, diz: Faça-se a Vossa Vontade. Essa aprendizagem da morte é o desafio mais extraordinário que o cristianismo faz aos homens. Ela significa a extinção do desejo para que algo, nessa morte do ser desejante, se manifeste. Não um outro tipo de desejo, mas um outro tipo de vida. A vida desejante é uma vida cujo centro reside na experiência de finitude e de incompletude. A outra vida surge, no cristianismo, como promessa de Vida plena que, quase de um modo dialéctico, realiza o desejo pela sua morte, pela sua crucificação.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (44)


o mar revoltado,
espelho onde se reflecte
o céu incendiado.

Turbulências


A palavra turbulência tem, na sua pluralidade semântica, uma feliz capacidade de captar certas fases da vida humana. Por um lado, ela remete para a dimensão psicológica do desassossego e da perturbação; por outro, ela descreve, ao nível da Física, os movimentos irregulares dos fluidos, nos quais as diferentes partículas que passam em determinado ponto podem variar, no tempo, em grandeza e direcção. Há momentos da vida que ao desassossego ou perturbação do espírito corresponde uma conduta irregular do corpo - de um corpo que nessas horas se fluidifica -, como se essa irregularidade e variabilidade direccional e essa perturbação se reforçassem mutuamente. Será um exercício inútil determinar qual dos fenómenos é causa do outro. A sua concomitância mostra antes a unidade do espírito e do corpo. Mais importante que isso, porém, é perceber o que significa essa turbulência que por vezes atinge o ser humano. Que provações lhe são propostas? Que experiências se abrem ao corpo e ao espírito? O que, vindo de fora, pretende romper a imanência em que nos colocamos e protegemos da vida? A turbulência é sempre um sinal da transcendência, um apelo à abertura. Quem não se recorda da turbulência que atingiu Paulo de Tarso na estrada de Damasco? Por vezes, somos levados a considerar que o episódio paulino como algo excepcional. Contudo, cada ser humano passa inúmeras vezes por essa experiência da turbulência sem reconhecer que se encontra na sua estrada de Damasco.


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (43)

daqui

ao entardecer
silêncios e pedras cantam
a luz ao morrer.

A viagem como metamorfose existencial


Pois não são as obras que nos santificam, somos nós que devemos santificar as obras. Quão santas possam ser as obras, elas nunca nos santificarão enquanto obras. Contrariamente, na medida em que possuímos um ser santo e uma natureza santa, somos nós que santificamos todas as nossas obras, quer se trate de comer, de dormir, de velar ou de fazer seja o que for. [Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels, IV]

O texto de Eckhart, apesar da provecta idade, pode ainda surpreender. Desloca a questão da santificação do domínio da moral para o da ontologia. Não se trata daquilo que fazemos mas daquilo que somos, não se trata da intervenção no mundo, mas da conversão existencial, da metamorfose ontológica. Trata-se que o homem, no seu ser e no seu fundo, seja perfeitamente bom. Dito de outra maneira, a experiência da bondade transforma a minha natureza. Mas essa experiência da bondade é dada pela abertura a Deus. Como Eckhart explica no ponto V dos Entretiens Spirituels, essa experiência implica que todos os nossos esforços tendam a compreender a grandeza de Deus, que tudo o que há em cada um seja voltado para Ele. O importante deste texto eckhartiano reside na focalização central da vida religiosa. Esta não está centrada nas regras morais, mas na experiência existencial de uma transformação de si à luz do ser divino. 

A qualidade moral das nossas acções não reside no facto de elas serem um caminho para a santidade. Estas acções, as que pretensamente santificariam os homens, como dirá, séculos depois, Kant, não têm qualquer valor moral. As boas acções são aquelas que resultam da bondade do próprio ser que as pratica. É ele que santifica as acções e não estas que o tornam santo. É verdade que, na economia global da vida em sociedade, é bom que as acções praticadas pelos agentes tenham uma aparência de bondade, mesmo que sejam praticadas por alguém que não se confrontou, ou nem pensa confrontar-se, com a metamorfose do seu próprio ser. Mas na economia da viagem que cabe a cada viandante efectuar, essas acções não possuem qualquer utilidade efectiva, podendo mesmo ser um obstáculo ao caminho. A viagem é uma experiência existencial e não uma aplicação ritualizada de mandamentos morais.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (42)


suspensas do tempo
as nuvens parecem barcos:
vogam num lamento

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (41)


neve na floresta
e o lago gelado espelha
o fulgor que resta

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (40)


Vida luminosa
ergue-se na alma nocturna
fria e majestosa.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (39)

(imagem daqui)

No vazio deserto:
pó, ervas, restos de pedra,
de Deus já tão perto.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (38)

(imagem daqui)

Sobre o chão, a neve
esconde a frágil vida
que na terra ferve

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (37)

(imagem daqui)

Terra pelo chão
na floresta encantada
chama a solidão.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (36)

(imagem daqui)

Bruma e nevoeiro
traçam no centro da vida
o fim derradeiro.

Vertigem

Esta indecisão que de tudo se apodera, esta sombra que cai sobre os dias, esta neblina que se cerra sobre o olhar. Como é sombria a luz natural da razão. Estranho lugar é o do homem, a meio caminho entre terra e céu. Os olhos erguem-se para o alto, mas o corpo submete-o à lei da gravidade. A vertigem que de mim se apodera não é mais que a luta entre duas naturezas que há muito perderam a harmonia. Como pode a razão iluminar aquilo que os deuses obscurecem?

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (35)

(imagem daqui)

um céu de veludo
abre-se ao clarão da noite
luminoso e mudo.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Pobre de espírito

(imagem daqui)

Vejam, nunca até agora, nesta vida, alguém abandonou as coisas ao ponto de nada mais ter para abandonar. São raras as pessoas que têm isso em consideração e se conformam com tal coisa. Compensação verdadeiramente equitativa e justa: tanto quanto tu sais de todas as coisas, tanto quanto sais verdadeiramente de tudo o que é teu, tanto, nem mais nem menos, Deus entra em ti com tudo o que é seu. [Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels IV]

Onde, nesta curta passagem de Eckhart, encontramos um lugar para a fé? O místico renano não fala de nenhuma das virtude teologais, não sublinha um dogma, apenas propõe uma forma de agir. Desapropriar-se de si, abandonar tudo o que é tido como seu, quebrar os laços psicológicos do desejo com as coisas, consigo mesmo e até com o desejo de salvação. Abandonar significar abandonar radicalmente. Mas nunca, nesta vida, ninguém se abandonou ao ponto de não ter mais nada a abandonar. A fé reside neste abandono radical, reside na certeza de que cada vazio do espírito nascido do abandono é preenchido pela entrada de Deus. Abandonar-se significa ser pobre de espírito. Uma pobreza radical. Assim como é no presépio de Belém que Cristo nasce, é no mais vazio do espírito que Deus encontra o seu presépio, e ocupa o espaço que a pobreza lhe proporciona. A pobreza espiritual - que não é estupidez ou falta de inteligência - é a virtude essencial no caminho de qualquer viandante. A fé não está na ligação afectiva a uma imagem mais ou menos abstracta ou mais ou menos infantil da divindade, mas no abandono de si à expectativa da chegada de Deus.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (34)

(imagem daqui)

Traço na planície,
um ribeiro cruza a terra:
luz p'la superfície.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (33)

(imagem daqui)

Inverno sombrio
esquece o calor da terra.
Assim nasce o frio.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (32)

(imagem daqui)

entre noite e trevas
rompe-se o firmamento:
na dor nasce a luz.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (31)

(imagem daqui)

Os prados em fogo
rasgam a terra para a erva
germinar de novo.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Da Vontade e da vontade própria


Aquele que quer começar uma nova vida ou uma actividade deve ir ao seu Deus e pedir-Lhe, com muito fervor e um completo recolhimento, para regular tudo pelo melhor, tudo ao Seu gosto e como Ele o julgue mais digno; não deve nem querer nem procurar o seu próprio bem, mas unicamente a santa vontade de Deus, mais nada. E seja o que for que Deus então lhe envie, deve aceitá-lo como vindo directamente de Deus, compreendê-lo como o que melhor lhe pode acontecer e ficar inteira e absolutamente satisfeito com isso. (Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels, XXII)

O essencial da via reside nesta atitude de total e completa confiança nos desígnios de Deus. Essa confiança, porém, significa o abandono de toda a vontade própria, a morte dessa vontade, e a pura aceitação do provir como palavra e vontade divinas. Este tipo de acção contemplativa, de uma acção que não espera senão o que a Vontade lhe envia é o mais elevado grau de acção. A dificuldade reside, contudo, na erradicação da vontade própria, de uma vontade fundada no medo e no desejo.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (30)

(imagem daqui)

Tanta nostalgia
neste sonho onde a água
lembra a luz do dia.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (29)

(imagem daqui)

Crescem como dedos
sobre a verdura do vale
rochas e segredos.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (28)



Na aberta clareira,
p'la mão rasgada no bosque,
erva, sol e poeira.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Do medo e do desejo


(Imagem daqui)

O medo e o desejo são dois grandes obstáculos à vida do espírito. O medo conduz, muitas vezes, à fuga do mundo, ao retirar-se para um lugar especial onde não se possa, imaginariamente, ser atingido pela torrente da vida, a qual contém em si a própria morte. Temer o outro, o estranho, a exuberância da natureza, as ameaças da tecnologia. São múltiplas as figuras que parecem fundar o medo. Por seu turno, o desejo lança-nos sobre os seus objectos, incentiva a voracidade, o projecto de captura e de dominação da coisa ou da pessoa desejada. Entre o medo e o desejo, o espírito vive aterrorizado pelo fascínio que estas experiências exercem sobre ele. Ora o medo e o desejo contaminam a vida e a realidade com estas projecções da subjectividade, deformam-nas e tornam-nas uma cadeia que se abate inexoravelmente sobre a pessoa. A vida espiritual lida fundamentalmente com este medo e este desejo. Não se trata de eliminar o medo ou o desejo. Trata-se de os reconhecer naquilo que são e de reconhecer como eles pervertem a nossa relação com o mundo e os outros. Na religião, não se trata do medo da condenação eterna nem do desejo do paraíso, mas de fazer a experiência de religação com o absoluto, de  aproximação contínua à realidade tal como ela é, tal como ela nos solicita. Trata-se de uma atenção permanente à epifania do ser que se realiza a cada instante e da qual o nosso medo e o nosso desejo conduzem ou à fuga ou à tentativa de dominação.

Haikai do Viandante (27)

(imagem daqui)

ao fundo a serra
anuncia a treva que em breve
ensombrará a terra.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (26)

(imagem de vladstudio)

cai pelo jardim
a noite silenciosa
a arder em mim.

Do desapego

O desapego das coisas e das pessoas, essa exigência evangélica para quem pretende seguir o Verbo, não significa o real abandono dessas coisas e dessas pessoas. Significa muito simplesmente que o cuidado que coisas e pessoas exigem de nós deve ser considerado fora de qualquer interesse e expectativa subjectiva. Significa que eu não devo prender-me a nada a não ser ao Bem. Este desapego, porém, abre cada um de nós para as coisas como elas são e ensina-nos a lidar com elas na sua verdade. A vida do espírito não é uma fuga mundi e o desapego não é o afastamento das situações existenciais. Pelo contrário, a vida espiritual é um exercício contínuo de realismo e de atenção ao concreto da existência, é uma vida na verdade, que se torna possível pela eliminação do enviesamento que o ego traz consigo.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Poemas do Viandante (241)


241. POSEIDON


este canto
do vento
sobre a planície
é o murmúrio
de poseidon
ao subir
à superfície

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Poemas do Viandante (240)


240. ESTRELA POLAR

o mais antigo
e o mais remoto
vivem ainda
se colhes uma flor
ou deixas
o vento anunciar
entre nuvens
a alegria
da estrela polar

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (25)


sol, sombra e segredo
fazem da árvore floresta;
ali canta o medo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (24)

(Foto de Rui Bela)

ondas circulares
tecem, na seda do rio,
anéis e colares.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (23)


manhã de neblina
anuncia-me a tua mão
pálida e fina.